ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

Terceiroventriculostomia e biópsia endoscópica em glioma de baixo grau:relato de caso

Endoscopic third ventriculostomy and biopsy of a low-grade glioma

RESUMO

Este artigo apresenta um relato de caso de uma paciente de 5 anos que iniciou com quadro de cefaleia, dificuldade para deambular e vômitos, caracterizando quadro clínico sugestivo de hipertensão intracraniana por hidrocefalia, decorrente de processo expansivo de fossa posterior. Foram realizadas tomografia de crânio e ressonância magnética de encéfalo, as quais comprovaram o diagnóstico clínico. A paciente foi submetida a procedimento neuroendoscópico, sendo realizada terceiroventriculostomia para tratamento da hidrocefalia e biópsia da neoplasia. A paciente evoluiu com melhora clínica e regressão do quadro de hidrocefalia, sendo diagnosticado glioma de baixo grau.

Palavras-chave: Lactente, Hidrocefalia, Glioma, Ventriculostomia.

ABSTRACT

This paper reports the case of a 5-year-old girl with clinical signs consistent with intracranial hypertension caused by hydrocephalus secondary to a posterior fossa tumor, which included headaches, difficulty walking, and vomiting. Head computed tomography (CT) and brain magnetic resonance imaging (MRI) scans confirmed the clinical diagnosis. The patient underwent an endoscopic third ventriculostomy to manage the hydrocephalus and have the tumor biopsied. She improved clinically and the hydrocephalus resolved. The patient was diagnosed with a low-grade glioma.

Keywords: Infant, Hydrocephalus, Glioma, Ventriculostomy.


INTRODUÇÃO

A hidrocefalia é caracterizada com uma condição em que há uma incompatibilidade da produção e absorção do líquido cefalorraquidiano (LCR), com o consequente aumento dos ventrículos. Pode ser dividida em comunicante, quando há comunicação dos ventrículos com o espaço subaracnoide, e obstrutiva, quando há algum obstáculo ao fluxo liquórico (intraventricular ou subaracnoide)1. A neuroendoscopia corresponde à técnica na qual o procedimento cirúrgico é feito sob visão do endoscópio, sendo a terceiroventriculostomia endoscópica (TVE) o procedimento neuroendoscópico mais frequentemente realizado e permite o tratamento de crianças portadoras de hidrocefalia obstrutiva2. Os gliomas são tumores de células gliais dentre os mais comuns na infância, de localização comumente na fossa posterior, causando hidrocefalia obstrutiva3.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 5 anos de idade, inicia com queixa de vômitos nas 2 semanas pregressas, evoluindo com adinamia, dificuldade na deambulação, desequilíbrio e vertigens, quando estava em viagem com a família. Procurou facultativo, que diante do quadro, solicitou tomografia computadorizada (TC) de crânio que evidenciou provável hidrocefalia de caráter obstrutivo. Liberada em seguida com prescrição de topiramato, com vistas à diminuição da produção liquórica. Ao chegar à cidade de origem procura novamente o serviço médico, devido à piora clínica, sendo reavaliada e submetida à nova TC de crânio com contraste, que evidenciou hidrocefalia obstrutiva hipertensiva, decorrente de neoplasia localizada na região posterior do terceiro ventrículo (Figura 1).


Figura 1. Exames de imagem pré-operatórios: A) tomografia de crânio com contraste evidenciando lesão na porção lateral direita do mesencéfalo; B) ressonância magnética axial FLAIR; C) coronal T2; e, D) Sagital T2, demonstrando a natureza intra-axial da lesão.



