Ponto de Vista
-
Ano 2020 -
Volume 10 -
Número
2
A importância das injúrias por acidentes domésticos em tempos de COVID-19
The importance of injuries caused by domestic accidents in times of covid-19
Danilo Blank1; Renata Dejtiar Waksman2
RESUMO
Os acidentes domésticos e as injúrias deles decorrentes têm aumentado em número e gravidade durante a quarentena, com uma percepção de especialistas de que representam uma ameaça maior à saúde e bem-estar das crianças do que a própria COVID-19. Os princípios gerais e dicas específicas para que os pediatras orientem os pais para reduzir a probabilidade e ocorrência de traumas estão na Tabela 1. Todo pediatra tem que estar atento às publicações que tratam do aumento de eventos traumáticos não intencionais durante o período de distanciamento social. Em vários países está ocorrendo que crianças que precisam de atendimento por situações graves não estão sendo levadas aos serviços de emergência ou com muito atraso em relação à ocorrência do trauma. Todo pediatra, além da orientação sobre as medidas de proteção aos traumatismos, tem a responsabilidade de orientar as famílias e os tomadores de decisões políticas acerca dos debates atuais sobre o planejamento da reabertura das escolas, nos quais os especialistas tendem à percepção de que os prejuízos da manutenção das crianças em isolamento domiciliar sobrepujam os riscos da COVID-19.
Palavras-chave:
Acidentes Domésticos, Infecções por Coronavírus, Criança, Adolescente.
ABSTRACT
Domestic accidents and the injuries resulting from them have increased in number and severity during quarantine, with the perception of specialists that they represent a greater threat to children’s health and well-being than covid-19 itself. The general principles and specific tips for pediatricians to educate parents to reduce the likelihood and occurrence of trauma are shown in Table 1. Every pediatrician has to be attentive to publications that deal with the increase of unintended traumatic events during the period of social detachment. In several countries, children who need care for serious situations are not being taken to the emergency services or are subject to delays in doing so in the occurrence of trauma. Every pediatrician, in addition to providing guidance on trauma protection measures, has the responsibility to guide families and policy makers on current debates about planning to reopen schools, in which specialists tend to perceive that keeping children in home isolation outweighs the risks of covid-19.
Keywords:
Domestic Accidents, Coronavirus Infections, Child, Adolescent.
Nestes tempos de pandemia, vivemos uma situação totalmente nova e inusitada, com escolas, empresas e locais públicos fechados; e os pais se esforçando para gerenciar os cuidados de saúde das crianças e jovens neste novo cotidiano “normal”. Com rotinas totalmente alteradas e, muitas vezes, uns tropeçando nos outros em seu espaço de vida, que também agora é local improvisado para trabalhar, brincar, aprender e se exercitar1, na medida em que as famílias tentam equilibrar trabalho, alimentação, educação, bem-estar e proteção dos filhos, é esperado que, além de maior ansiedade, ocorram falhas na supervisão2-4.
Os acidentes domésticos e as injúrias deles decorrentes têm aumentado em número e gravidade durante a quarentena, com uma percepção de especialistas de que representam uma ameaça maior à saúde e bem-estar das crianças do que a própria COVID-191,5.
O que os pais podem fazer para reduzir a probabilidade e ocorrência de traumas, sobretudo neste contexto excepcional em que as crianças estão figurativa e literalmente subindo pelas paredes? A Tabela 1 mostra um apanhado de princípios gerais e dicas específicas que têm aparecido em publicações diversas e certamente podem ajudar1-9.
Todo pediatra tem que estar atento a algumas publicações que tratam do aumento de eventos traumáticos não intencionais durante o período de distanciamento social: de acordo com uma análise feita pela norte-americana Food and Drug Administration (FDA) dos dados fornecidos pela American Association of Poison Control Centers (AAPCC) e pelo National Poison Data System (NPDS), as ligações telefônicas relacionadas a casos de intoxicação por desinfetante para as mãos aumentaram 79%, comparando-se março de 2019 e 2020. A maioria dessas chamadas se deveu a exposições não intencionais em crianças de 5 anos ou menos, sendo que a ingestão de apenas uma pequena quantidade de desinfetante para as mãos pode ser potencialmente letal em uma criança pequena10,11.
