ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

Linfangiectasia intestinal congênita: relato de caso

Congenital intestinal lymphangiectasia: a case report

RESUMO

A linfangiectasia intestinal congênita é uma doença rara, de etiologia desconhecida, que faz parte do grupo das enteropatias perdedoras de proteínas. Consiste na ectasia dos vasos linfáticos digestivos, podendo provocar ruptura com enteropatia exsudativa. As principais manifestações clínicas são edema, vômitos, dor abdominal, diarreia, anorexia e até mesmo derrames cavitários. O diagnóstico é feito por endoscopia digestiva alta seguida de biópsias intestinais. O pilar do tratamento é compensar a perda entérica de proteínas, através de uma dieta hiperproteica e rica em triglicerídeos de cadeia média. O objetivo desse estudo é relatar o caso clínico de uma criança do sexo feminino, com diagnóstico de linfangiectasia intestinal congênita durante sua internação que respondeu positivamente à terapia nutricional.

Palavras-chave: linfangiectasia intestinal, hipoalbuminemia, edema.

ABSTRACT

Congenital intestinal lymphangiectasia is a rare disease of unknown etiology, which is part of the group of losing enteropathy protein. It consists of the ectasia of the digestive lymphatic vessels and can cause rupture with exudative enteropathy. The main clinical manifestations are edema, vomiting, abdominal pain, diarrhea, anorexia and even cavity effusion. The diagnosis was made by endoscopy followed by intestinal biopsy. The goal of treatment is to compensate enteral protein loss through a high protein diet and long-chain triglycerides. The aim of this study is to report the clinical case of a female child with diagnosis of congenital intestinal lymphangiectasia during hospitalization who responded positively to nutritional therapy.

Keywords: lymphangiectasis, intestinal, hypoalbuminemia, edema.


INTRODUÇÃO

A linfangiectasia intestinal primária (LIP) é um distúrbio linfático congênito raro, descrito pela primeira vez em 1961 por Waldmann et al.1; consiste em uma dilatação dos vasos linfáticos digestivos, levando à ruptura e extravasamento de linfa, ocasionando perda entérica de proteínas, linfócitos e imunoglobulinas2-4.

A etiologia da LIP é desconhecida, embora alguns estudos sugiram uma causa genética envolvida4. A linfangiectasia pode ainda ser secundária, ocorrendo devido a uma obstrução linfática por processos inflamatórios ou lesão direta dos vasos linfáticos, tais como pancreatite crônica, tumores abdominais, doença de Crohn, doença celíaca, lúpus eritematoso sistêmico, insuficiência cardíaca congestiva, entre outras5,6.

A sintomatologia é variável, dependendo da gravidade da doença. A principal manifestação clínica é o edema bilateral de membros inferiores; podem ocorrer edemas generalizados com derrames cavitários, fadiga, dor abdominal, perda de peso, diarreia intermitente, má absorção e atraso do crescimento2,7, além de outros sintomas menos frequentes, como hemihipertrofia facial, edema unilateral de membro superior8 e linfedema9. Podem ocorrer ainda convulsões, causadas por hipocalcemia, devido à má-absorção de cálcio e vitaminas lipossolúveis.

O diagnóstico é presumido pela hipoproteinemia; na investigação laboratorial específica, podemos encontrar linfocitopenia, hipogamaglobulinemia e elevação da alfa-1-antitripsina fecal2,8,10.

A endoscopia digestiva alta (EDA) e, mais recentemente, a videocápsula endoscópica permitem a análise mais precisa da doença, sendo característica a presença de pontos brancos dispersos sobre a mucosa (indicando vasos linfáticos dilatados), de vilosidades esbranquiçadas (devido à gordura nos espaços interepiteliais e na lâmina própria), além de elevações da submucosa.

O exame endoscópico deve ser acompanhado de biópsia, para confirmar as lesões por exame histopatológico11-13. Exames como ultrassom e tomografia computadorizada do abdome podem ser úteis, mostrando distensão de alças intestinais, edema de parede e ascite2. A tomografia também é importante para caracterização da extensão do acometimento intestinal, além de evidenciar o edema mesentérico14.

