Ponto de Vista - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3
A importância dos cuidados paliativos para crianças com doença terminal e a necessidade de considerar o papel dos distúrbios de sono nesse contexto
The importance of palliative care for children with terminal disease and the need to consider the role of sleep disturbances within this contexto
Estima-se que 56 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade morram entre 2018 e 20301. Embora tenha havido um grande progresso no controle da mortalidade desde 1990, outras melhorias precisam ser feitas, principalmente na África Subsaariana e no sul da Ásia2. As estatísticas de mortalidade mostraram que, das 6,3 milhões de crianças que morreram antes dos 5 anos em 2013, 51,8% morreram de doenças infecciosas e 44% morreram no período neonatal3.
Os cuidados paliativos são geralmente definidos como uma abordagem interdisciplinar fornecida por uma equipe que inclui não apenas médicos, mas outros profissionais de saúde4. A situação vivenciada pelos pacientes terminais e suas famílias pode ter efeitos físicos, emocionais, espirituais, sociais e psicológicos4,5, e bons cuidados paliativos podem melhorar a qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares, ajudando-os a enfrentar os problemas frequentemente associados a doenças limitantes da vida. A identificação e avaliação precoces da doença, seguidas de um tratamento eficaz da dor, são as estratégias necessárias para aliviar o sofrimento. Cuidados paliativos e tratamentos curativos que prolongam a vida podem ocorrer ao mesmo tempo.
O manejo da dor é crucial para crianças com doenças terminais. É importante reconhecer que a dor é uma percepção subjetiva de cada indivíduo e que, mesmo que o paciente não consiga se comunicar, não podemos assumir que ele não esteja sentindo dor4. É essencial ter uma equipe multidisciplinar que compreenda o curso clínico da doença e as formas mais eficazes de controlar a dor desses indivíduos, a fim de proporcionar um final de vida mais confortável.
De acordo com uma revisão sistemática, 4-40% das crianças e adolescentes apresentam dor musculoesquelética crônica6, o que pode afetar profundamente o sono. A qualidade de sono é uma grande preocupação para crianças e adolescentes em estado terminal ou seus cuidadores, uma vez que sono e dor têm uma relação bidirecional e acredita-se formar um ciclo vicioso. No entanto, essas condições não são bem compreendidas em crianças. O pediatra deve estar atento e alerta à qualidade de sono de crianças ou adolescentes que sofrem de doenças como o câncer, pois o tratamento de problemas de sono pode melhorar o manejo da doença. É possível entender a relação entre sono e dor em populações pediátricas em um contexto biopsicossocial, pois essa interação pode ser influenciada por raça, etnia, cultura e qualidade de vida, humor e fisiologia/biologia7.
Existe uma hipótese de que a privação de sono em crianças e adolescentes possa ser o resultado de uma modificação no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) devido à resposta do cérebro ao estresse. Uma explicação possível é que haja inibição de feedback negativo controlada pelo eixo HPA. Assim, quando os níveis de glicocorticoides aumentam acima de um certo ponto, eles inibem a liberação adicional do hormônio adrenocorticotrófico e do fator de liberação de corticotropina, interrompendo a resposta. A resposta do organismo ao apresentar distúrbio de sono e dor crônica pode afetar o eixo HPA, uma vez que o eixo HPA sofre maturação significativa durante a adolescência8.
Problemas de sono são uma questão comum e séria em crianças com condições limitantes da vida e grave comprometimento psicomotor, com prevalência de 60 a 80%. Crianças com doenças crônicas graves podem apresentar distúrbios de sono, como dificuldades em iniciar e manter o sono, problemas respiratórios associados ao sono, sonolência diurna, parassonia e ritmo irregular de sono e vigília9. Para avaliar a qualidade de sono de crianças com doenças neurológicas, foi desenvolvido o "Questionário do sono para crianças com comprometimento psicomotor grave" (Schlaffragebogen für Kinder mit Neurologischen und Anderen Komplexen Erkrankungen -SNAKE). O SNAKE é um questionário multidimensional que avalia cinco dimensões diferentes dos problemas associados ao sono (problemas para dormir, problemas para adormecer, distúrbios de excitação e respiração, sonolência diurna e distúrbios de comportamento diurno) e coleta informações importantes sobre o sono em relação a essa população vulnerável10.
Outro ponto importante a considerar é a qualidade de sono de suas mães ou cuidadores. Crianças com doença neurológica grave apresentam distúrbios profundos do sono e quanto mais grave a deficiência da criança, mais cuidados noturnos são necessários, e esse cuidado é prestado principalmente pelos pais11. Mais de 60% das mães que cuidam de crianças que sofrem de distrofia muscular de Duchenne relataram ter uma má qualidade de sono12. Foram encontrados pais de 214 crianças, adolescentes e adultos jovens com comprometimento psicomotor grave, comprometimento grave do estado de saúde dos pais e qualidade de vida11. Mais de 50% dos pais sofreram de um distúrbio de sono (por exemplo, latência prolongada do sono, duração reduzida do sono). Os distúrbios de sono em crianças, adolescentes e adultos jovens correlacionaram-se fortemente com as queixas de sono dos pais, comprometimento do funcionamento físico e mental dos pais, funcionamento social dos pais e capacidade de trabalho dos pais. Os pais são severamente afetados em vários aspectos da vida diária11. Portanto, os profissionais de saúde precisam incluir a avaliação do sono em sua rotina, considerando que uma boa noite de sono proporciona adequada função do sistema imunológico e melhora na qualidade de vida.
