ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 1

Sífilis congênita diagnosticada através do teste do reflexo vermelho

Congenital syphilis diagnosed through the red reflextest

RESUMO

OBJETIVOS: Descrever o caso de sífilis congênita (SC) com diagnóstico após alta da maternidade, apresentando manifestações oculares e ósseas da doença.
MÉTODOS: Relato de caso de uma criança com diagnóstico tardio de SC precoce, realizado através da detecção de alterações oculares na criança encontradas no Teste do Reflexo Vermelho (TRV).
DISCUSSÃO: Com a negativação do VDRL materno no terceiro trimestre e intraparto, pelo atual protocolo do Ministério da Saúde, esse RN não entra nos critérios de triagem no momento do parto e posterior seguimento. Além disso, o diagnóstico é dificultado devido a 70% das crianças infectadas serem assintomáticas. O aprimoramento do serviço de pré-natal, com diagnóstico e tratamento precoce das gestantes e seus parceiros pode ser uma estratégia para melhorar os índices de sífilis congênita no Brasil.
CONCLUSÕES: O caso descrito mostra a fragilidade desse protocolo e sugere a necessidade do desenvolvimento de estudos epidemiológicos que reflitam a realidade brasileira e garantam um protocolo mais sensível à detecção de crianças com risco de infecção neonatal. Caso essa criança não tivesse alterações oftalmológicas dificilmente seria tratada para SC com risco de morrer ou desenvolver complicações graves da doença.

Palavras-chave: Sífilis Congênita, Coriorretinite, Cuidado Pré-Natal.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To describe the case of congenital syphilis (CS) with diagnosis after discharge from the maternity hospital, showing ocular and bone manifestations of the disease.
METHODS: Case report of a child with late diagnosis of early CS performed by detecting ocular changes in the child found in the Red Reflex Test.
DISCUSSION: With the negative maternal VDRL in the third trimester and intrapartum, by the current protocol of the Ministry of Health, this newborn does notenter the screening criteria at the time of delivery and subsequent follow-up. In addition, diagnosis is made difficult because 70% of infected children are asymptomatic. The improvement of the prenatal service, with diagnosis and early treatment of pregnant women and their partners may be a strategy to improve the rates of congenital syphilis in Brazil.
CONCLUSIONS: The case described shows the fragility of this protocol and suggests the need to develop epidemiological studies that reflect the Brazilian reality and ensure a protocol more sensitive to the detection of children at risk of neonatal infection. If this child did not have ophthalmological changes, it would hardly be treated for CS at risk of dying or developing severe complications of the disease.

Keywords: Syphilis, Congenital, Chorioretinitis, Prenatal Care.


INTRODUÇÃO

A sífilis congênita (SC) é uma doença infecciosa, resultante principalmente da transmissão hematogênica do Treponema pallidum para o feto, através da placenta de uma mãe infectada durante a gravidez1.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima uma incidência de 12 milhões de novos casos de sífilis anualmente, no mundo, sendo 1 milhão em gestantes. Mesmo em países desenvolvidos, a infecção por sífilis durante a gestação continua a ser uma causa significante de natimortalidade e morbidade infantil. Quando a gestante é inadequadamente tratada ou não tratada na gravidez, em 25% das gestações resultarão em abortos no segundo trimestre ou óbito fetal; 11% de feto morto a termo; 13% em partos prematuros ou baixo peso ao nascer; e, 20% dos RNs apresentarão sinais sugestivos de sífilis congênita2,3.

A adequação do tratamento na gravidez é definida segundo o Protocolo do Ministério da Saúde (2016) como toda gestante que tenha sido tratada com penicilina benzatina, de acordo com a fase clínica da doença materna, iniciado 30 dias antes do parto, com intervalo e dose correta, avaliação quanto ao risco de reinfecções e documentação comprovando a queda da titulação do VDRL materno em duas diluições até o terceiro mês e quatro diluições até o sexto mês após a conclusão do tratamento4.

Os dados nacionais recentes, do Boletim Epidemiológico de Sífilis de 2017, demonstram as crescentes taxas de incidência e mortalidade infantil relacionadas a essa doença. Em 2006, a taxa de incidência de SC era de 2,0 casos/1.000 nascidos vivos (NV), em 2016, a taxa foi de 6,8 casos/1.000 NV. De 2015 para 2016, houve incremento de 4,7% no número de notificações no Brasil, o que também contribuiu para o aumento das taxas. O estado de Sergipe apresenta taxa de incidência de SC (8,8 casos/1.000 NV) maior que a média nacional, já a capital Aracaju, é uma das capitais do país cuja taxa de incidência de sífilis congênita é maior que a taxa de detecção de sífilis em gestantes, o que remete a possíveis lacunas no diagnóstico gestacional3.