O tratamento médico é paliativo, constituindo-se em restrição da gordura da dieta, principalmente dos triglicerídeos de cadeia longa, além de dieta hiperproteica e suplementação de triglicerídeos de cadeia média (TCM), com o objetivo de reduzir o fluxo de linfa e a perda proteica3,4,11,12. Com isso, observa-se a redução gradual do edema, da hipoproteinemia, da diarreia, concomitante à aceleração do crescimento10,12,13. Em casos graves ou não responsivos a dieta, o uso de octreotide - um análogo da somatostatina - tem sido descrito com sucesso15,16. Apesar do sucesso terapêutico em alguns casos, há pacientes que não respondem ao uso dessa medicação e, além disso, trata-se de uma medicação cara, de uso parenteral, o que diminui a sua aderência17,18.

Aqui, descreveremos um caso de linfangiectasia intestinal congênita diagnosticada com endoscopia digestiva alta seguida de biópsia, e que respondeu positivamente à terapia nutricional.


RELATO DE CASO

Criança do sexo feminino, 3 anos, proveniente do interior do estado, transferida para o Hospital Universitário Materno Infantil de São Luís, MA, com quadro de diarreia recorrente, sem muco ou sangue, aumento de volume abdominal e déficit ponderoestatural há cerca de 1 ano; apresentava também edema de membro inferior direito, que, segundo a mãe, surgiu desde o nascimento (Figura 1). Nega outras comorbidades. Pais hígidos, sem história de consanguinidade. Estava em acompanhamento com gastropediatra em sua cidade, com diagnóstico prévio de intolerância à lactose.


Figura 1. Notar ascite volumosa e linfedema em membro inferior direito.



Foi internada na enfermaria de pediatria e na investigação laboratorial inicial observou-se hipoalbuminemia importante (albumina sérica: 1,8 g/dl), com funções hepática, pancreática e renal normais. Foi então solicitada avaliação especializada com gastropediatra, que sugeriu enteropatia perdedora de proteínas e solicitou dosagens de imunoglobulinas séricas, alfa-1 antitripsina fecal, esteatócrito, teste do suor e endoscopia digestiva alta com biópsia. Foi realizada também avaliação com Cirurgia Vascular, que sugeriu linfedema crônico congênito.

Apresentou, além da hipoalbuminemia, hipogamaglobulinemia, série IgG (IgG total: 399mg/dl) e aumento de alfa-1 antitripsina fecal (0,44mg/g). Os demais exames mostraram-se normais.

A endoscopia realizada mostrou pangastrite enantematosa leve, duodeno-jejunite acentuada, com mucosa de bulbo e da segunda porção do duodeno quase totalmente recoberta por placas esbranquiçadas acima de 2mm, com edema e hiperemia (Figura 2). A biópsia evidenciou linfangiectasia em junção jejuno-duodenal (Figura 3).


Figura 2. Imagens de Endoscopia Digestiva Alta evidenciando lesões esbranquiçadas em mucosa duodenal, além de pregas espessas, edemaciadas.


Figura 3. Biópsia duodenal. - Foto1: Presença de espaços vasculares dilatados e irregulares em lâmina própria da mucosa duodenal (HE, 100x). Foto 2: Detalhe dos vasos linfáticos em que se observam células endoteliais em seu revestimento interno, além de material proteináceo amorfo central correspondente à linfa (HE, 400x).



Ultrassonografia de abdome total mostrava hepatomegalia discreta, com distensão de alças intestinais e líquido livre na cavidade abdominal.

Foram necessárias infusões de albumina humana durante a internação, devido ao quadro edematoso importante. Logo estabelecido o diagnóstico, foi iniciada nutroterapia com fórmula elementar de aminoácidos, devido à má absorção, associada a dieta hiperproteica e hipograxa, além de suplementação de triglicerídeos de cadeia média (TCM).

Paciente seguiu com melhora da diarreia e do aspecto clínico, embora ainda com edema moderado; no decorrer da internação, evoluiu com melhora importante do edema e normalização dos exames laboratoriais (albumina sérica: 3,0mg/ dl) porém com dosagem de vitamina D baixa e ganho de peso insuficiente; foi, então, feito ajuste de dieta, com aumento do TCM, introdução de clara de ovo e posteriormente arroz, além de suplementação de vitaminas A, D, E, K e zinco.

Recebeu alta após 4 meses de internação, sem diarreia, vômitos ou quaisquer outras queixas abdominais, apenas com linfedema em membro inferior direito; foi encaminhada para acompanhamento ambulatorial com gastropediatra. No seguimento ambulatorial, vem evoluindo bem, mantendo-se sem edema e com bons níveis de albumina sérica, não sendo necessário nenhum outro tipo de intervenção terapêutica, além da dieta.