Entre janeiro e março de 2020, os centros de envenenamento receberam 45.550 chamadas de exposição relacionadas a produtos de limpeza e desinfetantes, representando aumentos gerais de 20,4% e 16,4% em relação ao mesmo período em 2019 e 2018, parecendo haver uma relação temporal clara com o aumento do uso desses produtos, nas exposições e nos esforços de limpeza do período de isolamento pela COVID-1912.
Um estudo do Hospital Infantil da Filadélfia, publicado no periódico Journal of Pediatric Orthopedics, comparando as fraturas agudas ocorridas durante a pandemia da COVID-19 (15 de março a 15 de abril de 2020) àquelas de um período pré-pandêmico (mesma janela de tempo em 2018 e 2019) na mesma instituição, revelou um aumento na proporção de lesões ocorridas em casa (57,8 versus 32,5%) ou com bicicletas (18,3 versus 8,2%), enquanto ocorreu diminuição nas fraturas relacionadas a esportes (7,2 versus 26%) e playgrounds (5,2 contra 9%)10.
E o que dizer do atendimento secundário dessas injúrias – isto é, daquelas que não puderem ter sido prevenidas – em tempos tão complicados?
A recomendação de consenso é de que se a criança se machucar e não for uma lesão com risco de vida, a primeira opção é entrar em contato com o pediatra ou outro profissional de saúde (por telefone, videoconferência ou atendimento presencial no consultório médico), em busca de orientação técnica adequada, pois muitas vezes os ferimentos podem ser tratados em casa. Se tais contatos não forem possíveis, vale telefonar para um serviço de teleatendimento de emergência (já disponíveis em muitas comunidades; sugere-se às famílias que se informem previamente), para que os profissionais possam ajudar a determinar se uma visita ao pronto-socorro será ou não necessária3,13.
Em vários países já existe a preocupação de que crianças que precisam de atendimento por situações muitas vezes graves não estão sendo levadas aos serviços de emergência ou são levadas com muito atraso em relação à ocorrência do trauma. Estatísticas de hospitais italianos mostram uma diminuição substancial nas visitas de emergência pediátrica, entre 73% e 78%, em comparação com o mesmo período em 2018 e 201914.
As visitas ao pronto-socorro para emergências não-COVID caíram 42% durante a pandemia, comparando-se com o mesmo período em 2019, conforme relato dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC), sendo que as reduções mais acentuadas ocorreram entre menores de 14 anos. Em 2019, 12% de todas as visitas a serviços de emergência ocorreram em crianças com 10 anos ou menos, em comparação com 6% durante o mesmo período deste ano, enquanto experimentavam a pandemia15.
No Reino Unido, os pediatras estão preocupados com a diminuição da procura dos serviços de emergência nas situações de crianças apresentando quadros clínicos graves e lesões não-intencionais que deveriam ter sido levadas num período anterior, estimando que isso cause mortes e doenças potencialmente evitáveis a curto e longo prazo, uma forma de dano colateral causado pelas práticas de distanciamento social na pandemia da COVID-1916.
Neste momento, ainda não há dados consistentes de serviços de emergência mostrando um aumento na incidência de ferimentos domésticos, em parte porque muitos pais devem estar evitando a ida ao pronto-socorro por medo da COVID-19 – tentando um tratamento inicial, que pode não ser efetivo e até deixar sequelas –, ou devido ao atraso nos registros e publicações; mas isso em absoluto significa que injúrias por acidentes em casa não estejam acontecendo.
Por fim, cabe ressaltar que todo pediatra, além orientação sobre as medidas de proteção a traumatismos já enumeradas, tem a responsabilidade de orientar as famílias e os tomadores de decisões políticas acerca dos debates atuais sobre o planejamento da reabertura das escolas, nos quais os especialistas tendem à percepção de que os prejuízos da manutenção das crianças em isolamento domiciliar sobrepujam os riscos da COVID-1917-20.
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1. Professor titular, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
2. Pediatra, Departamento Científico de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria, Núcleo de Estudos da Violência contra Crianças e Adolescentes da SPSP
Endereço para correspondência:
Danilo Blank
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Ramiro Barcelos, nº 2400/Sala 414 (4° andar), Bairro Santa
Porto Alegre - RS, Brasil. CEP: 90035-003
E-mail: blank@ufrgs.br
Data de Submissão: 02/07/2020
Data de Aprovação: 14/07/2020