O Teste do Reflexo Vermelho (TRV) ou “teste do olhinho” tem a finalidade de identificar precocemente alterações oculares e prevenir a cegueira infantil, suspeitando de tumores como o retinoblastoma, como também catarata, glaucoma e as coriorretinites que devem ser confirmados com a fundoscopia encontrados em doenças congênitas dentre elas a sífilis. O acometimento ocular pela sífilis pode ocorrer em qualquer estágio da doença e requer atenção e investigação dos profissionais médicos, já que dois terços das crianças infectadas pela SC são assintomáticas e os sintomas no terço restante podem ser inespecíficos ou sutis5,6.

Diante do exposto, objetivou-se descrever um caso de SC que não foi diagnosticado no momento do parto. A sinalização para conclusão e tratamento da doença foi através do teste do reflexo vermelho alterado ao nascer.


RELATO DE CASO

Gestante primigesta, 28 anos, ensino médio completo, recepcionista, renda de um salário mínimo, parceiro fixo, 22 anos, ensino fundamental incompleto, desempregada. Durante a gestação realizou o pré-natal, o qual compareceu à 9 consultas. Na 16ª semana a sorologia apresentou VDRL 1:32, parceiro VDRL não reagente. Gestante e parceiro foram tratados com 2400.000UI de penicilina benzatina, 3 doses a cada 7 dias. O VDRL realizado no terceiro trimestre e intraparto foram não reagentes.

O bebê nasceu a termo, parto cesariano, APGAR 9 no 1º e 5º minutos, pesando 3925g, medindo 51cm e perímetro cefálico 34cm. Devido à genitora apresentar no momento do parto o VDRL não reagente, o recém-nascido não realizou na maternidade VDRL em sangue periférico. Na triagem neonatal realizada na maternidade, o TRV teve o resultado alterado. Ele foi encaminhado para uma avaliação oftalmológica que detectou lesão cicatricial em olho esquerdo aos 75 dias de vida sugestiva de doença congênita.

Aos 5 meses e 5 dias foi internada com diagnóstico de SC precoce, devido à epidemiologia positiva materna de sífilis na gestação, alterações oculares e pelas lesões ósseas metafisárias em todos os ossos longos, que concluiu o diagnóstico presumível de sífilis congênita. As sorologias para diagnóstico de doenças congênitas foram negativas, inclusive a de sífilis. Além disso, o VDRL no líquor também foi não reagente (Tabela 1). A criança foi tratada com penicilina cristalina por 10 dias. Na admissão e durante o internamento o estado de saúde da criança evoluiu sem intercorrências e sem queixas. Encaminhada na alta para seguimento no ambulatório de SC do Hospital.




Nas consultas de acompanhamento o lactente encontra-se com 1 ano de vida, assintomático, crescimento no score z 0 e +2 para comprimento, perímetro cefálico e peso. O desenvolvimento neuropsicomotor está com todos os marcos presentes para a idade aferido pelo cartão de saúde da criança. O VDRL em sangue periférico permanece não reagente e todos os ossos longos apresentando metafisite.


DISCUSSÃO

A dificuldade para realizar o diagnóstico precoce da sífilis congênita é um dos empecilhos para o controle da doença. O diagnóstico de SC é complexo, porque o IgG materno passa para o feto, dificultando a interpretação dos resultados sorológicos no RN. Até o presente momento não tem teste imunológico específico disponível para garantir a presença de infecção em um RN, mas existem protocolos que definem os casos suspeitos e indicam o tratamento a ser realizado7.

Para o diagnóstico de sífilis congênita, deve-se avaliar a positividade do VDRL na gravidez e adequação do tratamento materno, realizar exame físico detalhado do RN, realizar exames laboratoriais (hemograma, VDRL em sangue periférico, coleta de líquor para titulação do VDRL, celularidade e proteína) e radiografia de ossos longos. Quando o VDRL em sangue periférico do RN for não reagente, independente da adequação do tratamento materno, ele deve seguir em ambulatório mensalmente até o sexto mês e a cada 2 meses até dois anos de idade. O VDRL em sangue periférico deve ser repetido com 1, 3, 6, 12, e 18 meses de vida4.

A sífilis congênita precoce (sinais e sintomas que surgem até dois anos) pode levar à prematuridade, baixo peso ao nascer, hepatoesplenomegalia, icterícia, leucocitose ou leucopenia, plaquetopenia, rinorreia serosanguinolenta, pênfigo palmo plantar, sífilides. A coriorretinite e a catarata congênita são lesões oculares que podem ser identificadas através do teste do olhinho8. As alterações ósseas visualizadas através da radiografia dos ossos são a metafisite (mais prevalente), periostite, osteosesclerose, osteocondrite e a menos frequente a epifisite. Elas podem estar associadas à pseudoparalisia de Parrot, são simétricas, bilaterais e presentes em 50% dos bebês com sífilis6,9.

