ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

Complicações do transplante renal em portador de síndrome urofacial de Ochoa: relato de caso

Complications of renal transplantation in patients with Ochoa urofacial syndrome: case report

RESUMO

A síndrome urofacial de Ochoa (SUF) é uma condição rara, de herança autossômica recessiva, caracterizada pela presença de uropatia obstrutiva funcional associada à inversão da expressão facial quando tentam sorrir, semelhante à fácies de choro. De diagnóstico eminentemente clínico, a anormalidade da expressão facial é a principal característica da SUF, sendo sua relação com a disfunção miccional ainda controversa. Pacientes portadores da SUF que apresentam infecção do trato urinário de repetição, disfunção miccional e refluxo vesicoureteral, se não diagnosticados precocemente, poderão apresentar deterioração progressiva do trato urinário superior com evolução para insuficiência renal terminal. Os autores relatam um caso de portador de SUF, transplantado renal, má aderente ao tratamento que evoluiu com infecção urinária grave, hipertensão arterial estágio 2 e perda do enxerto renal.

Palavras-chave: Cistite, Insuficiência Renal Crônica, Transplante.

ABSTRACT

Ochoa urofacial syndrome (UFS) is a rare condition with an autosomal recessive inheritance, characterized by the presence of functional obstructive uropathy associated with the inversion of facial expression when attempting to smile, similar to crying facies. From an eminently clinical diagnosis, facial expression abnormality is the main characteristic of UFS and its relation with voiding dysfunction is still controversial. Patients with UFS, who present with recurrent urinary tract infection, voiding dysfunction and vesicoureteral reflux, if not diagnosed early, may present progressive deterioration of the upper urinary tract with evolution to end-stage renal failure. The authors report a case of patients with UFS, kidney transplant, poor adherence to the treatment that evolved with severe urinary tract infection, stage 2 arterial hypertension and renal graft loss.

Keywords: Cystitis, Kidney Failure, Chronic, Transplants.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Ochoa ou síndrome urofacial (SUF) foi descrita pela primeira vez em 1979, por Rafael Elejalde (1979 apud BERTOLOTTI, 2007)1. Condição rara, de herança autossômica recessiva é caracterizada pela presença de uropatia obstrutiva funcional associada à inversão da expressão facial quando tentam sorrir, semelhante a fácies de choro2(Figura 1). Em 1987, Ochoa e Gorlin8 descreveram 36 casos de crianças portadoras de enurese e infecções urinarias de repetição que apresentavam inversão da expressão facial ao sorrir3.


Figura 1. Inversão da expressão facial ao sorrir.



Nenhum caso apresentava anormalidade neurológica ou obstrução mecânica que justificasse o achado urológico4. A SUF afeta igualmente ambos os sexos, com maior frequência em crianças de pais consanguíneos3. Estudos recentes identificaram alteração no braço q23-24 do cromossomo 10 e evidencia de mutação da Haparanase 21. A anormalidade da expressão facial é a principal característica da SUF, sendo sua relação com a disfunção miccional ainda desconhecida1. A teoria mais aceita é a de que, anatomicamente, os centros de choro e riso estão localizados muito próximos do centro da micção, ambos nas protuberâncias superiores do mesencéfalo, intimamente ligados com a porção anatômica que origina o sétimo par de nervos cranianos (nervo facial). Uma lesão nesta área acarretaria nas duas manifestações clínicas4.

O diagnóstico é eminentemente clínico. Pacientes portadores da SUF que apresentam infecções do trato urinário de repetição, sinais de disfunção miccional e refluxo vesicoureteral, se não forem diagnosticados precocemente, podem apresentar deterioração progressiva do trato urinário superior com evolução para insuficiência renal terminal e transplante renal5.


RELATO DE CASO

D.S.N, 15 anos, sexo masculino, etnia cigana, natural de Sorocaba/SP, portador de síndrome de Ochoa, bexiga neurogênica ampliada e derivação vesical continente (Mitrofanoff), submetendo-se ao cateterismo vesical intermitente limpo (CVIL). Há quatro anos realizou transplante renal de doador falecido, no Hospital Pequeno Príncipe, tendo evoluído com perda do enxerto após dois anos devido à má adesão ao tratamento, necessitando de terapia renal substitutiva, reiniciando hemodiálise há 1 ano.

Paciente deu entrada no pronto socorro infantil com queixa de dor abdominal em região hipogástrica, acompanhada de febre, vômitos há três dias, associada à saída de secreção purulenta durante cateterismo vesical através do Mitrofanoff. Relatava constipação intestinal e hipertensão arterial.

