ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 1

Síndrome de Miller-Dieker

Miller-Dieker syndrome

RESUMO

A síndrome de Miller-Dieker (SMD) é uma desordem genética rara caracterizada por lisencefalia, anomalias craniofaciais congênitas, malformações cardíacas, retardo do crescimento e deficiência intelectual com convulsões. O objetivo do presente estudo é auxiliar no diagnóstico precoce da síndrome, correlacionando os dados clínicos do paciente com os descritos na literatura. Os autores relatam uma criança com lisencefalia, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor e fenótipo compatível com a SMD. Lactente, 2 meses de idade, hipoativo, hipotonia axial importante e crises convulsivas de repetição desde o 3º dia de vida. Ao exame morfológico, presença de epicanto, base nasal plana, narinas pequenas e antevertidas, fissuras palpebrais com inclinação inferior, estreitamento bitemporal e fronte proeminente. Laudos de tomografia computadorizada e ressonância magnética de crânio evidenciando lisencefalia e agiria. O diagnóstico do paciente estudado, foi considerado pela presença de dismorfias faciais típicas da síndrome e grave atraso do desenvolvimento neuropsicomotor. O fenótipo e as desordens cerebrais encontradas, tanto em exames de imagem quanto na apresentação clínica, devem ser consideradas visto que, muitas vezes, não é possível nem acessível a realização de testes genéticos mais aprimorados.

Palavras-chave: Lisencefalia, Doenças Genéticas Inatas, Síndrome, Convulsões.

ABSTRACT

Miller-Dieker syndrome (MDS) is a rare genetic disorder characterized by lissencephaly, congenital craniofacial anomalies, cardiac malformations, growth retardation, and intellectual disability with seizures. The objective of the present study is to aid in the early diagnosis of the syndrome, correlating the clinical data of the patient with those described in the literature. The authors report a child with lissencephaly, neuropsychomotor development delay and MDS compatible phenotype. Infant, 2 months old, hypoactive, significant axial hypotonia and recurrent seizures from the 3rd day of life. At the morphological examination, presence of epicanthus, flat nasal base, small and anteverted nostrils, palpebral fissures with lower slope, bitemporal narrowing and prominent forehead. Computed tomography and MRI of the skull evidencing lissencephaly and agiria. The diagnosis of the studied patient was considered by the presence of typical facial dysmorphisms of the syndrome and severe delay of neuropsychomotor development. The phenotype and brain disorders found in both imaging and clinical presentation should be considered since it is often not possible or feasible to perform better genetic tests.

Keywords: Lissencephaly, Genetic Diseases, Inborn, Syndrome, Seizures.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Miller-Dieker (SMD) é uma desordem genética rara caracterizada por lisencefalia clássica, anomalias craniofaciais congênitas, malformações cardíacas, retardo do crescimento e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor1,2,3. É comum a presença de convulsões de difícil controle e anormalidades no eletroencefalograma (EEG)3. Causada pela deleção ou mutação no gene LIS1 (lissencephaly 1) no cromossomo 17p13.3, a SMD tem padrão de herança autossômica dominante4.

As anomalias craniofaciais mais frequentemente encontradas na SMD incluem: microcefalia, fronte proeminente, estreitamento bitemporal, pele enrugada sobre a glabela, lábio superior protuberante, micrognatia, fissuras palpebrais com inclinação inferior e narinas pequenas e antevertidas1,2,4.

Existem três tipos de lisencefalia, sendo a lisencefalia clássica aquela na qual há uma anormalidade migratória neuronal resultando em um córtex cerebral liso e espesso, devido à deficiência do desenvolvimento sulcal e giral2,5,6,7,8. Nesses casos, o perímetro cefálico ao nascimento geralmente se encontra dentro das medidas de normalidade. O gene LIS1, localizado em 17p3, é necessário para que os precursores neuronais promovam a migração de forma adequada. A SMD está associada a deleções nesta região 17p3, geralmente com ausência completa do gene LIS1, sendo a causa mais comum de lisencefalia clássica2,5.