Segundo o Ministério da Saúde, o quadro clínico, diagnóstico e o tratamento da sífilis na gestação não é diferente do tratamento na ausência de gravidez, todavia pode ocorrer falha terapêutica em cerca de 14% quando comparada a sífilis adquirida. Os casos de falha terapêutica podem estar relacionados às mudanças gravídicas, presença de co-infecções, como HIV ou esquemas terapêuticos inadequados10.

No caso de gestantes infectadas tratadas adequadamente e com VDRL não reagente no terceiro trimestre e intraparto, como o relatado no caso, mostra que os testes imunológicos para detecção da doença são de baixa especificidade, colocando em risco a vida desses RNs que podem ficar sem tratamento. A criança ao nascer por ser filha de mãe com VDRL não reagente intraparto, não entrou no Protocolo do Ministério da Saúde para realização da triagem epidemiológica e nem foi indicado o seguimento desse paciente3.

Segundo Cerqueira et al.11, estudos sentinela indicam que a prevalência de sífilis congênita vem diminuindo na última década no país, contudo, em alguns estados, como o Rio de Janeiro, esses estudos não representam a realidade, já que para alguns estudiosos, as falhas no tratamento das gestantes e seus parceiros durante o pré-natal e a prática de sexo desprotegido têm contribuído para o aumento da prevalência da infecção.


CONCLUSÃO

A sífilis congênita é um problema de saúde pública e indicador de qualidade da saúde materno-infantil de um país. O aprimoramento do serviço de pré-natal, com diagnóstico e tratamento precoce das gestantes e seus parceiros pode ser uma estratégia para melhorar os índices de sífilis no Brasil. O TRV realizado, se mostrou alterado e foi confirmado com exame de fundo de olho, apresentando coriorretinite. Além disso a radiografia dos ossos longos apresentou metafisite, confirmando o diagnóstico de SC. O caso descrito mostra a fragilidade desse protocolo e sugere a necessidade do desenvolvimento de estudos epidemiológicos que reflitam a realidade brasileira e garantam um protocolo mais sensível à detecção de crianças com risco de infecção neonatal. Caso essa criança não tivesse alterações oftalmológicas dificilmente seria tratada para SC com risco de morrer ou desenvolver complicações graves da doença.


REFERÊNCIAS

1. Patel NU, Oussedik E, Landis ET, Strowd LC. Early congenital syphilis: recognising symptoms of an increasingly prevalent disease. J Cutan Med Surg. 2018 Jan/Feb;22(1):97-9.

2. Andrade ALMB, Magalhães PVVS, Moraes MM, Tresoldi AT, Pereira RM. Diagnóstico tardio de sífilis congênita: uma realidade na atenção à saúde da mulher e da criança no Brasil. Rev Paul Pediatr. 2018;36(3):376-81.

3. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e AIDS. Boletim epidemiológico sífilis - 2017. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2017.

4. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais. Manual técnico para diagnóstico da sífilis. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016.

5. Malerbi FK, Ghanem RC, Chiang J, Takahashi WY. Descolamento de retina exsudativo bilateral associado a alterações de comportamento em paciente com diagnóstico de neurossífilis: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2006 Fev;69(1):115-8.

6. Agrawal PG, Joshi R, Kharkar VD, Bhaskar MV. Congenital syphilis: the continuing scourge. Indian J Sex Transm Dis AIDS. 2014;35(2):143-5.

7. Cavagnaro FSM, Pereira TR, Pérez CP, Vargas FDV, Sandoval CC. Early congenital syphilis. A case report. Rev Chil Pediatr. 2014;85(1):86-93.

8. Dorsch FLB, Marvila MHR, Passamani RPS, Frauches DO. Alterações ao teste do reflexo vermelho em recém-nascidos internados na unidade de terapia intensiva de um hospital filantrópico em Vitória/ES, Brasil. Rev Bras Pesq Saúde. 2016;18(3):49-57.

9. Gameiro VS, Labronici PJ, Rosa IMA, Silva JAS. Sífilis congênita com lesão óssea: relato de caso. Rev Bras Ortop. 2017 Nov;52(6):740-2.

10. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e AIDS. Protocolo para prevenção de transmissão vertical de HIV e sífilis: manual de bolso. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2007.

11. Cerqueira LRP, Monteiro DLM, Taquette SR, Rodrigues NCP, Trajano AJB, Souza FM, et al. The magnitude of syphilis: from prevalence to vertical transmission. Rev Inst Med Trop S Paulo. 2017;59:e78.










1. Hospital e Maternidade Santa Isabel, Residente de pediatria - Aracaju - Sergipe - Brasil
2. Hospital e Maternidade Santa Isabel, Coordenadora da Residência Médica de Pediatria - Aracaju - Sergipe - Brasil

Endereço para correspondência:

Izailza Matos Dantas Lopes
Hospital e Maternidade Santa Isabel
Av. Simeão Sobral, s/n, Santo Antônio
Aracaju - SE. Brasil. CEP: 49060-640
E-mail: izailzamatos@gmail.com

Data de Submissão: 29/10/2018
Data de Aprovação: 21/04/2019