ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

Sífilis congênita precoce e falsonegativo por Fenômeno Prozona

Early congenital syphilis and false-negative by Prozone Phenomenon

RESUMO

OBJETIVO: A sífilis é uma doença infectocontagiosa, sistêmica, cosmopolita, de evolução crônica, curável, causada por uma espiroqueta, o Treponema pallidum, cujo ser humano é transmissor exclusivo.1,2 Desde 1960, foi observado um aumento na incidência dos casos de sífilis adquirida, e como consequência um aumento proporcional de sua transmissão vertical.6 Dada a relevância do tema, o presente trabalho tem como objetivo relatar um caso clínico neste contexto e discutir os métodos diagnósticos.
RELATO: Lactente, masculino, 46 dias, admitido com quadro de exantema maculo-papular e lesões erosivas circunscritas difusas há 24 horas, cuja mãe apresentou VDRL no pré-natal e parto negativos. Lactente foi admitido para investigação e tratamento, sendo realizado VDRL da puérpera e lactente, ambos positivos, sendo aventada a hipótese de um falso-negativo no momento do parto devido ao fenômeno Prozona.
COMENTÁRIOS: Dadas às elevadas taxas de sífilis congênita no Brasil, apesar dos programas de controle, é possível questionar a qualidade da assistência ao pré-natal e parto, o conhecimento técnico dos profissionais de saúde acerca de qual método de exame diagnóstico é adequado, mas também quanto à interpretação do resultado, e questionar a existência de uma deficiência da técnica laboratorial, pois o fenômeno prozona pode ser evitado se o VDRL for executado de acordo com os protocolos operacionais.

Palavras-chave: Sífilis, Sífilis congênita Sorologia, Reações Falso-Negativas.

ABSTRACT

OBJECTIVES: Syphilis is an infectious, contagious, systemic and cosmopolitan disease , its evolution is chronic and curable, caused by a spirochete, Treponema pallidum, whose human is an exclusive transmitter.1,2 Since 1960, an increase in the incidence of acquired syphilis has been observed, and as a consequence a proportional increase in its vertical transmission.6 Given the relevance of the subject, the present work aims to report a clinical case in this context and to discuss the diagnostic methods.
REPORT: Infant, male, 46 days, admitted with maculo-papular exanthema and diffuse circumscribed erosive lesions 24 hours ago, whose mother presented VDRL negative during prenatal and delivery. The infant was admitted for investigation and treatment, and VDRL of the mother and infant were performed, both positive, and the hypothesis of a false-negative at the moment of delivery due to the Prozone phenomenon was proposed.
COMMENTS: Given the high rates of congenital syphilis in Brazil, despite the control programs, it is possible to question the quality of prenatal care and delivery, the technical knowledge of health professionals about which method of diagnosis is adequate, but also regarding the interpretation of the result, and question the existence of a deficiency of the laboratory technique, because the Prozone phenomenon can be avoided if the VDRL is executed according to the operational protocols.

Keywords: Syphilis, Syphilis, Congenital, Serology, False Negative Reactions.


INTRODUÇÃO

A sífilis é uma doença infectocontagiosa, sistêmica, cosmopolita, de evolução crônica, curável, causada por uma espiroqueta, o Treponema pallidum, cujo ser humano é transmissor exclusivo. A transmissão pode ser por via sexual (adquirida) ou vertical (congênita), esta pela placenta ou no momento do parto, na passagem do feto pelo canal.1,2 O contágio por transfusão de sangue ou derivados pode ocorrer, mas tornou-se raro pelo controle laboratorial dos hemocentros.3Até o momento não existe vacina contra a sífilis e a infecção pela bactéria causadora não confere imunidade protetora.4

Embora seja uma doença conhecida desde século XV, apenas após a descoberta da penicilina, em 1928, e de sua ação contra a sífilis, após a Segunda Guerra Mundial, é que começou a ser efetivamente tratada, chegando na década de 50 a acreditar-se que estava perto da sua erradicação5. No entanto, desde 1960 foi observado um aumento na incidência, estando diversos fatores contribuindo para isso, como a liberalização sexual, aumento do uso de drogas injetáveis, ascensão do HIV, introdução da pílula anticoncepcional e também pelo conhecimento da doença e, portanto, mais diagnóstico. Como consequência do aumento dos casos de sífilis adquirida, houve um aumento proporcional de sua transmissão vertical.6

Dados do SINAN (Sistema de Informação de Notificação e Agravos) demonstram que de 1998 a 2014 foram registrados 104.853 casos de sífilis congênita em menores de um ano de idade, com aumento na taxa de incidência de sífilis congênita de 1,7 em 2004 e para 4,7 casos por 1.000 nascidos vivos em 2013.7

O diagnóstico da sífilis na criança é complexo e deve basear-se em critérios epidemiológicos, clínicos e laboratoriais.

