Relato de Caso
-
Ano 2021 -
Volume 11 -
Número
2
Macrocefalia no lactente: nem sempre um sinal ominoso
Infant macrocephaly: not always an ominous sign
Sângela Fernandes da Silva1; Lara Samanta Barbosa Ribeiro1; Nara Lívia Rezende Soares2; Giuliano da Paz Oliveira3,4
RESUMO
A hidrocefalia externa benigna (HEB) é uma condição classicamente autolimitada caracterizada por macrocefalia em crianças combinado com achados radiológicos de aumento do espaço subaracnoide, podendo ou não possuir dilatação ventricular. Relatamos o caso de um lactente de 1 ano e 7 meses com macrocefalia, atraso leve do desenvolvimento neuropsicomotor e achados típicos de neuroimagem. Destacamos a importância de reconhecer a HEB na prática clínica do pediatra, enfatizando que a macrocefalia nem sempre é um sinal ominoso.
Palavras-chave:
Hidrocefalia, Megalencefalia, Cefalometria, Desenvolvimento Infantil.
ABSTRACT
Benign external hydrocephalus (BEH) is a classically self-limited condition, characterized by macrocephaly in children associated with radiological findings of increase in volume of the subarachnoid space, which may cause ventricular dilation. We report the case of a 19-month-old infant with macrocephaly, mild neurodevelopmental delay, and typical neuroimaging findings. We stress out the importance of early BEH diagnosis in pediatric clinical practice, emphasizing that macrocephaly is not necessarily an ominous signal.
Keywords:
Hydrocephalus, Megalencephaly, Cephalometry, Child Development.
INTRODUÇÃO
A hidrocefalia externa benigna (HEB), também conhecida como efusão subdural benigna, coleção subdural benigna ou alargamento benigno do espaço subaracnoide, é caracterizada pelo aumento do perímetro cefálico (PC) combinado achados típicos de neuroimagem1,2. Apresenta uma incidência em torno de 0,4 por mil nascidos vivos, com maior prevalência no sexo masculino1.
A palavra “benigna” reflete a visão clássica de conceituar esta condição como autolimitada e paucissintomática que ocorre em lactentes com resolução espontânea durante as idades pré-escolar e escolar2,3. Os pacientes geralmente são assintomáticos, entretanto o quadro clínico pode incluir eventualmente: veias dilatadas do couro cabeludo, hipotonia leve, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor discreto e deficiência intelectual2,4-6. Em alguns casos, o atraso no desenvolvimento motor diminui e desaparece dentro dos quatro primeiros anos de vida2. A macrocefalia (por definição, aumento do perímetro cefálico acima de dois desvios padrão da média) pode estar presente já ao nascimento ou aparecer ao longo dos primeiros anos de vida, sobretudo no primeiro ano1,2.
Os achados de neuroimagem craniana, seja ultrassonografia transfontanela (USTF), tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM) de crânio, incluem: alargamento do espaço subaracnoide (sobretudo frontal), aumento da distância inter-hemisférica e ventrículos normais ou discretamente aumentados7,8.
A HEB é uma doença pouco comum e pouco conhecida por médicos pediatras. O objetivo deste relato de caso é descrever importância do reconhecimento da HEB pelo médico pediatra, bem como conhecer as suas manifestações clínicas, enfatizando que a macrocefalia nem sempre é um sinal clínico ominoso.
RELATO DE CASO
Lactente de 1 ano e 7 meses do sexo feminino, encaminhado para consulta em ambulatório de neuropediatria pela queixa de aumento de perímetro cefálico percebida em consulta pediátrica de puericultura aos 18 meses de vida.
Trata-se de criança procedente de zona rural do município de Luís Correia/PI, parda, nascida de parto vaginal, com boa vitalidade, Apgar de 1º e 5º minuto de 8 e 10, idade gestacional de 38 semanas, peso de nascimento de 3,1kg, comprimento e perímetro cefálico de nascimento de 49cm e 35,5cm, respectivamente. Mãe de 24 anos, duas gestações e nenhum abortamento anterior. Realizou 4 consultas de pré-natal, com sorologias negativas para infecções congênitas.
Quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor, apresentava atraso leve: sustento cervical com 6 meses, sentou com apoio aos 8 meses e sem apoio aos 12 meses, aceno em “tchau” aos 1 ano e 4 meses, primeiras palavras (“mama” e “não”) bem como marcha independente com 1 ano e 6 meses.
Estava em acompanhamento com pediatra em unidade básica de saúde, entretanto com apenas dois registros de perímetro cefálicos prévios: nascimento 35,5cm (P95-P97) e aos 12 meses 48cm (>P97). O exame neurológico era normal, exceto pela macrocefalia com perímetro cefálico de 50,5cm (>P97, Figura 1). Não havia alteração tegumentar. As fontanelas estavam completamente fechadas, o tônus muscular era adequado e os reflexos osteotendíneos eram normais. O exame de ressonância magnética (RM) de crânio revelou alargamento dos espaços subaracnóideos frontais, ampla fissura inter-hemisférica com ventrículos normais, compatível com o diagnóstico de hidrocefalia externa idiopática (Figura 2).
Figura 1. Curva de crescimento do perímetro cefálico, conforme gráfico padronizado da Organização Mundial de Saúde.
Figura 2. Imagens de ressonância magnética de crânio, axial FLAIR (A), sagital T1 (B), axial T2 (C), coronal T2 (D), revelando alargamento dos espaços subaracnoideos frontais (cabeça de seta), ampla fissura inter-hemisférica (seta) com ventrículos laterais normais.
COMENTÁRIOS
A macrocefalia é definida como PC acima de dois desvios padrões da média para idade, sexo e tamanho corporal, estabelecido usando gráficos de crescimento padronizados nacionalmente. Trata-se de uma das principais causas de referenciamento para atendimento neuropediátrico, cujas causas incluem hidrocefalia (aumento de líquor dentro do crânio), megalencefalia (aumento do volume do encéfalo), aumento da espessura da calota craniana e sangramentos cerebrais8,9.
O aumento do PC pode estar ligado a doenças potencialmente graves como neoplasias cranianas ou sangramentos intracranianos ou a condições benignas como a hidrocefalia externa benigna (HEB), como no presente caso. Desta forma, a macrocefalia nem sempre deve ser encarada como sinal ominoso na prática clínica. Alguns autores constataram que o atraso do desenvolvimento e a presença de sinais neurológicos focais são sinais de alarme no contexto de avaliação de uma criança com macrocefalia9.
É importante ainda destacar que a macrocefalia secundária à HEB pode estar presente desde o nascimento ou surgir posteriormente, sobretudo ao longo do primeiro ano de vida. Entretanto, mesmo que ainda não configure macrocefalia, os recém-nascidos que desenvolvem HEB geralmente possuem o PC acima do percentil 90 ainda nos primeiros meses de vida, o que constitui uma importante dica clínica para identificação desta condição1,2.
A idade média de primeiro atendimento especializado, conforme estudo realizado na Noruega, foi de 7,3 meses, inferior à idade da nossa paciente, o que pode ser atribuído a uma dificuldade de acesso na rede de saúde de nosso país1. Embora classicamente descrita como condição assintomática, até 17,6% dos pacientes com HEB podem possuir atraso leve do neurodesenvolvimento, como no caso em discussão. Outros sinais e sintomas que podem ocorrer, com menor frequência, são: presença de veias dilatadas no couro cabeludo, hipotonia, vômitos, irritabilidade, epilepsia e deficiência intelectual1,2,6,10,11. Postula-se que a fisiopatologia da HEB envolva um desbalanço entre a produção do líquor no plexo coroide e sua reabsorção nas granulações araconoideas ocasionando acúmulo no espaço subaracnóide12.
Os exames complementares subsidiários incluem ultrassonografia transfontanelar (USTF), tomografia computadorizada (TC) ou RM de crânio. No presente caso, os achados de aumento dos espaços subaracnoides frontais e o aumento da distância entre os hemisférios cerebrais (fissura inter-hemisférica) visualizados na RM de crânio corroboraram o diagnóstico de hidrocefalia externa benigna idiopática e estão de acordo com os dados da literatura1,7,8,10.
