ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2018 - Volume 8 - Número 3

Quando pensar em hemofilia no período neonatal? - Relato de caso

When to consider hemophilia in the neonatal period? a case report

RESUMO

OBJETIVO: Relatar o caso de um recém-nascido internado em hospital universitário para investigação de discrasia sanguínea, descrevendo a evolução clínica e laboratorial até o diagnóstico final de hemofilia.
DESCRIÇÃO DO CASO: Recém-nascido de termo, do sexo masculino, adequado para idade gestacional, sem intercorrências perinatais, diagnosticado com sífilis congênita, apresentando equimoses em locais de punção venosa, cefalo-hematoma, hemartrose em tornozelo direito, enduração em membro superior direito e discrasia sanguínea durante a internação hospitalar. Após dosagens de fatores de coagulação, foi diagnosticado com deficiência de fator IX: hemofilia B moderada ou doença de Christmas. Recebeu alta após melhora clínica para seguimento em ambulatório de hematologia.
DISCUSSÃO: A presença de sangramentos anormais em recém-nascidos deve sempre levantar a suspeita do diagnóstico de hemofilia, uma vez que o diagnóstico precoce da doença é de suma importância na prevenção de eventos hemorrágicos.

Palavras-chave: Hemofilia B, Hemorragia, Recém-nascido.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report the case of a newborn admitted to a university hospital for blood dyscrasia, describing the clinical, laboratory and final diagnosis of hemophilia.
CASE STUDY: Male newborn, term infant, without perinatal intercurrences, diagnosed with congenital syphilis, showing ecchymoses at sites of venous puncture, cephalohematoma, right ankle hemarthrosis, right upper limb induration and dyscrasia during hospital stay. After dosing of coagulation factors, he was diagnosed with factor IX deficiency: moderate hemophilia B or Christmas disease. He was discharged after clinical improvement for hematology outpatient follow-up.
DISCUSSION: The presence of abnormal bleeding in newborns should always raise the suspicion of the diagnosis of hemophilia, since the early diagnosis of the disease is of paramount importance in the prevention of hemorrhagic events.

Keywords: Hemophilia B, Hemorrhage, Infant, Newborn.


INTRODUÇÃO

A hemofilia é uma doença hereditária recessiva, ligada ao cromossomo X, que acomete indivíduos do sexo masculino; mas pode ocorrer por mutação ao acaso, afetando também meninas. Trata-se de um distúrbio hemorrágico, com baixa atividade de fatores de coagulação, interferindo no sistema de hemostasia. A hemofilia A ocorre pela deficiência de fator VIII e a hemofilia B, do fator IX. A doença não é comumente diagnosticada em neonatos e deve ser investigada se houver sangramento anormal, sendo a hemorragia intracraniana a manifestação clínica mais frequente no recém-nascido (RN) com hemofilia¹. O diagnóstico ocorre mais comumente entre o primeiro e o segundo ano de vida quando o lactente, ao iniciar a deambulação, provoca lesões articulares típicas da doença, a hemartrose. No Brasil há cerca de 16.000 hemofílicos, sendo 52% tipo A e 10% tipo B2. Na hemofilia B, a incidência é de 1 caso para aproximadamente 30.000 a 40.000 nascimentos do sexo masculino3.

A severidade da doença tem por base o grau de deficiência dos fatores de coagulação. Níveis de fator VIII e IX inferiores a 1% do normal (50-100 U/dL) indicam hemofilia grave. Se tais fatores tiverem de 1% a 5% do normal, o paciente é classificado com doença moderada, e se a variação for de 5% a 30%, leve. A falta ou redução da atividade dos fatores VIII e IX interfere na formação de trombina e, consequentemente, na conversão de fibrinogênio em fibrina, ou seja, o coágulo não se forma, facilitando o sangramento4-6.

O objetivo deste trabalho foi relatar o caso de um recém-nascido internado em hospital universitário para investigação de discrasia sanguínea, descrevendo a condução da investigação até o diagnóstico final de hemofilia B.

O presente estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (CAAE:79103717.5.0000.5243). Os autores declaram não haver conflito de interesse.