A paciente foi prontamente encaminhada ao Centro de Terapia Intensiva Pediátrica (CTI-PED), e solicitada ressonância magnética (RM) de encéfalo para o dia seguinte, com vistas à abordagem operatória o mais breve possível. A RM de encéfalo demonstrou lesão expansiva da região pineal e entrada do aqueduto cerebral, com componente intra-axial, com características neoplásicas de baixo grau podendo corresponder a tumor de linhagem germinativa ou glial, além de hidrocefalia obstrutiva acentuada com sinais hipertensivos (Figura 1). Diante de tais diagnósticos, optou-se por abordagem neuroendoscópica. Paciente sob anestesia geral em posição supina, procedeu-se à trepanação em ponto de Kocher direito, para acesso ao ventrículo lateral direito e terceiro ventrículo. No interior deste foi realizada a TVE, com comunicação da cavidade ventricular com a cisterna interpeduncular (Figura 2).


Figura 2. Imagens intraoperatórias da cirurgia: A) terceiroventriculosotomia, demonstrando a eletrocoagulação do túber cinéreo; B) e a dilatação da ostomia com catéter de Fogarty; C) biópsia tumoral, demonstrando a lesão aflorando através da entrada do aqueduto cerebral; e, D) retirada de fragmentos da lesão, após eletrocoagulação.



Após, angulando-se o neuroendoscópio posteriormente, visualizou-se neoplasia aflorando através da entrada do aqueduto cerebral. Foi realizada eletrocoagulação da lesão e retirada de vários fragmentos (Figura 2). Após procedimento cirúrgico retornou ao CTI-PED, onde foi extubada sem intercorrências, mantendo-se hemodinamicamente estável. No primeiro dia pós-operatório foi realizada nova TC de crânio que evidenciou pequena redução do tamanho dos ventrículos e pequeno sangramento no ponto de biópsia, sem outros achados significativos. No segundo dia pós-operatório, dada a melhora clínica, recebeu alta da CTI-PED para a enfermaria, de onde recebeu alta para casa após 3 dias. Na ocasião apresentava-se assintomática, sem sinais localizatórios, com melhora evidente da marcha e ferida operatória em bom estado, sendo prescrito apenas analgesia sintomática.

No retorno ambulatorial após 10 dias da alta a paciente mantinha-se assintomática, sem uso de medicações, com melhora progressiva da marcha. Laudo anatomopatológico evidenciou lesão compatível com glioma de baixo grau, com imunohistoquímica sugestiva do mesmo diagnóstico, apresentando positividade para GFAP e OLIGO2, com expressão da proteína H3.3 K27M e perda parcial da expressão de H3.3 K27me, e negatividade para IDH1 (R132H).


DISCUSSÃO

A principal forma de tratamento cirúrgico da hidrocefalia infantil é a derivação liquórica, principalmente para o peritônio, através de interposição de cateter com válvula. Infelizmente, tal procedimento apresenta a possibilidade de falha, como por exemplo obstrução e infecção do sistema1. Nesse cenário, técnica endoscópicas revelam-se extremamente úteis no manejo da hidrocefalia infantil, pois não se utiliza qualquer prótese2.

As principais técnicas endoscópicas são a TVE para obstruções que levam à dilatação triventricular, a septostomia para comunicação entre os ventrículos laterais e a comunicação entre cavidades isoladas na hidrocefalia complexa4. A TVE é o procedimento neuroendoscópico mais realizado no mundo2. Tal técnica se baseia na abertura do assoalho do terceiro ventrículo, permitindo a saída do líquor do sistema ventricular em direção ao espaço subaracnoideo4,5. Sua principal indicação está reservada, principalmente, ao alívio da hidrocefalia relacionada ao mecanismo obstrutivo, localizado em qualquer ponto desde a porção posterior do terceiro ventrículo até as aberturas mediana e laterais do quarto ventrículo6. Além disso, algumas condições são necessárias para o sucesso dessa técnica, como patência do espaço subaracnoideo e preservação da absorção liquórica ao nível das granulações aracnoideas4.