Pediatras geralmente precisam fornecer informações à família do paciente sobre vários tópicos, desde detalhes de cuidados paliativos até a morte de um ente querido. Compreender o curso da doença é muito importante para o paciente, sua família e seus cuidadores. Idealmente, a linguagem direta deve ser usada ao explicar o processo de morte, sendo recomendado o uso de palavras como "morte" e "morrer". É uma tarefa difícil, pois essa comunicação deve ocorrer em um momento muito sensível13.
É importante enfatizar que a equipe de saúde nem sempre antecipa a morte das crianças, perdendo a oportunidade de discutir o assunto com a família das crianças e ajudá-las a se preparar emocionalmente. Quando a equipe de saúde fornece informações precisas sobre a trajetória da doença, os cuidadores conseguem enfrentar melhor os problemas encontrados durante o curso dos cuidados paliativos, incluindo apoio emocional e espiritual de crianças e familiares.
Gostaríamos de destacar a importância de desenvolver um relacionamento integrado entre crianças, equipe de saúde, cuidadores e familiares, para garantir um final de vida mais digno aos pacientes que sofrem de uma doença terminal. Os profissionais de saúde devem estar cientes de que problemas diretos ou indiretos do sono podem influenciar o tratamento. Cuidadores e crianças devem considerar estratégias e intervenções de higiene do sono que possam melhorar o sono e, assim, auxiliar na melhoria clínica das crianças com doença terminal. Além disso, futuros estudos longitudinais devem investigar melhor o papel da qualidade de sono ao longo da trajetória de uma doença. Isso fornecerá mais informações sobre o tratamento, melhorando a qualidade de vida desses pacientes.
AGRADECIMENTOS
Nossos estudos são financiados por doações da Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (AFIP). MLA e ST são bolsistas do CNPq.
CONFLITOS DE INTERESSE
Os autores informam que não há conflitos de interesse.
REFERÊNCIAS
1. United Nations Inter-agency Group for Child Mortality Estimation (UN IGME). 'Levels & Trends in Child Mortality: Report 2018, Estimates developed by the United Nations Inter-agency Group for Child Mortality Estimation', United Nations Children's Fund. New York: UNICEF, WHO, World Bank Group and United Nations; 2018.
2. Hug L, Alexander M, You D, Alkema L; UN Inter-agency Group for Child Mortality Estimation. National, regional, and global levels and trends in neonatal mortality between 1990 and 2017, with scenario-based projections to 2030: a systematic analysis. Lancet Glob Health. 2019;7(6):e710-e20.
3. Liu L, Oza S, Hogan D, Perin J, Rudan I, Lawn JE, et al. Global, regional, and national causes of child mortality in 2000-13, with projections to inform post-2015 priorities: an updated systematic analysis. Lancet. 2015;385(9966):430-40.
4. Kittelson SM, Elie MC, Pennypacker L. Palliative Care Symptom Management. Crit Care Nurs Clin North Am. 2015;27(3):315-39.
5. Mehta A, Chan LS. Understanding of the Concept of" Total Pain": A Prerequisite for Pain cCntrol. J Hosp Palliat Nurs. 2008;10(1):26-32.
6. King S, Chambers CT, Huguet A, MacNevin RC, McGrath PJ, Parker L, et al. The epidemiology of chronic pain in children and adolescents revisited: a systematic review. Pain. 2011;152(12):2729-38.
7. Valrie CR, Bromberg MH, Palermo T, Schanberg LE. A systematic review of sleep in pediatric pain populations. J Dev Behav Pediatr. 2013;34(2):120-8.
8. Christensen J, Noel M, Mychasiuk R. Neurobiological mechanisms underlying the sleep-pain relationship in adolescence: A review. Neurosci Biobehav Rev. 2019;96:401-13.
9. Tietze AL, Blankenburg M, Hechler T, Michel E, Koh M, Schlüter B, et al. Sleep disturbances in children with multiple disabilities. Sleep Med Rev. 2012;16(2):117-27.
10. Blankenburg M, Tietze AL, Hechler T, Hirschfeld G, Michel E, Koh M, et al. Snake: the development and validation of a questionnaire on sleep disturbances in children with severe psychomotor impairment. Sleep Med. 2013;14(4):339-51.
11. Tietze AL, Zernikow B, Michel E, Blankenburg M. Sleep disturbances in children, adolescents, and young adults with severe psychomotor impairment: impact on parental quality of life and sleep. Dev Med Child Neurol. 2014;56(12):1187-93.
12. Nozoe KT, Polesel DN, Moreira GA, Pires GN, Akamine RT, Tufik S, et al. Sleep quality of mother-caregivers of Duchenne muscular dystrophy patients. Sleep Breath. 2016;20(1):129-34.
13. Collins A, McLachlan SA, Philip J. How should we talk about palliative care, death and dying? A qualitative study exploring perspectives from caregivers of people with advanced cancer. Palliat Med. 2018;32(4):861-9.
1. Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Psicobiologia - São Paulo - São Paulo - Brasil
2. Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Monica Levy Andersen
Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Psicobiologia - São Paulo - São Paulo - Brasil
Rua Napoleão de Barros, nº 925, Vila Clementino
São Paulo, SP, Brasil. CEP: 04024-002
E-mail: ml.andersen12@gmail.com
Data de Submissão: 04/09/2019
Data de Aprovação: 10/09/2019