Relato de Caso
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Ano 2019 -
Volume 9 -
Número
3
Relato de caso: infecção cutânea por Rhizopus sp em paciente pediátrico
Case report: skin infection by Rhizopus sp in pediatric patient
Aline Mara da Silva Alves1; Bruna Luiza Guerrer1; Adriana Prazeres da Silva2; Haroldo Luiz Lins e Silva3; Mara Luci Goncalves Galiz Lacerda4; Murilo da Silva Alves5
RESUMO
Os autores descrevem o caso de uma criança do sexo feminino, 7 meses, portadora de amiotrofia muscular espinhal que evoluiu com lesões cutâneas pelo agente Rhizopus sp em região de fixação da sonda orogástrica, não responsiva aos antibióticos e curativos. O fungo do gênero Rhizopus sp, ordem Mucorales, é responsável por infecções oportunistas graves em pacientes com deficiência na capacidade de resposta imune. Este estudo tem por finalidade relatar uma infecção cutânea agressiva (mucormicose/zigomicose) causada por esse fungo, com resolução por completo das lesões após terapêutica adequada e prolongada. Por fim, o artigo pretende abordar a importância de mais estudos já que, por se tratar de infecção incomum, não há na literatura tratamento padronizado.
Palavras-chave:
mucormicose, zigomicose, Rhizopus, atrofia muscular espinal.
ABSTRACT
This paper describes the case of a 7-month-old female infant diagnosed with spinal muscular atrophy who developed cutaneous infection around the orogastric tube fixation site caused by Rhizopus sp. unresponsive to therapy with antibiotics and dressing changes. Fungi of the genus Rhizopus in the order Mucorales cause severe opportunistic infection in immunodeficient individuals. This paper narrates a case of aggressive cutaneous Rhizopus infection (mucormycosis/ zygomycosis) resolved after proper prolonged therapy. More studies on the subject are required, since this is an uncommon infection without an established standard of care published in the literature.
Keywords:
Mucormycosis, Zygomycosis, Muscular Atrophy, Spinal, Rhizopus.
INTRODUÇÃO
Zigomicose é uma infecção grave causada por fungos da classe dos Zigomicetos. A maioria dos casos é causada por membros da ordem Mucorales, principalmente pelas espécies do gênero Rhizopus, os quais são essencialmente oportunistas1.
A prevalência das mucormicoses é estimada em 1,7 casos/milhão de pessoas por ano, segundo estudo realizado nos Estados Unidos, mas pode chegar a 2-3% em pacientes que receberam transplante de medula óssea2. Outros fatores de risco associados ao aumento da ocorrência de infecção por este agente são: diabetes, leucemia, linfoma, outras doenças hematológicas malignas, assim como neutropenia severa e tratamento com corticosteroides. Na faixa etária pediátrica, foi relatada associação com baixo peso ao nascer, diarreia e desnutrição3.
A forma primariamente cutânea é marcada pela presença de extensa angioinvasão com trombose de veias e destruição tecidual precoce. Além disso, as mucormicoses cutâneas são as que apresentam os mais baixos índices de letalidade e estão pouco associadas a fatores predisponentes2-4.
A abordagem terapêutica apoia-se na tentativa de atenuar o quadro predisponente, promover o debridamento cirúrgico precoce e iniciar imediatamente a terapêutica antifúngica2,4,5. A escolha medicamentosa ainda se baseia em relatos de caso e na experiência clínica de cada serviço, já que estudos clínicos de relevância estatística nas mucormicoses são de difícil realização2-4.
RELATO DE CASO
Paciente M.A.M., 7 meses, portadora de atrofia muscular espinhal, deu entrada no pronto-socorro com quadro de pneumonia. Após 23 dias de tratamento com antibiótico, evoluiu com insuficiência respiratória, necessitando de cuidados intensivos. Durantea internação,aproximadamente ummês após a admissão, desenvolveu mancha eritematosa (Figura 1) com crescimento rápido em região malar direita (local de fixação da sonda orogástrica). A lesão evoluiu para ulceração circular de aproximadamente 2,5cm de diâmetro, com centro necrótico (Figura 2). Alguns dias depois, desenvolveu lesão semelhante em região malar esquerda, mas com menor diâmetro (1,5cm). Estava em uso de linezolida, meropenem e polimixinab para sepse de foco pulmonar.
Figura 1. Lesão inicial.
Figura 2. Evolução da lesão em região malar direita.
Após avaliação do especialista, foi aventada hipótese diagnóstica de infecção fúngica por Fusarium, sendo iniciada imediatamente anfotericina B e programada biópsia do local com solicitação de cultura do material. Houve identificação do fungo Rhizopus sp na cultura, optando-se por manter o esquema antifúngico e antibiótico. No quarto dia após o diagnóstico foi realizado debridamento cirúrgico, traqueostomia e gastrostomia - estas últimas a fim de poupar a face de novos traumas. No 21º dia da anfotericina B as lesões já haviam melhorado significativamente. No entanto, devido à cicatrização incompleta, optou-se por manter mais 7 dias, completando 28 dias do antifúngico. No final do tratamento as lesões estavam praticamente cicatrizadas, sendo mantidos apenas curativos até a completa resolução.
DISCUSSÃO
Na faixa etária pediátrica, a forma mais comum de apresentação das zigomicoses/mucormicoses é a cutânea, enquanto nos adultos há predominância da forma rinocerebral3-5. Além da divergência do local da infecção, também tem sido evidenciado crescente aumento do número de infecções na população adulta, enquanto a incidência não parece ter se modificada na população pediátrica6.
