Artigo Original
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Ano 2018 -
Volume 8 -
Número
3
Treino de simulação na sala de emergência - a experiência de um serviço de pediatria
Simulation training in the emergency room: experience in a pediatric service
Cristiana Ferreira Martins; Joana Maria Cotrim; Eurico Jorge Gaspar; Juan Cabezas Calviño
RESUMO
As simulações na sala de emergência (SE) pretendem reproduzir quadros clínicos de emergência e orientar a sua avaliação e tratamento no local habitual de trabalho com os materiais e recursos humanos disponíveis no serviço. A intenção é melhorar o desempenho dos profissionais como equipe, incluindo a interiorização da sequência de avaliação e eventuais tratamentos, assim como a comunicação e coordenação entre os diferentes elementos da equipe médica e de enfermagem, para lograr o objetivo final de melhorar a assistência ao doente grave. No serviço de pediatria do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (CHTMAD) são realizados treinos de simulação desde 2013. É por todos sabido o potencial de aprendizagem que as simulações proporcionam. Os autores pretenderam averiguar o seu impacto na equipe, e para isso foi realizado em 2015 um inquérito anônimo aos participantes no projeto. Verificamos que as simulações melhoraram a impressão subjetiva dos profissionais no que diz respeito não só às competências técnicas como intubação endotraqueal, utilização de ventilador e desfibrilador, drenagem torácica e pericardiocentese, mas também às decisões que visam garantir a segurança dos pacientes.
Palavras-chave:
Exercício de Simulação, Educação Baseada em Competências, Tratamento de Emergência, Pediatria, Corpo Clínico Hospitalar.
ABSTRACT
Simulations in the emergency room (SE) aim to reproduce real patients and crisis situations. Since 2013, the pediatric service of the Trás-os-Montes and Alto Douro Hospital Center (CHTMAD) has carried out simulation training. It intends to improve the skills of the health professionals with repeated experiences and feedback in a controlled environment. In 2015, an anonymous survey was carried out with health professionals, and we verified that simulations are an important training tool for developing and improving skills (e.g., usage of ventilator, cardioverter defibrillator and chest drain placement) and behaviors that increase patient’s safety.
Keywords:
Simulation, Emergency Treatment, Competency-Based Education, Pediatrics.
INTRODUÇÃO
As simulações na sala de emergência (SE) consistem em reproduzir emergências clínicas em pacientes reais e orientar a sua avaliação e tratamento no local habitual de trabalho com os materiais e recursos humanos disponíveis no serviço.
A intenção é melhorar o desempenho dos profissionais como equipe, incluindo a interiorização da sequência de avaliação e eventuais tratamentos, assim como a comunicação e coordenação entre os diferentes elementos da equipe médica e de enfermagem, para lograr o objetivo final de melhorar a assistência ao doente grave.
Dessa forma, a simulação médica é um método de treino e aprendizagem cada vez mais adotado em diversos centros em detrimento da forma tradicional de ensino see one, do one, teach one1.
Historicamente, as simulações remontam à década de 1940, quando começaram a ser utilizadas na educação na área militar2. Posteriormente, na década de 1980, nasceu o conceito de medicina de emergência. Essa inovação foi potenciada pelo aumento de centros de trauma nos anos 19903.
Paralelamente ao incremento desses centros, assistiu-se a uma redução progressiva do número de pacientes críticos nas urgências hospitalares, resultando em menor contato dos profissionais de saúde com patologia grave e emergente. Por isso, e coincidente com o grande desenvolvimento tecnológico, as simulações atingiram o seu potencial de evolução2.
A popularidade alcançada pelas simulações prende-se às suas caraterísticas: é uma forma de aprendizagem ativa, proporcionando experiências repetidas na primeira pessoa; permite receber feedback imediato em função das decisões tomadas; proporciona realização de um debriefing para refletir acerca do benefício/malefício das atitudes tomadas e ponderar outras que poderiam ter sido escolhidas; provoca elevadas expectativas face aos objetivos previamente estabelecidos; e favorece a colaboração entre os diferentes profissionais propiciando o desenvolvimento de um trabalho multidisciplinar2. A realização das simulações sob orientação de profissionais com formação adequada permite retirar o máximo benefício desses treinos, identificar atitudes menos corretas e proporcionar reflexão e oportunidade para a correção dos erros em ambiente controlado.
