ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 1

Miastenia gravis juvenil: dificuldade diagnóstica na pediatria

Myasthenia gravis juvenile: diagnostic difficulty in pediatrics

RESUMO

INTRODUÇÃO: A miastenia gravis (MG) é uma doença autoimune da porção pós-sináptica da junção neuromuscular. Trata-se da produção de autoanticorpos voltados contra receptores do próprio indivíduo, destruindo-os. Na maioria dos pacientes, a MG é causada por anticorpos antirreceptores de acetilcolina (Ach). É a doença mais comum dentre as que afetam a junção neuromuscular. Caracteriza-se por fraqueza muscular, que melhora com o repouso e piora com esforço físico ou emocional. Antes dos 18 anos de idade, é denominada miastenia gravis juvenil (MGJ).
RELATO DE CASO: Paciente de 13 anos, iniciou quadro progressivo de ptose palpebral, fraqueza da musculatura cervical, facial e de membros. Evoluiu ainda com refluxo gastroesofágico intenso e pneumonia broncoaspirativa. O quadro evoluiu de forma que a criança foi levada a vários serviços de pediatria públicos e privados, sem que tivesse um pronto diagnóstico ou suspeita clínica. Somente após vários meses e sucessivas internações, inclusive em UTI, o diagnóstico foi realizado e a paciente voltou a ter uma vida normal.
DISCUSSÃO: O caso apresentado constitui uma entidade de baixa incidência e de difícil diagnóstico quando já avançado e com complicações associadas sobrepondo às manifestações típicas. Há outras descrições na literatura corroborando tal afirmação. Após 9 meses de exacerbações e remissões, a paciente foi devidamente diagnosticada e tratada, evoluindo bem.
CONCLUSÕES: Entende-se que esse trabalho se faz de grande importância, chamando atenção para a importância da miastenia e para as doenças raras como um todo. A escassez de dados constitui um desafio.

Palavras-chave: Miastenia Gravis, criança, Doenças da Junção Neuromuscular, Fadiga.

ABSTRACT

Introduction: Myasthenia gravis (MG) is an autoimmune disease of the postsynaptic portion of the neuromuscular junction. It is the production of autoantibodies directed against receptors of the individual, destroying them. In most patients, MG is caused by anti-acetylcholine (Ach) antibodies. It is the most common disease among those that affect the neuromuscular junction. It is characterized by muscle weakness, which improves with rest and worsens with physical or emotional effort. Before age 18, it is called myasthenia gravis juvenile (MGJ).
Case report: A 13-year-old patient developed progressive palpebral ptosis, weakness of the cervical, facial and limb musculature. It also evolved with intense gastroesophageal reflux and bronchospastic pneumonia. The picture evolved so that the child was taken to various public and private pediatrics services without having a prompt diagnosis or clinical suspicion. Only after several months and successive hospitalizations, including in the ICU, the diagnosis was made and the patient returned to normal life.
Discussion: The presented case constitutes an entity of low incidence and of difficult diagnosis when already advanced and with associated complications overlapping the typical manifestations. There are other descriptions in the literature corroborating this statement. After 9 months of exacerbations and remissions, the patient was properly diagnosed and treated, evolving well.
Conclusion: It is understood that this work is of great importance, drawing attention to the importance of myasthenia and for rare diseases as a whole. Shortage of data is a challenge.

Keywords: Myasthenia Gravis, Neuromuscular Junction Diseases, Fatigue.


INTRODUÇÃO

A miastenia gravis (MG) é uma doença autoimune da porção pós-sináptica da junção neuromuscular. Trata-se da produção de autoanticorpos voltados contra receptores do próprio indivíduo, destruindo-os e dificultando a transmissão do impulso nervoso e da contração muscular. Na maioria dos pacientes, a MG é causada por anticorpos antirreceptoresde acetilcolina (Ach). É a doença mais comum dentre as que afetam a junção neuromuscular. Caracteriza-se por fraqueza muscular flutuante, que melhora com o repouso e piora com esforço físico ou emocional1. Quando diagnosticada antes dos 18 anos de idade, é denominada miastenia gravis juvenil (MGJ)2.

A MG surge mais comumente em mulheres de 20 a 34 anos e em homens de 70 a 75 anos de idade, sendo mais predominante no sexo feminino1,3. Totalizando cerca de 10% do total de casos, a MGJ é reconhecida como um distúrbio raro na população pediátrica3.

As manifestações podem ser limitadas a grupos musculares específicos ou generalizadas. Por se tratar de doença autoimune, outras afecções de mesma natureza podem coexistir, como tireoidopatias e timopatias1,4. Assim sendo, é de suma importância uma investigação rigorosa. O presente trabalho possui como objetivo relatar a dificuldade diagnóstica encontrada, diante de uma paciente acometida por esta doença pouco frequente na faixa etária pediátrica. Soma-se a isso a similaridade de algumas manifestações clínicas com outras afecções.


