ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Introduçao à Metodologia Científica - Ano 2012 - Volume 2 - Número 1

Estudos transversais de prevalência e de diagnóstico

Cross-sectional studies of prevalence and diagnostic


Muito bem explicitado no artigo Delineamento de estudos científicos da Residência Pediátrica, os estudos transversais são empregados para determinar incidências, prevalências, associação entre variáveis e até mesmo a acurácia de método de diagnóstico ou de rastreamento1.

Os estudos transversais ou de prevalência retratam, em um momento estabelecido, um determinado grupo de indivíduos (população) quanto à presença de determinada condição ou doença, com descrição de número de casos e até de coeficientes de incidência, de prevalência e de mortalidade. Como exemplo, o estudo de casos de tuberculose em menores de 15 anos notificados no município do Rio de Janeiro, no final do século passado, permitiu o cálculo de coeficientes de incidência e de tendência crescente destes2. Estes estudos realizam o diagnóstico situacional do problema e, a partir deste, embasar o pesquisador, por meio de novos delineamentos, a conhecer as causas/fatores de risco, determinar a terapia útil e a orientação prognóstica.

Este artigo pretende apresentar os estudos diagnósticos ou, melhor dizendo, "como analisar estudos sobre testes diagnósticos". A prática da Medicina Baseada em Evidências possibilita localizar as melhores evidências externas que responderão às perguntas clínicas.

A pergunta deste artigo é: Qual o melhor teste diagnóstico? Lembrando que a determinação de um diagnóstico é um processo imperfeito, no qual, na maioria das vezes, não se tem a certeza, mas sim uma probabilidade.

Ao avaliar criticamente a evidência sobre testes diagnósticos ou de rastreamento (screening), dois pontos iniciais deverão ser analisados: a validade e a utilidade.

1. A Validade (aproximação à verdade) - deve se procurar saber se houve uma comparação cega e independente entre o teste diagnóstico em questão e um padrão de referência (padrão ouro) para o reconhecimento da doença.

Todos os pacientes do estudo deverão ser submetidos aos dois exames diagnósticos, aquele que está em estudo e o teste de referência, isto é, o teste que é reconhecidamente o melhor para definir a doença, aquele mais próximo à certeza diagnóstica (padrão ouro, gold standard, teste padrão). Todos os pacientes devem ter realizado o padrão-ouro. O padrãoouro pode ser um teste barato e de fácil execução, como cultura bacteriana, ou caro e complexo, como uma biópsia. A comparação cega implica que os pesquisadores que analisam e comparam os resultados dos dois testes não devem ser os mesmos que aplicam e interpretam os testes, para que não haja vícios de interpretação conscientes ou inconscientes3,4.

2. A Utilidade (aplicabilidade clínica) - deve se procurar saber se os pacientes da amostra são semelhantes aos seus e se os resultados dos testes servem para direcioná-los para o tratamento ou não.

Os pacientes estudados devem apresentar sinais e sintomas habitualmente encontrados na doença em estudo, os sinais e sintomas não devem ser atípicos ou raros; da mesma forma, os pacientes não devem ser assintomáticos3-5.

Após respondidos estes primeiros itens, pode-se analisar os resultados a partir dos dados oferecidos, que geralmente são apresentados no resumo do artigo.

Voltando à pergunta Qual o melhor teste diagnóstico? É obrigatória a complementação à pergunta: o melhor teste diagnóstico para qual situação?

Há, pelo menos, três situações corriqueiras de verificação de resultado de exames, como exemplo, a glicosúria:

  • Grupo 1. Determinar o diagnóstico de Diabetes Mellitus em pacientes com sinais e sintomas (polidpsia, poliúria, etc.) - Busca do diagnóstico.
  • Grupo 2. Determinar a possibilidade de Diabetes Mellitus em avaliações desportivas (adolescentes atletas) - Rastreamento (screening).
  • Grupo 3. Determinar efetividade do uso de insulina em pacientes com o diagnóstico confirmado de Diabetes Mellitus - Acompanhamento de terapêutica.


  • A grande diferença entre estes três grupos é a população em questão, isto é, a chance da glicosúria ser positiva é maior no grupo 1, em comparação ao grupo 2 (probabilidade pré-teste). Esta probabilidade é equivalente à prevalência, isto é, a proporção de portadores de uma doença numa determinada população em um determinado momento. Assim, o desempenho de um teste diagnóstico depende da prevalência da doença na população em que é aplicado. A análise do resultado do grupo 3 é individualizada.

    Mas o resultado negativo no grupo 1 não invalida o diagnóstico de Diabetes Mellitus, um indivíduo pode ser diabético e ter um alto limiar renal para a glicose (falso-negativo). Da mesma forma, o resultado positivo para o grupo 2 não confirma o diagnóstico, o indivíduo pode ter um baixo limiar renal para a glicose (falso-positivo). Para ambas as situações, a confirmação diagnóstica é necessária (o padrão-ouro) com o teste de tolerância à glicose, mas nem sempre realizada, seja por motivos do paciente, da indicação médica ou do acesso ao exame. Portanto, a glicosúria ainda é um teste rápido e utilizado, mas tem sido substituído pela dosagem da glicemia capilar (hemoglicoteste), por apresentar número menor de falso-positivos e falso-negativos, isto é, um teste com valores de sensibilidade e especificidade maiores que a glicosúria6.