Dada à relevância do tema, o presente trabalho tem como objetivo relatar um caso clínico neste contexto.


DESCRIÇÃO DO CASO

Lactente, sexo masculino, 46 dias de vida, pardo, admitido em serviço de pronto atendimento de um hospital público com história de aparecimento de lesões por todo corpo há 24 horas, sem outras alterações. Nasceu de parto cesáreo, sem intercorrências, a termo, peso adequado para idade gestacional, tendo alta com 48h de vida. Genitora realizou quatro consultas de pré-natal, com sorologia para sífilis pelo método VDRL (Veneral Disease Research Laboratory), na gestação e parto negativos, porém a mãe relata aparecimento de manchas avermelhadas por todo corpo após o parto, e que o parceiro dela foi diagnosticado com sífilis durante a gestação e não procurou tratamento. O paciente foi internado para investigação diagnóstica e tratamento na enfermaria pediátrica do hospital.

Ao exame, lactente em bom estado geral, hidratado, corado, anictérico, afebril, apresentava lesões anulares, com bordas levemente elevadas e exulcero-crostosas, algumas com fundo ulceroso, outras com exulceração, não secretivas, sem sinais de infecção secundária, por todo corpo, inclusive em palmas das mãos e couro cabeludo (Fig.1). Fígado palpável a 3cm do rebordo costal. Sem outras alterações.


Figura1. Foto do lactente antes (superior) e depois (inferior) do tratamento - Fonte:próprio autor.



Na enfermaria, foram realizados exames complementares como ultrassonografia de abdome total, raio x de ossos longos, hemograma, hepatograma, função renal, VDRL no sangue e estudo do líquor do lactente. Os exames revelaram VDRL Reagente no sangue a 1:16, não reagente no líquor, anti-HIV negativo, sem alterações significativas nos demais, sendo diagnosticada Sífilis Congênita Precoce sem comprometimento de sistema nervoso central. O tratamento foi realizado com Ceftriaxone, via intravenosa, dose de ataque de 100mg/kg, seguida de 80mg/kg a cada 24 horas, durante 14 dias de acordo com Nota Técnica emitida pela Secretaria do Estado de São Paulo sobre o Tratamento da Sífilis congênita na vigência do desabastecimento de Penicilina Cristalina e Procaína.7

O paciente evoluiu com melhora importante das lesões, tendo alta hospitalar ao final do tratamento, sendo encaminhado para acompanhamento ambulatorial em Centro de Referência em Doenças Sexualmente Transmissíveis.


DISCUSSÃO

Conforme gráfico abaixo, é possível observar que nos últimos 10 anos houve um aumento de 276% da taxa de incidência de sífilis congênita em menores de um ano de idade, sendo ainda esse valor subestimado, pois apesar de a notificação ser compulsória desde 1986, mediante a Portaria No.542 do Ministério da Saúde, sabe-se que ainda existe muita subnotificação.7

Soma-se a isso a dificuldade do diagnóstico da sífilis congênita precoce, já que mais da metade das crianças são assintomáticas ao nascimento e, quando apresentam sinais e sintomas, esses são discretos ou pouco específicos3, como no caso em questão.

O Ministério da Saúde estabelece como um caso de sífilis congênita toda criança, aborto (perda gestacional até 22 semanas ou peso ≤ 500g) ou natimorto (feto morto após 22 semanas de gestação ou peso > 500g) de mãe com sorologia não-treponêmica - (VDRL) - reagente para sífilis com qualquer titulação, na ausência ou presença de teste confirmatório treponêmico - (FTA-Abs), realizado no pré-natal ou no momento do parto ou curetagem, que não tenha sido tratada ou tenha recebido tratamento inadequado.4,6

O diagnóstico laboratorial de sífilis congênita pode ser realizado por provas diretas (identificação da espiroqueta), indicado para formas iniciais, e provas indiretas (sorologias). Entre os métodos diretos destacam-se a microscopia em campo escuro de alta especificidade e moderada sensibilidade e o PCR do líquido amniótico, utilizado afim de fazer diagnóstico de sífilis congênita ainda intra-uterino, pouco utilizado na prática clínica.4

