ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ponto de Vista - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

Covid e seus impactos ao olhar de duas residentes

The impacts of covid-19 from the point of view of two residents


Tenho a lembrança de que dois dias antes de entrar na residência os canais noticiaram o primeiro paciente infectado pela COVID-19 no Brasil. Nos primeiros dias o problema parecia estar longe, minha rotina organizada nos ambulatórios e nos plantões, conforme o planejado.

Entretanto, na segunda semana a situação tomou grandes proporções com a aceleração de novos casos. Prontamente, os serviços do hospital passaram por reformulações integradas para dar suporte aos futuros pacientes, houve a implementação de protocolos de entrada e saída dos setores, uso de EPI´s, capacitação para os profissionais e criação de setores exclusivos para os atendimentos à COVID.

Nesse momento pude observar que a minha função no hospital vai além de ser residente de um setor específico, sendo uma profissional capacitada e disposta a contribuir, independente do local. A rotina no ambulatório não se limitou a desmarcar pacientes para a segurança deles, mas também orientá-los sobre as medidas de prevenção da doença, saber as angústias e controle do tratamento de suas doenças de base.

Situações adversas sempre fizeram parte da rotina, nesse momento em especial os plantões tornaram-se mais intensos. Ao ter contato com os primeiros pacientes pediátricos infectados, diversas peculiaridades na anamnese e no exame físico foram vistas. A doença em seus diferentes estágios, desde a síndrome gripal até o quadro de doença inflamatória multissistêmica.

Circunstâncias sociais também estão presentes, o dilema de uma mãe gestante que optou por acompanhar a filha no hospital mesmo fazendo parte do grupo de risco. Situação de sofrimento que também é vivenciada por muitos profissionais de saúde que estão afastados de seus familiares e amigos durante esse período de combate a pandemia.

Fazer parte desse momento é um exercício de aprendizado diário até para os profissionais mais experientes. Estar na linha de frente é lidar com o novo, maior perícia no trabalho, estudos, cobranças, exercício de empatia e acima de tudo manter o equilíbrio emocional, na certeza de fazer o melhor pensando no paciente e nos familiares que nos depositaram a confiança.

E agora, José?

José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?


Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,

e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Poderia um dos maiores poetas brasileiros do século XX ter imaginado em 1942, que “José” viria a se aplicar de forma tão adequada à pandemia que varreu o planeta em 2020? José, escrito por Carlos Drummond de Andrade em meio ao cenário hostil da ditadura Vargas e da segunda guerra mundial, é uma representação do próprio poeta e do povo brasileiro, naquele período da história tomado pela angústia, pelo medo, pela tensão, pela insatisfação, pela desesperança e pelas reflexões existencialistas diante das incertezas do futuro.

O COVID-19, nascido em Wuhan no final de 2019, tomou de nossas mãos as rédeas de 2020 para mostrar o quão frágil é o ser humano. Dinheiro, posição social, escolaridade, beleza, juventude e até mesmo boa saúde, não fizeram qualquer diferença diante do seu avassalador potencial de destruição.

O sentimento de angústia é algo inerente à existência do homem e nos últimos meses o vimos crescer exponencialmente, como que se de mãos dadas ao COVID. As incertezas geradas pelo desconhecido forçaram mudanças comportamentais radicais na tentativa de frear algo que ainda não pode ser ativamente combatido. A dinâmica das relações interpessoais foi completamente alterada. Trabalho virou home office, atividades escolares viraram videoaula e o carinho entre amigos e familiares teve que ser, tão pobremente, substituído pela interação virtual.

Enquanto a população tenta se adaptar a nova ordem mundial, os profissionais da saúde, mais do que nunca, colocam-se de corpo presente, na linha de frente, para proteger aqueles a quem um dia juraram cuidar. Essa classe, cada vez mais desvalorizada pela sociedade ao longo dos últimos anos, renasce como peça-chave na batalha contra o desconhecido.

Teriam os médicos seus próprios medos e anseios? O que dizer sobre o receio de levar para dentro de suas casas algo que observam matar tantos pacientes diante de seus olhos? Como explicar que muitas vezes seriam obrigados a trabalhar sem equipamentos de proteção individual, simplesmente porque não existiam? Como explicar que, enquanto a população precisaria ficar em casa para se proteger, para eles a contaminação seria basicamente questão de tempo? Como explicar que, além de seus pacientes, também veriam colegas morrendo? Como limitar o contato físico entre médico e paciente quando esse é o alicerce da profissão?

Assim como o “José” de Drummond, o médico, perdido, angustiado, com medo e cheio de incertezas sobre o futuro, questiona seu papel no mundo. Todavia, segue. Para onde não sabe, mas segue porque dele precisam.










Residentes do PRM em Endocrinologia Pediátrica do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Endereço para correspondência:
Renata Mota Vieira Guerreiro
Hospital Universitário Pedro Ernesto
Av. 28 de Setembro, nº 77, Vila Isabel
Rio de Janeiro - RJ. Brasil. CEP: 20551-030
E-mail: renataguerreiro21@hotmail.com

Data de Submissão: 06/07/2020
Data de Aprovação: 16/07/2020