Dentro do contexto hospitalar, a zigomicose cutânea tem grande importância, uma vez que a inoculação direta é a rota usual de contaminação, independentemente da condição imunológica do paciente. Indivíduos imunocompetentes tendem a desenvolver infecções secundárias a traumas, queimaduras, uso de cateteres venosos, úlceras de estase ou abrasões por curativos estéreis e/ou bandagens7.
Tipicamente, os agentes da mucormicose não conseguem ultrapassar uma barreira íntegra, evidenciando que um paciente com perda da barreira protetora da pele tem maior risco de desenvolver a infecção cutânea, como aconteceu com a paciente supracitada devido às trocas frequentes da fixação da sonda orogástrica2.
Após ultrapassar a epiderme, o fungo pode invadir subcutâneo, gordura, músculo, fáscia e até ossos adjacentes. Alcançando a rede vascular, pode também causar infecção hematogênica disseminada. Levando em consideração essa capacidade de invasão, a paciente em questão foi submetida à tomografia computadorizada de face no momento do diagnóstico e após 2 semanas de tratamento, com comprometimento apenas de subcutâneo em ambas regiões malares.
Evitar a progressão da infecção para planos mais profundos associando-se terapia antifúngica adequada, tratamento cirúrgico precoce e terapias adjuvantes é essencial para o sucesso terapêutico. A lesão clássica progride de uma placa purpúrica ou avermelhada (com ou sem pústulas) para necrose com formação de úlcera. Por atingir tecidos profundos, devem ser afastados outros agentes etiológicos como Aspergillus e Fusarium7. No presente caso foi realizado diagnóstico pela cultura de tecido retirado por biópsia.
Sabendo que a forma cutânea isolada tem bom prognóstico e baixa mortalidade com debridamento cirúrgico adequado e precoce2, a paciente foi abordada no 4º dia pós-diagnóstico (já em uso de terapia antifúngica). Nessa ocasião, além do debridamento das bordas, foi retirada lesão arredondada, esponjosa, de aspecto esbranquiçado e facilmente destacável das estruturas profundas.
Roden et al.3 demonstram em seu estudo índice de sobrevivência de 62% em pacientes que usaram alguma terapia antifúngica; 61% naqueles com uso de anfotericina B desoxicolato; 57% naqueles cuja única terapêutica foi a cirurgia; e 70% naqueles com terapia conjunta de cirurgia e antifúngico. A taxa de sobrevivência nos pacientes sem tratamento algum foi de apenas 3%3.
A respeito da terapia medicamentosa, dados da literatura preconizam o início imediato do tratamento na suspeita da zigomicose, a fim de evitar a forma disseminada e letal da doença8. Há relatos da utilização de anfotericina B desoxicolato, anfotericina lipossomal, anfotericina complexo lipídico, itraconazol, posaconazol e caspofungina. Atualmente, alguns estudos têm demostrando eficácia apenas da classe dos polienos (anfotericina e seus derivados lipídicos) contra os agentes da mucormicose5,6,8. Essa falta de consenso decorre do pouco conhecimento a respeito da biologia molecular dos fungos da classe dos Zigomicetos e dos mecanismos de resistência medicamentosa dos mesmos2.
CONCLUSÃO
Este relato aborda o sucesso terapêutico no tratamento de infecção cutânea causada pelo agente Rhizopus sp ao as sociar anfotericina B desoxicolato ao debridamento cirúrgico precoce. No entanto, é evidente a necessidade de mais estudos em relação aos agentes causadores das zigomicoses, assim como estabelecer tratamentos antifúngicos mais eficazes, principalmente para população pediátrica.
REFERÊNCIAS
1. Ribes JA, Vanover-Sams CL, Baker DJ. Zygomycetes in human disease. Clin Microbiol Rev. 2000;13(2):236-301.
2. Spellberg B, Edwards J Jr, Ibrahim A. Novel perspectives on mucormycosis: pathophysiology, presentation, and management. Clin Microbiol Rev. 2005;18(3):556-69.
3. Roden MM, Zaoutis TE, Buchanan WL, Knudsen TA, Sarkisova TA, Schaufele RL, et al. Epidemiology and outcome of zygomycosis: a review of 929 reported cases. Clin Infect Dis. 2005;41(5):634-53.
4. Marques SA, Camargo RMP, Abbade LPF, Marques MEA. Mucormicose: infecção oportunística grave em paciente imunossuprimido. Relato de caso. Diagn Tratamento. 2010;15(2):64-8.
5. Castrejón-Pérez AD, Welsh EC, Miranda I, Ocampo-Candiani J, Welsh O. Cutaneous mucormycosis. An Bras Dermatol. 2017;92(3):304-11.
6. Prasad PA, Vaughan AM, Zaoutis TE. Trends in zygomycosis in children. Mycoses. 2012;55(4):352-6.
7. Sirignano S, Blake P, Turrentine JE, Dominguez AR. Primary cutaneous zygomycosis secondary to minor trauma in an immunocompromised pediatric patient: a case report. Dermatol Online J. 2014;20(6):pii:13030/qt4r2455h9.
8. Rogers TR. Treatment of zygomycosis: current and new options. J Antimicrob Chemother. 2008;61 Suppl 1:i35-40.
1 Residente de Pediatria
2 Dermatopediatra - Médico
3 Pediatra
4 Infectologista - Médico
5 Acadêmico de Medicina
Endereço para correspondência:
Aline Mara da Silva Alves
Hospital Regional do Mato Grosso do Sul
Rua Av.: Engenheiro Luthero Lopes, nº 36, Bairro Aero Rancho V.
Campo Grande - MS. Brasil. CEP: 79084-180
E-mail: aline.msa1@gmail.com
Data de Submissão: 18/01/2018
Data de Aprovação: 18/03/2018