RELATO DO CASO

Paciente de 13 anos, sexo feminino, previamente hígida, natural e residente em São Luís/MA, iniciou há cerca de 9 meses quadro progressivo de voz anasalada, diminuição das expressões faciais, ptose palpebral, diminuição da força muscular da região cervical, membros superiores e inferiores, e ainda dos músculos mastigatórios. Com o agravamento do quadro, surgiram ainda inapetência, disfasia, disfagia e refluxo gastroesofágico intenso. Inicialmente, procurou atendimento médico em pronto socorro pediátrico, onde permaneceu internada por apenas 1 dia em enfermaria. Na ocasião, devido aos sintomas respiratórios, foi estabilizada com uso de ventilação não invasiva. No dia seguinte, houve piora do quadro e a paciente deu entrada em UTI pediátrica. Foi tratada com as hipóteses diagnósticas de reação anafilática e pneumonia broncoaspirativa. Fez antibioticoterapia e houve necessidade de intubação com ventilação mecânica. Na ocasião, a criança permaneceu internada por 9 dias. A partir de então, retornou para enfermaria, permanecendo mais 10 dias. Recebeu alta hospitalar após melhora clínica.

Seguiu-se então um longo período em que a paciente tentou retomar suas atividades, porém apresentava períodos de exacerbações e remissões dos mesmos sintomas. Surgiram limitações para realização de pequenas tarefas, como andar, frequentar a escola, dormir, alimentar-se e até mesmo dormir. Diante da inquietação, a paciente foi levada a vários serviços ambulatoriais de pediatria e otorrinolaringologia. No entanto, permaneceu sem diagnóstico definitivo. Seis meses após, as manifestações da doença exacerbaram-se novamente e de forma mais agressiva, levando a família a buscar novo atendimento médico em pronto socorro pediátrico. Foi diagnosticada com novo quadro de pneumonia broncoaspirativa, que evoluiu para insuficiência respiratória aguda, sendo administrada ventilação mecânica invasiva. Dois dias após, foi transferida novamente para uma UTI pediátrica. Foi então investigada pela primeira vez para MG. Eletroneuromiografia corroborou com o diagnóstico, com decrementação do potencial de ação evocado acima de 40%, após estimulação repetitiva de nervos periféricos às estimulações de 3,5hz e 7hz. Antirreceptor de acetilcolina: positivo 4,6nmol/L e anticorpo anti-tiroquinase músculo-específica: negativo.

Outros exames foram também realizados buscando excluir doenças associadas. Ressonância magnética do mediastino não mostrou alterações. Ultrassonografia da pelve e tireoide foram normais. Hemograma, função renal e hepática, eletrólitos, velocidade de hemossedimentação, e de atividade reumática não indicaram evidências de anormalidade. A paciente foi tratada com piridostigmina, prednisona e imunoglobulina. Evoluiu com remissão progressiva e total dos sintomas, com retorno da qualidade de vida. A mesma recebeu alta hospitalar e foi encaminhada para acompanhamento ambulatorial.


DISCUSSÃO

Por apresentar sinais e sintomas semelhantes a outras doenças, o seu diagnóstico e tratamento, podem ser tardios3. No caso apresentado, foram 9 meses de sucessivas internações e tratamento apenas para as complicações, sem identificação da causa base.

Os sintomas mais comuns compreendem dificuldade na sustentação da cabeça, diplopia, ptose palpebral, fraqueza proximal de membros superiores e inferiores, fraqueza mastigatória, disfagia e disfasia1,5. As complicações clínicas mais importantes da MG são a tetraparesia e a insuficiência respiratória, que no caso apresentado caracteriza a crise miastênica6.

A mortalidade dos pacientes com MG é extremamente baixa (1,7 por milhão da população geral), devido aos avanços na área da medicina intensiva. O seu diagnóstico envolve história típica, pesquisa de anticorpos antirreceptor de Ach, anti-musk, e eletroneuromiografia1,7.

Segundo a classificação de Osserman e Genkins8 (1970 apud Pêgo-Fernandez, PM, Mariani AW, 2011), baseada no padrão de comprometimento muscular, os pacientes diagnosticados são classificados em quatro grupos, nos quais se encontram nos quais se encontram as suas prevalências, conforme tabela 1. O primeiro grupo é denominado ocular, sua prevalência gira em torno de 25%. O segundo grupo se subdivide em: generalizada leve, com 35% de prevalência e generalizada moderada, com 20%. O terceiro grupo é designado como: aguda fulminante, com 11% de prevalência, e, por fim, o quarto grupo, com 9% de prevalência, é reconhecido como: grave de instalação tardia1.




O tratamento da MG objetiva o controle dos sintomas motores característicos, a diminuição das exacerbações, o aumento do período em remissão e tratamento das crises miastênicas8.