Ao exame encontrava-se desidratado, hipertenso estágio 2 (140X100mmHg), presença de abdome distendido com ruídos hidroaéreos diminuídos, doloroso à palpação, principalmente em hipocôndrio direito e região hipogástrica. Os exames complementares realizados revelaram Hg 10.1g/dl; Ht 33,4g/dl; leucócitos 6,47mil/mm3; ureia 215,2mg/dl; creatinina 11,6mg/dl; K 5,9mmol/L, Urina I com leucocitúria superior a 1milhão/ml; Hemácias 400.000/ml. Tomografia de abdome total mostrava moderada distensão de alças intestinais delgadas, sem evidências de fator obstrutivo. Ecocardiograma bidimensional com Doppler: hipertensão pulmonar discreta, hipertrofia ventricular esquerda concêntrica. Realizada hipótese diagnóstica de doença renal crônica (DRC) dialítica por perda do transplante renal e abdome agudo inflamatório por infecção urinária febril complicada. Após hemodiálise, sondagem vesical de demora, sonda nasogástrica aberta e antibioticoterapia com ceftriaxona, o paciente apresentou melhora do quadro infeccioso, reiniciando dieta oral. Com o resultado da urocultura, Klebsiella pneumoniae > 100.000UFC/ml resistente à ceftriaxona e sensível à amicacina, trocou-se antibiótico e calculou-se dose corrigida para doença renal crônica estágio 2. Paciente recebeu alta hospitalar no décimo segundo dia de internação para término da antibioticoterapia em domicílio, com retorno ao tratamento ambulatorial de terapia renal substitutiva (hemodiálise) e encaminhamento ao serviço de transplante renal. Segue com má adesão ao seguimento ambulatorial.


DISCUSSÃO

O diagnóstico precoce da SUF mostra-se importante devido à possibilidade de disfunção miccional evoluir com lesões do trato urinário superior, resultando em hipertensão e insuficiência renal crônica a longo prazo6. O diagnóstico tardio ou a não aderência ao tratamento contribuem para a complicação mais grave da SUF que é a DRC5.

O transplante renal está sujeito a complicações cirúrgicas e clínicas, que inclui as complicações infecciosas. As complicações cirúrgicas incluem as complicações vasculares, como: a trombose de artéria renal, trombose de veia renal, linfocele, estenose da artéria renal; e, urológicas, como: fístula urinária, fístula vesical e obstrução urinária7. As complicações infecciosas são as infecções do trato urinário, do sítio cirúrgico, do trato respiratório, infecção da corrente sanguínea7. Publicação do Registro Norte Americano de TR pediátricos (NAPRTCS) aponta que em 1995 foram realizados 3.066 TR. Esse estudo mostra sobrevida de enxerto (3 anos) de 83% em TR com doador vivo e 66% com doador falecido, respectivamente7. O paciente em questão recebeu transplante renal evoluindo com perda do enxerto após 2 anos.

A infecção do trato urinário (ITU) é a infecção mais comum nos pacientes submetidos a transplante renal, representando de 23 a 75% de toda a infecção relacionada à assistência à saúde (IRAS). Mais de 50% dos episódios de ITU ocorrem durante o primeiro ano após o transplante, sendo mais frequente nas mulheres e nos receptores de doador falecido (DF) de 55 a 84%. Os principais agentes etiológicos são Klebsiella sp., Enterobacter sp., Enterococcus sp., E. coli, P. aeruginosa e Candida sp8. No doente que apresentamos foi isolada na urocultura a Klebsiella pneumoniae.

O paciente deste caso clínico realiza autocateterismo intermitente devido à diurese residual, sendo um fator de risco para ITU de repetição, dando entrada no pronto socorro infantil com secreção purulenta durante cateterismo por Mitrofanoff. Dentre os fatores de risco para perda do enxerto renal destacam-se sua etiologia cigana, sem moradia fixa, baixo nível socioeconômico, abandono escolar e mãe analfabeta.

Diante da gravidade da SUF os pediatras devem conhecer a relação entre sintomas miccionais e sorriso peculiar, evitando suas complicações.


REFERÊNCIAS

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3. Woolf AS, Stuart HM, Roberts NA, McKenzie EA, Hilton EN, Newman WG. Urofacial syndrome: a genetic and congenital disease of aberrant urinary bladder innervation. Pediatr Nephrol [Internet]. 2014 Abr; [citado 2018 out 19]; 29(4):513-8. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23832138

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5. Rondon AV, Leslie B, Bastos Netto JM, Freitas RG, Ortiz V, Macedo Junior A. et al. Síndrome urofacial de Ochoa: reconheça o sorriso peculiar e evite complicações urológicas e renais graves. Einstein [Internet]. 2013 Mai; [citado 2015 mai 1]; 13(2):279-82. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1679-45082015005052990&script=sci_arttext&tlng=pt

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7. Lima MR. Prevalência de complicações infecciosas em pacientes pediátricos submetidos a transplante renal no hospital irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo [monografia]. São Paulo: Hospital Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo – Nefrologia Pediátrica; 2016.

8. Ochoa B, Gorlin RJ, Opitz JM, Reynolds JF. Urofacial (Ochoa) syndrome. Am J Med Genet [Internet]. 1987 Jul; [citado 2018 out 19]; 27(3):661-7. Disponível em: www.https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/ajmg.1320270320










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Bruna Weis Jovino
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Data de Submissão: 26/12/2018
Data de Aprovação: 07/03/2019