Crianças com SMD também desenvolvem déficits intelectuais graves, crescimento inadequado, crises convulsivas e hipotonia ou espasticidade1,2. A expectativa de vida é reduzida4. O óbito geralmente ocorre antes dos 2 anos de idade, frequentemente nos primeiros 3 meses de vida4.


RELATO DE CASO

J.M.D, masculino, 2 meses de idade, filho de pais não consanguíneos, possui 4 irmãos hígidos. Nascido de parto vaginal, à termo, Apgar 8/9, sendo classificado como adequado para a idade gestacional. Mãe fez 6 consultas de pré-natal, sífilis no 3º trimestre da gestação tratada, na admissão da maternidade, com 3 doses de penicilina benzatina, sendo o mesmo tratamento aplicado ao parceiro. VDRL da mãe antes do tratamento 1:32. VDRL do recém-nascido ao nascer 1:32. Solicitado radiografia de ossos longos sem alterações. Não realizado punção lombar devido à indisponibilidade deste exame na unidade na ocasião. O manejo clínico do recém-nascido foi conduzido como neurossífilis, sendo administrada penicilina cristalina por 10 dias.

Ainda na maternidade, J.M.D apresentou um episódio de cianose isolado em membro superior esquerdo após as primeiras horas do pós-parto, sendo realizado ecocardiograma sem anormalidades. Tal evento teve resolução espontânea em poucas horas. Dois dias depois, J.M.D evoluiu com episódios de febre e crises convulsivas inicialmente focais, que se generalizavam posteriormente. Exames laboratoriais constataram hipercalemia de 6,8mmol/L e sódio dentro dos padrões de normalidade. O paciente foi mantido em observação para vigilância clínica e controle do distúrbio hidroeletrolítico, porém manteve hipercalemia de 6,7mmol/L refratária à administração de gluconato de cálcio (1ml/kg/dia).

Solicitado tomografia computadorizada (TC) de crânio sem contraste que constatou lisencefalia e agiria, ressonância magnética (RM) de crânio demonstrou distúrbio do desenvolvimento cortical caracterizado por aspecto lisencefálico nas regiões frontoparietais e paquigírico nos lobos temporais, além de disgenesia comissural e aspecto dismórfico dos núcleos estriados e do tronco encefálico, com hipoplasia da ponte (Figura 1).


Figura 1. Tomografia computadorizada (TC) de crânio sem contraste.



Ao exame físico, J.M.D apresentava-se hipoativo, com hipotonia axial importante e ausência de reflexos de preensão palmar e plantar. Exame morfológico: epicanto, base nasal plana, narinas pequenas e antevertidas, fissuras palpebrais com inclinação inferior, estreitamento bitemporal e fronte proeminente. Encaminhado ao serviço de neurologia pediátrica para investigação diagnóstica de distúrbio metabólico e genético.

Solicitado triagem para erro inato do metabolismo (EIM) com ligeira alteração nos testes para substâncias redutoras, cetoácidos e corpos cetônicos. Análise dos aminoácidos em urina com alterações no grupo 5 (alanina mais acentuada e presença de tirosina) e grupo 6. Análise dos aminoácidos em plasma com discreta alteração sem significado aparente. Ultrassonografia do aparelho urinário dentro dos parâmetros da normalidade.

J.M.D evoluiu com persistência dos episódios de crise convulsiva do tipo focal, todos com duração aproximada de 10 segundos. Iniciado fenobarbital sem melhora do quadro. Realizado ajuste da dose do anticonvulsivante, porém a criança mantinha episódios de crise convulsiva, melhorando somente após substituição do fenobarbital pela associação de clobazam com levetiracetam.


DISCUSSÃO

O paciente em estudo apresenta fenótipo característico da SMD. Esse diagnóstico foi considerado pela presença de dismorfias faciais típicas da síndrome e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor (ADNPM).