Essa popularidade difundiu-se também na área pediátrica. Tal fato pode ser observado em inúmeras publicações literárias que expõem um recurso cada vez mais contínuo às simulações. Esse recurso progressivo às simulações correlaciona-se também com o fato de o contato com a SE ser cada vez mais limitado durante a formação específica em pediatria, resultando em carência de experiência em procedimentos e técnicas de reanimação4. Dessa forma, se por um lado nos hospitais universitários a SE tem uma utilização mais frequente devido ao número elevado de casos encaminhados pela rede de referenciação, naqueles não universitários e mais periféricos a SE é menos utilizada por depender apenas dos casos locais5. Assim, o recurso a simulações praticadas em ambiente seguro e que reproduzem situações reais tem sido uma ferramenta utilizada em alguns hospitais para minimizar essa lacuna na formação4.
De forma transversal e independentemente do tipo de hospital, é imperioso que os profissionais conheçam a sua SE, o seu espaço físico, a localização de materiais e de fármacos, que saibam executar procedimentos, comunicar e colaborar entre si5.
Em 2013, o serviço de pediatria do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (CHTMAD) - Unidade de Vila Real, iniciou um projeto de realização regular de simulações na SE a fim de incrementar a aquisição e retenção de conhecimentos, e com o intuito de otimizar a competência dos profissionais de saúde nos cuidados prestados à criança gravemente doente.
Essa iniciativa adquiriu gradualmente uma maior dimensão, como evidencia o convite realizado em outubro de 2014 pelo Centro Hospitalar de São João para demonstração em curso de urgências, a expansão à Unidade de Chaves, ou a colaboração da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) em alguns cenários; assim como uma maior visibilidade da comunidade geral por meio da reportagem retransmitida em julho de 2017 nos telejornais da TVI e Porto Canal (veja no link http://portocanal.sapo.pt/noticia/126534).
Dessa forma, os autores consideram relevante e proveitoso para outros serviços de pediatria, e não só, a partilha da nossa experiência.
MATERIAL E MÉTODOS
Entre dezembro de 2013 e julho de 2017 realizaram-se na SE pediátrica do serviço de urgência do CHTMAD – Unidade de Vila Real, 31 treinos de simulação em dias aleatórios, com a colaboração de médicos e enfermeiros de urgência, organizados por um elemento certificado pelo Grupo de Reanimação Pediátrico (GrP) português, formador do curso EPALS (European Pediatric Advanced Life Support) e acreditado pelo European Ressuscitation Council (ERC).
Antes de cada simulação, o organizador explicava a metodologia a seguir, relembrando a utilização da abordagem ABC, a necessidade de “colocar-se no papel”, a importância de a comunicação ser interativa entre os elementos da equipe, aconselhando a dar ordens dirigidas e sequenciais à medida que iam sendo cumpridas, e o cumprimento de timings de procedimentos e resultados de exames ou terapias para reavaliação.
Posteriormente, descreveu o caso a desenvolver, baseado em situações frequentes de emergência como, por exemplo, insuficiência respiratória, situações de choque, arritmias, estado convulsivo, assim como trauma grave e PCR.
Durante cada simulação, o líder orientou as atitudes da equipe como se de uma situação real se tratasse, tratando os problemas à medida que se identificavam no decurso do caso delineado previamente pelo organizador, e evoluindo este segundo as soluções encontradas para cada um deles como, de forma expectável, aconteceria na realidade.
No fim de cada simulação realizou-se um debriefing que permitiu a cada membro da equipe expor as suas dúvidas e discutir a evolução do caso. A partir de março de 2017 as simulações foram todas filmadas, permitindo realizar um segundo debriefing com a participação dos membros restantes do serviço, enriquecendo dessa forma a evolução de todos.
Em todos os cenários, utilizou-se um manequim de reanimação com simulador de ritmos, monitor de parâmetros vitais (saturação O2, ritmo e frequência cardíaca, tensão arterial) e todo o material necessário conforme o desenvolvimento do caso clínico: adjuvantes de via aérea, insuflador manual, ventilador mecânico, agulha de punção intraóssea, monitor-desfibrilador, soros e descartáveis, entre outros. A dose dos fármacos foi calculada e o tempo de preparação cronometrado, apesar destes serem simulados. As técnicas como manuseamento do ventilador, drenagem torácica, cardioversão/desfibrilação e colocação de acesso intraósseo foram treinadas mediante o caso desenvolvido. Os exames complementares de diagnóstico foram solicitados pelo líder da equipe e, apesar de não serem executados, o organizador forneceu o seu resultado em função da orientação que pretendia de cada caso, como anteriormente referido, sempre respeitando o tempo que habitualmente compete à realização de cada procedimento e à chegada dos exames complementares de diagnóstico.