DESCRIÇÃO DO CASO

Neonato do sexo masculino, nascido por via vaginal, de termo, Apgar de primeiro e quinto minutos: 7 e 8, com peso de 3.590 g, adequado para idade gestacional, sem intercorrências perinatais. Durante a gestação, a mãe tratou sífilis adequadamente, VDRL de admissão com titulação de 1/64. O VDRL no RN foi 1/4 em sangue periférico e negativo no líquor. Durante internação para tratamento de sífilis congênita, evoluiu com palidez cutaneomucosa, equimoses nos locais de punção venosa, tumoração na cabeça em região parietal direita sugestiva de cefalo-hematoma, edema em articulação de tornozelo direito (hemartrose) e enduração em membro superior direito. Exceto pelas equimoses, as demais lesões não se correlacionavam com sítios de punção. Foram realizados teste de triagem auditiva neonatal, oximetria de pulso e teste do reflexo vermelho, com resultados normais. Exames laboratoriais evidenciaram discrasia sanguínea com: hemoglobina 11,8, hematócrito 34,9%, plaquetometria 410.000, leucometria 18.820 (0/3/0/0/1/57/35/4), TAP 66,1%, PTT 129 segundos, relação 5,64, INR 1,33. Com 15 dias de vida, foi transferido da maternidade onde nasceu para o hospital universitário Antônio Pedro para investigação diagnóstica. Exames de admissão com hemoglobina 13,1, hematócrito 40,8%, plaquetometria 413.000, leucometria 19.800 (0/10/0/0/3/36/38/13), INR 1,0, PTT não detectável, TAP 102%. Exames de imagem solicitados – radiografia de crânio, ossos longos e pés, ultrassonografia abdominal – sem alterações, com exceção de ultrassonografia transfontanela e tomografia computadorizada de crânio cujos laudos foram, respectivamente, hematoma subgaleal parietal posterior direito e cefalo-hematoma. Apresentou boa evolução do quadro, sem novos sangramentos, recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial no Instituto de Hematologia, onde foi confirmado o diagnóstico de deficiência de fator IX: hemofilia B moderada após dosagem dos fatores de coagulação: fator IX = 2,3% e fator VIII = 213,9%. Não há casos semelhantes no histórico familiar.


DISCUSSÃO

Trata-se de um paciente masculino, sem história familiar da doença, como a quase totalidade dos hemofílicos, visto que cerca de 30% dos casos de hemofilia são originados por mutação ao acaso, não havendo necessidade de um caso prévio. Nos casos de transmissão hereditária da doença, as mulheres tendem a ser apenas portadoras, enquanto os homens desenvolvem a patologia4,7.

O diagnóstico ocorre frequentemente em lactentes quando estes iniciam a deambulação devido a traumas subsequentes, tendo em vista o baixo índice de suspeição no período neonatal. Sangramentos anormais, espontâneos ou iatrogênicos, em recém-nascidos apontam para a possibilidade de distúrbios hemorrágicos e devem ser prontamente investigados para que os casos positivos da doença iniciem o tratamento o mais brevemente possível. Neste relato, o neonato apresentou sangramento subgaleal (cefalo-hematoma), tipicamente encontrado em neonatos com hemofilia. Os cefalo-hematomas podem induzir ao óbito por choque hipovolêmico se permanecerem sangrando1,5,8. O paciente apresentou ainda outros sangramentos frequentemente relatados e que auxiliaram na suspeita diagnóstica, como hematoma muscular, hemartrose, equimoses ou hematomas em locais de punção venosa5.

A avaliação laboratorial do sistema de coagulação também demonstra importância na investigação de hemofilia. O tempo de protrombina (TAP) avalia via extrínseca da cascata de coagulação, enquanto o tempo de tromboplastina parcial ativada (PTT) avalia a via intrínseca. Em pacientes que apresentem sangramento com plaquetometria normal, TAP normal e PTT alargado, deve-se suspeitar de deficiência de fatores VIII, IX, XI ou presença de inibidor da via intrínseca. Quanto aos valores de referência, sabe-se que variam entre laboratórios3,9. No paciente apresentado, a deficiência de fator IX confirmou o diagnóstico de hemofilia B, também conhecida por doença de Christmas2,10.