A SMD está associada principalmente à lisencefalia, onde o córtex cerebral é espesso e não possui giros2,6,7,8. Em algumas áreas do cérebro, os giros estão em menor quantidade, porém mais largos e rasos do que o normal, denominado paquigiria, e em outras áreas cerebrais pode ocorrer a ausência desses giros, denominada agiria ou lisencefalia completa2,6,7. A migração neuronal é o processo pelo qual os neurônios migram para a posição final no cérebro durante o desenvolvimento do sistema nervoso, que ocorre entre 12 e 16 semanas de gestação2,3. Os neurônios são criados na zona ventricular e se estendem ao longo da glia radial para alcançar a zona cortical3. É o rompimento da migração radial e tangencial que causa redução ou ausência de giros, resultando na lisencefalia3.

O gene LIS1 está intimamente relacionado aos microtúbulos e é responsável pela sua regulação. Os microtúbulos fazem parte do citoesqueleto e desempenham papéis importantes em processos celulares, como mitose e citocinese. Os neurônios em migração primeiro estendem um processo principal ao longo do arcabouço da glia radial, e então o centrossoma e o núcleo são puxados em direção ao processo principal. A rede de microtúbulos e motores moleculares, a dineína, é fundamental para esse movimento do centrossomo e do núcleo dos neurônios em migração. A proteína LIS1 interage com a dineína e regula esse motor molecular baseado em microtúbulos2,3,7. Na lisencefalia ocorre uma falha neste processo de migração de células cerebrais2,7. A forma de lisencefalia encontrada na SMD foi designada como clássica ou lisencefalia do tipo 12. O paciente em estudo possui lisencefalia com agiria confirmada em laudo de TC e RM de crânio, sendo concordante com o descrito na literatura.

As convulsões ocorrem em mais de 90% das crianças com lisencefalia, com início geralmente antes dos seis meses de idade2. Aproximadamente 80% têm espasmos infantis, embora o EEG nem sempre mostre o padrão típico de hipsarritmia2. J.M.D não realizou EEG até o momento presente, mas apresentou convulsões de difícil controle sendo compatível com o diagnóstico de SMD.

Devido às anormalidades cerebrais associadas, os bebês com SMD possuem reduzida capacidade de desenvolvimento e ADNPM severo e profundo1,3,5,6. A maioria dos recém-nascidos desenvolvem hipotonia importante, como foi o caso do paciente em estudo.

Pacientes com a síndrome podem ser diagnosticados com base na apresentação clínica e nas alterações radiológicas sugestivas6,9. Porém, o diagnóstico é dificultado pois sinais e sintomas podem variar entre os pacientes. Isso pode estar relacionado ao tamanho real ou à localização exata da exclusão do cromossomo 176. A confirmação é realizada por meio de testes citogenéticos e por FISH6,9. J.M.D ainda não realizou teste genético, sendo considerado como espectro da SMD através de suas características fenotípicas e imagem demonstrando lisencefalia.

Observou-se ainda, alterações séricas no potássio assim como na triagem para EIM. Tais distúrbios foram inespecíficos e não apontam relação com o quadro neurológico apresentado pelo paciente em estudo. Os autores consideram esses resultados como fatores de confundimento para o diagnóstico, que se esclareceu após a realização da RM.


CONCLUSÃO

A SMD possui prognóstico reservado. Por ser uma patologia que cursa com epilepsia de dificil controle, deve-se atentar para a possibilidade de uma malformaçao cortical e, portanto, encaminhar ao especialista todos os casos de epilepsia em lactente jovem. As características fenotípicas da síndrome e as desordens cerebrais encontradas tanto em exames de imagem quanto na presença de atraso neuropsicomotor, devem ser consideradas para o diagnóstico visto que, muitas vezes, não é possível nem acessível a realização de testes genéticos mais aprimorados.


REFERÊNCIAS

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Data de Submissão: 05/12/2018
Data de Aprovação: 11/04/2019