Destacamos a necessidade de conhecimento por parte dos pediatras das causas de macrocefalia, dentre as quais a HEB. Ressalta-se que a macrocefalia nem sempre deve ser encarada como sinal ominoso, sobretudo na ausência de fatores de risco como atraso do desenvolvimento neuropsicomotor e presença de sinais neurológicos focais. Por outro lado, acreditamos que mais estudos são necessários a respeito desta condição, sua fisiopatologia e, sobretudo, quanto ao acompanhamento de longo prazo e avaliação prognóstica dos pacientes.
REFERÊNCIAS
1. Wiig US, Zahl SM, Egge A, Helseth E, Wester K. Epidemiology of benign external hydrocephalus in norway-a population-based study. Pediatr Neurol. 2017 Ago;73:36-41.
2. Zahl SM, Egge A, Helseth E, Wester K. Benign external hydrocephalus: a review, with emphasis on management. Neurosurg Rev. 2011 Out;34(4):417-32.
3. Rekate HL, Blitz AM. Hydrocephalus in children. Handb Clin Neurol. 2016;136:1261-73.
4. Chazal J, Tanguy A, Irthum B, Janny P, Vanneuville G. Dilatation of the subarachnoid pericerebral space and absorption of cerebrospinal fluid in the infant. Anat Clin. 1985;7(1):61-6.
5. Cundall DB, Lamb JT, Roussounis SH. Identical twins with idiopathic external hydrocephalus. Dev Med Child Neurol. 1989 Out;31(5):678-81.
6. Zahl SM, Egge A, Helseth E, Skarbo AB, Wester K. Quality of life and physician-reported developmental, cognitive, and social problems in children with benign external hydrocephalus-long-term follow-up. Childs Nerv Syst. 2019 Fev;35(2):245-50.
7. Gupta SN, Belay B. Intracranial incidental findings on brain MR images in a pediatric neurology practice: a retrospective study. J Neurol Sci. 2008 Jan;264(1-2):34-7.
8. Khosroshahi N, Nikkhah A. Benign enlargement of subarachnoid space in infancy: “a review with emphasis on diagnostic work-up”. Iran J Child Neurol. 2018;12(4):7-15.
9. Sampson MA, Berg AD, Huber JN, Olgun G. Necessity of intracranial imaging in infants and children with macrocephaly. Pediatr Neurol. 2019 Abr;93:21-6.
10. Halevy A, Cohen R, Viner I, Diamond G, Shuper A. Development of infants with idiopathic external hydrocephalus. J Child Neurol. 2015 Jul;30(8):1044-7.
11. Mikkelsen R, Rodevand LN, Wiig US, Zahl SM, Bernstsen T, Skarbo AB, et al. Neurocognitive and psychosocial function in children with benign external hydrocephalus (BEH)-a long-term follow-up study. Childs Nerv Syst. 2017 Jan;33(1):91-9.
12. Bradley Junior WG, Bahl G, Alksne JF. Idiopathic normal pressure hydrocephalus may be a “two hit” disease: benign external hydrocephalus in infancy followed by deep white matter ischemia in late adulthood. J Magn Reson Imaging. 2006 Out;24(4):747-55.
1. Universidade Estadual do Piauí, Aluna de graduação do Curso de Medicina - Teresina - Piauí - Brasil
2. Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, Residente de Endocrinologia Pediátrica, Departamento de Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
3. Universidade Federal de São Paulo, Programa de Pós Graduação em Neurociências, Departamento de Neurologia e Neurocirurgia - São Paulo - São Paulo - Brasil
4. Universidade Federal do Piauí, Docente do curso de Medicina - Parnaíba - Piauí - Brasil
Endereço para correspondência:
Giuliano da Paz Oliveira
Universidade Federal de São Paulo
R. Sena Madureira, nº 1500, Vila Clementino
São Paulo- SP. Brasil. CEP: 04021-001
E-mail: giulianopoliveira@gmail.com
Data de Submissão: 05/05/2019
Data de Aprovação: 21/05/2019