Em novembro de 2015, todos os profissionais de saúde do serviço foram convidados a preencher um inquérito anônimo acerca das simulações realizadas.
RESULTADOS
Responderam ao inquérito 23 profissionais de saúde. É importante referir que os inquiridos não responderam a todas as questões, motivo pelo qual os autores obtiveram diferentes números absolutos ao longo das respostas.
Dos 23 profissionais que responderam, 14 eram médicos especialistas, 1 interno de formação específica e 8 enfermeiros. Relativamente aos anos de experiência (n = 22): 4 apresentavam menos de 5 anos, 6 entre 5-10 anos e 12 mais de 10 anos.
Relativamente às simulações em que participaram: 6/23 participaram em uma simulação, 4/23 em duas, 6/23 em três, 1/23 em quatro, 1/23 em seis; e 5/23 dos inquiridos não participaram em nenhuma simulação.
Cerca de 90% dos inquiridos realizou o último curso de suporte avançado de vida entre 1-5 anos; 14/16 o neonatal e 15/19 o pediátrico.
A média de simulações lideradas por cada médico especialista foi de 1,3 (mínimo 0, máximo 3).
A explicação e informação prévia às simulações (briefing) foram consideradas úteis (11/18). O grau de confiança relativa ao conhecimento geral da SE melhorou após as simulações (18/18) e a maioria dos inquiridos considerou correta a localização da SE no SU (10/17) bem como adequada a localização do material na SE (12/18) (Figura 1).
Figura 1. Opiniões relativas ao decurso das simulações
No que diz respeito à simulação: 8/17 dos inquiridos considerou ajustados os cenários comparativamente à realidade; 14/18 achou o ambiente no decurso das simulações apropriado, sem demasiadas interrupções e com fácil entendimento entre os participantes (Figura 1) e a maioria considerou que as simulações permitiram o seu aperfeiçoamento na realização de técnicas, com especial ênfase na utilização do ventilador, cardioversor/desfibrilador e colocação de dreno torácico (Figura 2).
Figura 2. Grau de confiança relativa à utilização das técnicas
Relativamente à apreciação individual dos comportamentos e atitudes durante a simulação: a maioria dos inquiridos considerou que estas reduziram a ansiedade (11/17), aumentaram a capacidade de organização na SE (9/17) e a capacidade de liderança da equipe (9/17). Por outro lado, acharam que não existiam diferenças significativas antes e após as simulações, relativamente: à prescrição/preparação de medicação (12/17), capacidade de participar no cuidado ao doente (10/17), feedback médico/enfermeiro (8/17) e comunicação de indicações (14/17). Em todas as circunstâncias os inquiridos consideraram sentir-se confortáveis.
Os protocolos e informações disponíveis na SE foram considerados profícuos (7/17) mas insuficientes. Apreciação semelhante foi feita relativamente aos cenários utlizados (Figura 3).
Figura 3. Considerações relativas à realização das simulações
Durante o debriefing, a maioria (10/18) sentiu-se muito confortável em colocar dúvidas, e 7/17 reconheceram que foi fácil reconhecer os erros (Figura 1). O debriefing foi considerado muito útil (9/17) (Figura 3).
Quanto a uma apreciação global: 10/17 consideraram vantajoso o impacto das simulações na melhoria da segurança da criança na SE e 9/17 consideraram muito úteis as simulações na avaliação da competência dos profissionais nos cuidados à criança gravemente doente.
DISCUSSÃO
Dessa forma, os autores puderam apurar que as simulações realizadas de forma sistemática e regular, com um elevado nível de exigência, promovem um significativo grau de ansiedade que motiva os participantes a alcançarem os objetivos previamente definidos. O briefing é essencial para controlar essa ansiedade e assim conseguir obter o máximo proveito do exercício. Dessa forma, é permitido aos profissionais atuar sem receio de errar (caso se tratasse de um paciente real) e simultaneamente o treino repetido e controlado proporciona uma aprendizagem mais consolidada e uma performance mais consistente e sólida em situações futuras2. Além disso, as simulações facilitam também a realização de programas de capacitação e treino relativamente à realização de procedimentos e técnicas, manuseamento de aparelhos e cálculo e administração de fármacos utilizados em situações de emergência, uma vez que os pacientes pediátricos pertencem ao grupo com maior risco de padecer com erros de medicação6.