DISCUSSÃO

A linfangiectasia intestinal congênita não tem incidência conhecida, podendo manifestar suas formas clínicas desde o período fetal, até a vida adulta, embora geralmente seja diagnosticado antes dos 3 anos de idade2. A idade de surgimento do edema no caso em questão sugere tratar-se de uma desordem congênita, uma vez que a paciente se apresentava com linfedema desde o nascimento.

As manifestações clínicas são variáveis, porém o quadro clínico aqui descrito constituiu-se basicamente de diarreia recorrente, edema, principalmente ascite, manifestações clínicas relatadas com maior frequência em todos os trabalhos revisados5,7,9, e, menos comumente relatado, o linfedema. As alterações laboratoriais também foram semelhantes às encontradas na literatura, tal como hipoalbuminemia e elevação de alfa-1 antitripsina fecal, além de hipogamaglobulinemia. Apesar da presença de dosagem sérica de imunoglobulina diminuída, não observamos infecções graves e/ou de repetição.

Quando submetida à endoscopia digestiva alta com biópsia, os achados foram de lesões esbranquiçadas na porção duodeno-jejunal, consistentes com os encontrados em diversos trabalhos. Uma única amostra de biópsia foi suficiente para o diagnóstico, o que nem sempre acontece, principalmente quando as lesões não são difusas; nestes casos pode ser necessário o uso de videocápsula endoscópica para localização das lesões, pois esta técnica permite visualizar todo o trato gastrointestinal12,13.

Com relação ao tratamento, diversos trabalhos têm mostrado a eficácia de uma restrição de gorduras na dieta associada à suplementação de triglicerídeos de cadeia média, proteínas e vitaminas lipossolúveis; para os casos refratários e de difícil controle, às vezes é necessária nutrição parenteral4,12, além de outras terapias, como uso de octreotide15-17, terapia antiplasmina11 e, em alguns casos selecionados, ressecção cirúrgica da porção intestinal afetada2,13.

No caso descrito, a paciente evoluiu satisfatoriamente, com regressão do edema, ganho de peso e estabilização dos níveis de albumina, apenas com dieta adequada. Em nenhum momento de sua internação foi necessário suporte nutricional enteral ou parenteral. Observamos que o linfedema de membro inferior direito, presente desde o nascimento, pouco melhorou com a dietoterapia. Esse achado foi também encontrado por Alshikho et al.7, sugerindo talvez que o papel mais importante da suplementação de TCM seja prevenir a perda entérica de proteínas, melhorando principalmente a imunidade, não tendo muito efeito sobre os vasos linfáticos já danificados.

A dieta com baixo teor de gordura apresenta níveis variáveis de aderência, pois há necessidade permanente de restrição dietética, nem sempre seguida pelos pacientes. Nossa paciente está em acompanhamento pós-alta há quatro meses e ainda não apresentou, até o presente momento, nenhuma descompensação clínica, com bom ganho ponderoestatural. Não há relatos de atraso do crescimento em crianças com LIP após terapia nutricional, porém estes pacientes ainda têm risco para má absorção de nutrientes. Por conta disso, necessitam de monitoramento médico regular e a longo prazo, além de terapia nutricional intensiva, uma vez que a recaída dos sintomas é frequente após descuido da dieta13.

Concluímos que sempre que um paciente se apresentar com um quadro de diarreia crônica inespecífica associada a achados como edema e hipoproteinemia, afastadas causas renais, hepáticas e/ou cardíacas, devemos suspeitar de linfangiectasia intestinal, pois, embora rara, é uma doença de caráter crônico e que tem um impacto significante na qualidade de vida do paciente. Consideramos ainda que instituir a terapia nutricional adequada é peça-chave no tratamento, embora seja uma doença de prognóstico variável.


REFERÊNCIAS

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1. Médica - Residente do 2º ano de Pediatria, São Luís, MA, Brasil
2. Mestra em Saúde Materno-Infantil pela Universidade Federal do Maranhão. Médica Pediatra do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão - Unidade Materno-Infantil, São Luís, MA, Brasil
3. Médica Pediatra e preceptora da residência médica em Pediatria do Hospital Universitário Materno Infantil, São Luís, MA, Brasil

Endereço para correspondência:
Ivana de Melo Almeida Ferro
Hospital Universitário Materno Infantil
Rua Barão de Itapary, nº 227, Centro
São Luís - MA. Brasil. CEP: 00000-000
E-mail: imeloalmeida@yahoo.com.br

Data de Submissão: 03/02/2018
Data de Aprovação: 21/03/2019