Entre os métodos sorológicos, destaca-se o VDRL, o qual pode ser qualitativo (reagente ou não-reagente) ou quantitativo (titulação 1/8;1/16;1/32,...).4,6 É o mais disponível na rede pública, de fácil execução e baixo custo, sendo por isso o exame preconizado para o rastreamento e acompanhamento de resposta terapêutica do paciente. No entanto, é preciso estar atento, pois o mesmo pode resultar em falso-positivo em algumas situações (gestação, câncer, colagenoses, viroses, entre outras) e também falso-negativo, quando os anticorpos estão em baixa titulação ou devido ao fenômeno Prozona.4

O fenômeno Prozona decorre da relação desproporcional entre as quantidades de antígenos e anticorpos, sendo que o excesso de anticorpos interfere na reação antígeno-anticorpo gerando resultados falso-negativos. Por esse motivo é fundamental que, ao se realizar o VDRL, a amostra sempre seja testada pura e na diluição a 1:8.4 O fenômeno Prozona pode ocorrer em 1% a 2% dos pacientes, especialmente no estágio de sífilis recente e durante a gravidez, como o caso relatado.7

Os testes treponêmicos são confirmatórios da infecção sifilítica, estando disponíveis as técnicas de FTA-abs (Fluorescent Treponemal Antibody-absorption), de ELISA (Enzyme Linked Immuno Sorbent Assay) e de TPHA (Treponema Pallidum Hemaglutination). São sensíveis e específicos para anticorpos antitreponêmicos, indicados para confirmação da sífilis ou exclusão de falso-positivo no VDRL.4

Os testes rápidos para sífilis também se baseiam na detecção de anticorpos antitreponêmicos, caso o resultado seja reagente, deve-se então investigar tratamento prévio, se esse for confirmado e tenha sido adequado, deve-se considerar a possibilidade de cicatriz sorológica.4

Enfim, dadas às elevadas taxas de sífilis congênita no Brasil, apesar dos programas de controle, é possível questionar a qualidade da assistência ao pré-natal e parto, o conhecimento técnico dos profissionais de saúde acerca de qual método de exame diagnóstico é adequado, mas também quanto à interpretação do resultado, e questionar a existência de uma deficiência da técnica laboratorial, pois o fenômeno Prozona pode ser evitado se o VDRL for executado de acordo com os protocolos operacionais.

Há necessidade dos serviços de saúde implementarem e incentivarem a utilização de protocolos que visem o rastreio sistemático da sífilis como parte dos cuidados pré-natais, afim de frear a Sífilis Congênita no Brasil, visto que esta é uma patologia evitável quando se identifica e se trata adequadamente, e oportunamente, a gestante infectada e seus parceiros sexuais3.


REFERÊNCIAS

1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST/AIDS. Diretrizes para controle da sífilis congênita: manual de bolso. 2. ed. - Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

2. Jung DL, Becker D, Renner JDP. Efeito prozona no diagnóstico de sífilis pelo método VDRL: experiência de um serviço de referência no sul do Brasil. Rev. Epidemiol Control Infect. 2014;4(1):02-06.

3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis. Brasília, 2015. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolo_clínico_diretrizes_terapeutica_atencao_integral_pessoas_infeccoes_sexualmente_transmissiveis.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2017.

4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais. Manual Técnico para Diagnóstico da Sífilis. Disponível em:<http://www.aids.gov.br/es/node/59218>. Acesso 13 março 2017.

5. Guinsburg R, Santos, AMN dos. Critérios diagnósticos e tratamento da sífilis congênita. São Paulo, 20 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.sbp.com.br/pdfs/tratamento_sifilis.pdf>. Acesso 13 mar. 2017.

6. Lorenzi DRS, Fiaminghi LC, Artico GR. Transmissão vertical da sífilis: prevenção, diagnóstico e tratamento. Rev.Femina; 37(2): 83-90, jan. 2009.

7. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico-Sífilis. Ano IV, n1.2015.

8. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Comunicado da Coordenadoria de Controle de Doenças. Tratamento de sífilis congênita no Estado de São Paulo. São Paulo, 14 de julho de 2016. Disponível em: <http://www.spsp.org.br/PDF/NT012016.pdf>. Acesso em:13 março 2017.











1. Hospital Público Municipal Dr. Fernando Pereira da Silva, Residência de Pediatria - Macaé - Rio de Janeiro - Brasil
2. Hospital Público Municipal Dr. Fernando Pereira da Silva, Comissão de Controle de Infecção Hospitalar - Macaé - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:
Luciane Silva de Moraes
Hospital Público Municipal Dr. Fernando Pereira da Silva - Residência de Pediatria Macaé - Rio de Janeiro - Brasil
Rodovia RJ 168 - Km 4 S/N - Virgem Santa
Macaé - RJ, Brasil
E-mail: lolasmoraes@gmail.com

Data de Submissão: 27/07/2018
Data de Aprovação: 01/11/2018