A realização do debriefing faculta a oportunidade de realizar uma avaliação formativa com vista a melhorar planos de atuação individualizados e em equipe.
É importante também salientar que, apesar de poucas instituições terem possibilidade financeira de adquirir simuladores médicos avançados, é possível organizar cenários baseados em emergências reais com recurso a materiais menos dispendiosos2.
A análise efetuada pelos autores corrobora a literatura, realçando a importância e a pertinência das simulações para os profissionais de saúde4.
No entanto, como o desenvolvimento da aprendizagem baseada na simulação implica um elevado grau de empenho dos profissionais, nomeadamente na conciliação da sua atividade profissional com essa atividade, consideramos que devem ser feitos mais esforços no intuito de aumentar a frequência e diversidade das simulações. Além disso, tratando-se de uma atividade ainda pouco divulgada em nível nacional e que coloca os profissionais perante os seus pares, gerando consequentemente alguma ansiedade, a adesão a esse tipo de treino requer motivação e empenho de todos. No nosso serviço, observou-se uma crescente popularidade e aceitação do treino de simulações entre os participantes.
A par da literatura com a realização desse trabalho, identificamos alguns aspectos a melhorar, nomeadamente: o envolvimento de forma mais participativa dos internos de formação específica em pediatria, a melhoria e otimização dos cartazes de apoio disponíveis na SE, a necessidade de realizar mais treinos de simulação e de criar maior variedade de cenários.
Ao partilhar a nossa experiência, pretendemos motivar outros serviços a seguirem o nosso exemplo e demonstrar, com esse estudo, que não é imprescindível a existência de manequins de simulação avançada para a realização de treinos de simulação. É indispensável e insubstituível, sim, a criação e organização de cenários apropriados, sob a orientação de formadores creditados e que todos aqueles que trabalham no SU se sintam envolvidos nesse projeto.
Sendo o estudo e treino regulares a chave para fortalecer e manter as competências, quer cognitivas quer práticas, os autores acreditam que, com a sua partilha, esses treinos se possam implementar de forma sustentada em outros serviços e contribuam proficuamente na formação dos profissionais de saúde, obtendo uma resposta mais rápida, correta e coordenada entre os elementos da equipe de urgência e, finalmente, uma abordagem mais eficaz no cuidado e segurança da criança gravemente doente.
“O que esse estudo traz de novo”
As simulações melhoraram o desempenho dos profissionais como equipe, incluindo a interiorização da sequência de avaliação e eventuais tratamentos, assim como a comunicação e coordenação entre os diferentes elementos da equipe médica e de enfermagem.
É possível organizar cenários baseados em emergências reais com recurso a materiais menos dispendiosos, se forem criados e organizados cenários apropriados, sob a orientação de formadores creditados e se todos aqueles que trabalham no SU se sentirem envolvidos no projeto.
A implementação desses treinos contribui proficuamente na formação dos profissionais de saúde, nomeadamente internos de formação específica, promovendo o contato com a SE e a realização de procedimentos e técnicas de reanimação.
REFERÊNCIAS
1. Weinberg ER, Auerbach MA, Shah NB. The use of simulation for pediatric training assessment. Curr Opin Pediatr. 2009; 21(3):282-7.
2. Bello SC. Utilización del espácio en salas de emergências de hospitales. Revista Tecnologia y Construcción. 2009; 25(3):25-45.
3. Mills DM, Williams DC, Dobson JV. Simulation training as a mechanism for a procedural and resuscitation education for a pediatric residents: a systematic review. American Academy of Pediatrics. 2013; 3(2):167-76.
4. Riccetto AGL, Zambon MP, Marmo DB, Brandão MB, Queiroz RA, Reis MC, et al. Sala de emergência em pediatria: casuística de um hospital universitário. Rev Paul Pediatria. 2007; 25(2):156-60.
5. Dull KD, Bachur RG. Simulation in the Pediatric Emergency Department. Pediatr Crit Care Med. 2011; 12:e116-e121.
Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Serviço de Pediatria - Vila Real - Trás-os-Montes e Alto Douro - Portugal
Endereço para correspondência:
Cristiana Ferreira Martins
Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro
Rua dos Lagoeiros, 43, Vila Real, Portugal
E-mail: cristianamartins@ymail.com
Data de Submissão: 29/03/2018
Data de Aprovação: 29/05/2018