Após o diagnóstico, o tratamento sob demanda ou a profilaxia devem ser iniciados. A profilaxia é feita com o objetivo de prevenir novas lesões articulares, e consiste na administração regular dos fatores de coagulação, podendo ser contínua (pelo menos 45 semanas de tratamento) ou intermitente (menos de 45 semanas de tratamento), estando associada a melhores desfechos quando comparada ao tratamento sob demanda, no momento em que a hemorragia está acontecendo, ou como para prevenir um evento, tal como em pré-operatório. O tratamento preventivo reduz o número de eventos hemorrágicos, melhorando a qualidade de vida dos pacientes, sobretudo quando iniciado precocemente. A forma de repor os fatores de coagulação, tal como o intervalo de doses e a quantidade, é variável conforme o tipo de hemofilia, gravidade e estilo de vida de cada indivíduo, e a reposição dos FC se baseia no peso do paciente, na atividade do fator de coagulação e na clínica. Além disso, há possibilidade de autoinfusão domiciliar dos FC por pacientes que se adequem às condições para fazê-lo3. O tratamento, atualmente, baseia-se na reposição dos FC deficitários, de plasma humano purificado. A reposição do fator IX na hemofilia B é de 20-40 UI/kg/dia, e sua meia-vida é de 18-24 h, sendo, portanto, administrado de duas a três vezes por semana, também conforme a gravidade e estilo de vida de cada paciente1,11.

A grande carga de transfusões nos hemofílicos, com subsequente produção de aloanticorpos da classe IgG (chamados inibidores) que neutralizam o efeito dos fatores de coagulação repostos aumenta o risco de falha terapêutica11. O desenvolvimento de produtos com meia-vida prolongada reduziram a demanda de tratamento em muitos pacientes. Naqueles com hemofilia B, níveis terapêuticos podem ser obtidos com reposição a cada 2 semanas. Entretanto, o alto custo da terapia profilática e o risco de sangramento devido à baixa coagulação incentivaram pesquisas na área da terapia genética12.

Atualmente, concentrados recombinantes, de maior pureza e melhor cinética, vêm ganhando espaço; e para o futuro, espera-se que a terapia genética permita ao próprio paciente expressar o FC deficitário. Assim, técnicas utilizando vetor viral para o gene têm sido utilizadas com bons resultados terapêuticos, baixa toxicidade e, em princípio, sem surgimento de inibidor, levando à esperança de cura da doença. No entanto, além do alto custo, ainda há muita variabilidade entre os indivíduos, sendo necessário mais estudos para que se defina uma nova terapia. Nessa mesma condição encontram-se as pesquisas de terapias baseadas em células-tronco hematopoiéticas ou em vetores lentivirais, ainda mais promissores12.

Sendo assim, o diagnóstico precoce permite o início da profilaxia dos sangramentos por meio da reposição regular dos fatores de coagulação, reduzindo as possíveis complicações e proporcionando melhor qualidade de vida ao paciente. A atuação do neonatologista reconhecendo sinais sugestivos de sangramento anormal em neonatos é fundamental, principalmente naqueles com PTT alargado isoladamente, sempre devendo atentar para o fato de que pode não haver história familiar de hemofilia e que casos mais graves podem evoluir com hemorragias intracranianas maciças, levando o RN ao óbito.


REFERÊNCIAS

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12. Marijke van den Berg H. A cure for hemophilia within reach. N Engl J Med; 2017 Dec.










1. Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Pós-graduação em Pediatria - Niterói - RJ - Brasil
2. Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Graduação em Medicina - Niterói - RJ - Brasil
3. Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Departamento Materno-Infantil - Niterói - RJ - Brasil

Endereço para correspondência:
Roberta de Almeida Simões
Universidade Federal Fluminense
Av. Marquês do Paraná, 303 - Centro
CEP: 24220-000, Niterói - RJ, Brasil
E-mail: rsimoesped@gmail.com

Data de Submissão: 07/04/2018
Data de Aprovação: 19/06/2018