O tratamento medicamentoso pode ser direcionado para alivio de sintomas e para reduzir a produção dos autoanticorpos. Para alívio dos sintomas, os medicamentos visam aumentar a ação da acetilcolina na fenda sináptica, possibilitando o retorno da força muscular. Para redução da produção de anticorpos, uma vertente do tratamento é a imunomodulação com uso de imunossupressores capazes de reduzir essa resposta. Os medicamentos mais utilizados são prednisona, piridostigmina, ciclosporina, azatioprina, ciclofosfamida e a imunoglobulina humana1,9.

Outra opção é a timectomia, reservada para casos graves ou quando há presença de timoma. Pelo fato do timo ser o grande responsável pela produção de anticorpos relacionados à doença, a sua remoção cirúrgica melhora a qualidade de vida do paciente em até 70%1,8.

A plasmaférese é um tratamento caro e demorado, porém útil em casos com risco de morte9.

Outras terapias complementares são importantes, como a hidroterapia, fisioterapia, terapia ocupacional e atividade física, visando a readaptação às atividades da vida diária5.

Há ainda que se fazer diagnóstico diferencial com outras condições, como miastenia induzida por drogas, síndrome de Eaton Lambert, botulismo e lesões intracranianas. A paciente não possuía história de uso de medicação prévia ou traumatismos antecedendo as manifestações clínicas. Os pacientes acometidos pelo Clostridium botulinum geralmente desenvolvem um quadro clínico mais agudo de paralisia flácida e sintomas gastrointestinais. Pois, no nosso país, a maioria dos casos descritos estão associados à ingestão de toxina de tipo B2, que habitualmente causa um quadro mais rápido10. Ressonância magnética do tórax não evidenciou presença de tumores pulmonares, distanciando o diagnóstico de síndrome paraneoplásica de Eaton-Lambert.

Como considerou Castro et al.7, descrevendo caso semelhante e considerando a importância do tema, a MG é um distúrbio pouco frequente na infância, motivo que dificulta o reconhecimento, diagnóstico e o tratamento precoces, causando complicações secundárias. O resultado é o aumento da morbidade, mortalidade, tempo de internação e aumento dos custos do tratamento para o paciente e serviços públicos de saúde.

Dessa forma, espera-se que este estudo possa chamar a atenção para a importância da MG e das doenças raras como um todo. A fragmentação e escassez de dados sobre a doença é um importante desafio para sua compreensão no que tange os aspectos epidemiológicos e sanitários9.


REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria SAS/ MS no 1170, de 19 de novembro de 2015. Aprova o protocolo clínico e diretrizes terapêuticas da insuficiência adrenal congênita. Diário Oficial da União, Brasília (DF), 20 nov 2015: Seção 1: 83.

2. Burns DAR, Campos Junior D. Tratado de pediatria. Barueri (SP): Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP); 2017.

3. Ceratti JO, Rosanelli CLSP. Miastenia Gravis autoimune - notas da literatura. Salão do Conhecimento. 2015;1(1):1-4.

4. Aguiar AAX. Miastenia gravis no Ceará, Brasil: aspectos clínicos e epidemiológicos. Arq Neuro-Psiquiatr. 2010;68(6):843-8.

5. Albuquerque OS, et al. Os efeitos da hidroterapia na fadiga, força muscular e qualidade de vida de pacientes com miastenia grave - estudo de dois casos. Cad Pós-Grad Distúrb Desenvolv. 2018;12(2):83-91.

6. Hernández EM. Biomarcadores en el diagnóstico y tratamiento de la miastenia [disertación]. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona - Departamento de Medicina; 2014.

7. Castro EMOF, Santos SS, Ferreira CG. Miastenia gravis juvenil: um relato sobre a dificuldade diagnóstica na pediatria. Rev Pediatr SOPERJ. 2015;15(Supl 1):41.

8. Pêgo-Fernandez, PM, Mariani AW. Miastenia Grave. In: Tópicos de atualização em Cirurgia Torácica. São Paulo: Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica; 2011

9. Costa HCRA. Miastenia gravis: aspectos epidemiológicos e evidências sanitárias no Brasil, no período de 2009 a 2013 [monografia]. Brasília (DF): Universidade de Brasília (UnB) - Faculdade de Ciências da Saúde; 2016.

10. Cardoso T, Costa M, Almeida HC, Guimarães M. Botulismo alimentar: estudo retrospectivo de cinco casos. Acta Méd Portuguesa. 2004;17:54-8.










Hospital Infantil Juvêncio Mattos, Residência Médica em Pediatria - São Luís - Maranhão - Brasil. 2 Hospital Infantil Juvêncio Mattos, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - São Luís - Maranhão - Brasil

Endereço para correspondência:

Luiz Gonzaga Marques dos Reis Júnior
Hospital Infantil Dr. Juvêncio Matos
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E-mail: lgmarquesjunior@hotmail.com

Data de Submissão: 04/12/2018
Data de Aprovação: 14/01/2019