A TVE para tumores da região posterior do terceiro ventrículo e região pineal, como o caso em questão, é considerada como a principal linha de intervenção, pois apresenta a vantagem de não apenas tratar a hidrocefalia, mas também fornecer janela para biópsia, análise do LCR e evidenciar implantes tumorais2,4,7. Estudos recentes demonstram que os fatores preditivos de sucesso na TVE são: idade superior a seis meses com estenose de aqueduto ou tumor tectal e sem shunt anterior. Além disso, a técnica apresenta melhores resultados em procedimento primário na hidrocefalia obstrutiva sem evidência de infecção prévia ou hemorragia2,4,7,8. Como toda técnica cirúrgica a TVE não é isenta de complicações2. Citam-se sangramento das paredes ventriculares, sangramento de vasos maiores (como veias ou ramos da artéria basilar), desconexão do eixo hipotalâmico hipofisário, pseudoaneurisma da artéria basilar9,10. Em termos de resultado é importante ressaltar que a melhora clínica é mais evidente do que a radiológica, pois a grande maioria dos casos de hidrocefalia apresentam ventrículos pouco complacentes, não retornando ao tamanho normal2,8.

Os tumores do sistema nervoso central representam 20% de todas as doenças malignas da infância, sendo que os gliomas representam cerca de 30% do total, e são responsáveis pela maioria das mortes por tumores cerebrais primários3. As manifestações clínicas desse tumor incluem sinais localizatórios de início súbito, cefaleia, vômitos, distúrbios visuais, alterações na marcha, ataxia e convulsões. Esses sintomas são decorrentes da localização mais habitual dos tumores na infância (fossa posterior) e do aumento da pressão intracraniana, consequente à obstrução do fluxo liquórico7.

No caso relatado a paciente apresentava um glioma difuso de linha média H3K27M mutado, que indica um glioma portando mutação K27M (lisina por metionina no códon 27) no gene da histona H3. Esse tumor predomina em crianças (5 a 11 anos), sem predileção por sexo, mas pode ocorrer em qualquer idade. A sua localização mais comum é no tronco cerebral, tálamo e medula espinhal. Quando a lesão se encontra no tronco e as células tumorais infiltram difusamente as estruturas envolvidas e mais distantes por contiguidade é classificado como grau IV pela OMS11.

Na avaliação imunohistoquímica praticamente todos os tumores expressam NCAM1 (CD56), S100 e OLIGO2. A apresentação de GFAP e MAP2 é variável3. O prognóstico dos pacientes que apresentam a mutação H3K27M pode ser desfavorável, no entanto, características como grau histológico baixo e circunscrição da lesão podem estar relacionadas a comportamento menos agressivo do tumor11. Apesar de sua localização delicada, a ressecção cirúrgica é a base do tratamento da maioria dos casos, sendo que o uso de quimioterapia e radioterapia varia conforme cada caso, sobretudo se há sinais de atipia3,11. Drogas esteroidais para auxiliar na redução do edema cerebral e anticonvulsivantes de acordo com a presença ou não de crises convulsivas, podem ser úteis no manejo pré e pós-operatório3.


CONCLUSÃO

A terceiroventriculostomia endoscópica tem sido adotada com bons resultados para tratamento de casos de hidrocefalia associada a tumores do sistema nervoso central que cursam com hidrocefalia. É de extrema importância que as indicações do procedimento devem ser seguidas adequadamente para que o a eficácia do método seja mantida. Além de ser uma forma de tratamento para a hidrocefalia, a técnica permite a realização de biópsia em casos de tumores de projeção intraventricular.


REFERÊNCIAS

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1. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Pediatria - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
2. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Neurocirurgia - Uberaba - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência:

Maina Tavares Zanoni
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Departamento de Pediatria)
Avenida Getúlio Guarita, nº 130, Nossa Senhora da Abadia, 2° Andar, Hospital de Clínicas
Uberaba - MG. Brasil. CEP: 38025-440
E-mail: E-mail: mainazanoni@gmail.com

Data de Submissão: 22/11/2018
Data de Aprovação: 09/04/2019