    Muito comumente, o teste diagnóstico é visto como um exame de laboratório. Mas para análise de diagnóstico, neste artigo, este termo poderá ser usado igualmente para dados de uma história clínica (ex: tosse há mais de 2 semanas, pensando em tuberculose), do exame físico (ex: taquipneia, pensando em pneumonia) ou exame de imagem (ex: condensação na pneumonia; cavitação na tuberculose). Quando estes testes diagnósticos são positivos, deve-se conhecer o Valor Preditivo Positivo, isto é, qual a probabilidade de que a pessoa tenha a doença6,7.

    Até aqui, já foram apresentados os termos falsopositivo, falso-negativo, sensibilidade, especificidade e valor preditivo. A compreensão destes termos em tabelas e interpretações pode ser facilitada nas Tabelas 1 e 2. Há sempre duas possibilidades do resultado do teste diagnóstico estar correto: verdadeiro-positivo e verdadeiro-negativo e duas de estar errado: falso-positivo e falso-negativo.






    A APLICAÇÃO DE TESTES SENSÍVEIS

    Um teste sensível (frequentemente positivo na presença de doença) é o que deve ser escolhido quando não se quer deixar de diagnosticar ninguém; isto pode abranger um certo número de falso-positivos, que serão excluídos posteriormente. Os testes sensíveis também são indicados no rastreamento de doenças assintomáticas e na investigação inicial de uma doença com grande número de possibilidades diagnósticas, isto é, grande número de diagnósticos diferenciais. Assim, um teste sensível é mais útil quando seu resultado é negativo7-9.

    Exemplo: Elisa para HIV tem sensibilidade de 99%, portanto de cada 100 infectados com HIV, 99 terão teste positivo e 1 infectado será falso-negativo. Ou seja, um teste diagnóstico com grande sensibilidade terá um baixo número de resultados falso-negativo.


    A APLICAÇÃO DE TESTES ESPECÍFICOS

    Um teste específico raramente é positivo na ausência da doença. Isto é particularmente importante quando um resultado falso-positivo implicaria em uma grande agressão física, emocional ou financeira, levando a erros terapêuticos. Assim, um teste específico é mais útil quando seu resultado é positivo7-9.

    Exemplo: Western-Blot para HIV tem especificidade de 98%. Portanto, de cada 100 indivíduos saudáveis, 98 terão teste negativo e 2 indivíduos saudáveis serão falso-positivos. Com isso, um teste diagnóstico com grande especificidade terá baixo número de resultados falso-positivos.


    VALIDAÇÃO DAS PROPRIEDADES SENSIBILIDADE E ESPECIFICIDADE

    A sensibilidade e especificidade de um teste são, habitualmente, inferiores a 100%. Este fato é de difícil compreensão pelos nossos pacientes: um indivíduo saudável pode ter um teste positivo ou um doente pode ter um teste negativo. Com esta abordagem, é compreensível que não haja valores absolutos para validar estas propriedades do teste, pois são dependentes do motivo que levou à solicitação do exame6.

    Na prática diária, pessoas procuram o médico para saber se estão doentes e que doença têm. A partir deste encontro, com coleta detalhada da história clínica e a realização de um exame físico minucioso, o médico determina um diagnóstico ou necessita de um exame complementar (o teste diagnóstico). Ao analisar o resultado deste teste diagnóstico, o médico busca saber seu valor preditivo, isto é, caso o resultado seja positivo, qual a probabilidade do indivíduo estar com a doença.

    Bem, com estas poucas orientações, é possível decidir sobre novos testes diagnóstico que, esperamos, surjam no próximos anos (Quadro 1). Além da análise e dos cálculos iniciais, é aconselhável também conhecer o equilíbrio entre sensibilidade e especificidade, pela curva ROC (receiver operator characteristic), a razão de verossimilhança e a análise de testes múltiplos. Mas compartilho da ideia de um dos autores mais conceituados na área, que evitou o aprofundamento sobre estes tópicos durante anos, mas sugere que, a partir do interesse de cada um, basta dedicar uma tarde a compreender estes tópicos da epidemiologia clínica: você só tem a ganhar e seus pacientes, agradecem6.




    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Cruz AS. Delineamento de estudos científicos. Resid Pediatr. 2011;1(2):11-4.

    2. Alves R, Sant'Anna CC, Cunha AJLA. Epidemiologia da tuberculose infantil na cidade do Rio de Janeiro, RJ. Rev Saúde Públ. 2000;34(4):409-10.

    3. Castro AA. Avaliação crítica da literatura: roteiro para a sessão de artigos de revista. 2003. Disponível em: URL: http://www.metodologia.org. Acesso em: 23 março de 2011.

    4. Nobre MRC, Bernardo WM, Jatene FB. A prática clínica baseada em evidências: Parte II. Avaliação crítica das informações de pesquisas clínicas. Rev Ass Med Bras. 2004;50(2):221-8.

    5. Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL. User's guide to the medical literature: III. How to use an article about a diagnostic test. A. Are the results of the study valid? Evidence-Based Medicine Working Group. JAMA 1994;271(5):389-91.

    6. Greenhalgh T. Como ler artigos científicos: fundamentos de medicina baseada em evidências. 3. ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.

    7. Fletcher RH, Fletcher SW, Wagner EH. Epidemiologia Clínica: Elementos Essenciais, 4a. ed. Porto Alegre: Artmed; 2006.

    8. Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL. User's guide to the medical literature: III. How to use an article about a diagnostic test. B. What were the results and will they help me caring for my patients. Evidence-Based Medicine Working Group.JAMA 1994;271(9):703-7.

    9. How to read clinical journals: II. To learn about a diagnostic test. Can Med Assoc J. 1981;124(6):703-10.










    Médica – NUEDRH/ES e UFRJ. Pós-doutoranda em Ensino e Saúde da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).