ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Impacto da pandemia de COVID-19 na epidemiologia pediátrica

Impact of the COVID-19 pandemic on pediatrics epidemiology

RESUMO

OBJETIVOS: Avaliar o impacto da pandemia de coronavírus na epidemiologia pediátrica de pronto-socorro infantil.
MÉTODOS: Realizado estudo observacional retrospectivo descritivo. Foram avaliados: o número de atendimentos, a taxa de internação hospitalar nos meses de março, abril e maio do ano de 2019, assim como os CID-10 mais frequentes. Estes, foram comparados com os dados do mesmo período no ano de 2020.
RESULTADOS: Denota-se redução de 70% na procura por atendimento pediátrico durante o período de pandemia do coronavírus. As patologias mais comuns encontradas foram as doenças respiratórias, tais como bronquiolite aguda viral e bronquite aguda. Notou-se queda das hospitalizações por casos de bronquiolite aguda viral por vírus sincicial respiratório em 2020. Ainda, no mesmo ano houve aumento de internações por bronquite aguda, sugerindo mudanças epidemiológicas geradas pelo isolamento social. O número de hospitalizações por trauma cranioencefálico também sofreu aumento em 2020.
CONCLUSÃO: A pandemia do COVID-19 parece ter impactado na epidemiologia pediátrica, reduzindo o número de atendimentos e internações.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Epidemiologia Descritiva, Pediatria, Emergências.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To assess the impact of the coronavirus pandemic on pediatric epidemiology in children's emergency rooms.
METHODS: A retrospective, descriptive observational study was carried out. The following were evaluated: the number of visits, the rate of hospitalization in the months of March, April and May of 2019, as well as the most frequent pathologies. These were compared with data from the same period in 2020.
RESULTS: There was a 70% reduction in the demand for pediatric care during the coronavirus pandemic period. The most common pathologies found were respiratory diseases, such as acute viral bronchiolitis and acute bronchitis. There was a decrease in hospitalizations for cases of acute viral bronchiolitis due to respiratory syncytial virus in 2020. Also, in the same year there was an increase in hospitalizations for acute bronchitis, suggesting epidemiological changes generated by social isolation. The number of hospitalizations for traumatic brain injury also increased in 2020.
CONCLUSION: The COVID-19 pandemic appears to have had an impact on pediatric epidemiology, reducing the number of visits and hospitalizations.

Keywords: Coronavirus Infections, Epidemiology, Descriptive, Pediatrics, Emergencies.


INTRODUÇÃO

A “sazonalidade” das doenças virais na área pediátrica apresenta-se bem demarcada em diferentes meses do ano de acordo com a região geográfica. Na região sudeste, as doenças respiratórias, tais como a bronquiolite viral aguda e a bronquite aguda, ocorrem por volta do período de março a junho1. Entretanto, devido à pandemia da COVID-192 que rapidamente se tornou um problema de saúde pública no mundo todo3, notou-se uma mudança epidemiológica nas queixas de pronto-socorro infantil. As crianças estão suspensas de suas atividades escolares presenciais, ficando mais tempo em casa, o que pode ter diminuído a contaminação destas4 e gerado alterações no dia a dia do atendimento pediátrico.

A transmissão do coronavírus ocorre de pessoa para pessoa, por contato da mucosa com secreções infectadas ou através de fômites5. Na China, menos de 1% dos casos foram relatados em crianças menores de 10 anos de idade6. O quadro clínico causado pela infecção do vírus SARS-CoV-2 possui relatos de diferentes apresentações. Entretanto, na pediatria, grande parte da literatura atual relata quadros oligossintomáticos, ou mesmo assintomáticos, com bom prognóstico2,5. Nessa questão há fatores envolvidos do hospedeiro, mas também da exposição4. É sugerido na literatura que a chave para o diagnóstico3 possa estar no vínculo epidemiológico2. Por essa razão, todos os dados epidemiológicos relacionados a esse tema são de grande valia.


MÉTODOS

Estudo observacional, retrospectivo, descritivo. Foi realizada pesquisa no setor de arquivamento médico e estatístico de hospital geral; incluído todos os atendimentos realizados no setor de pronto-socorro infantil nos meses de março, abril e maio do ano de 2019 e comparado com os dados do mesmo período no ano de 2020. Foram contemplados na pesquisa os seguintes CID-10 (Código Internacional de Doenças): J21, J210, J218, J219, S06, S068 e S069.

Avaliaram-se as variáveis: número de atendimentos, taxa de internação hospitalar e frequência das patologias supracitadas. Nos resultados, ao citar o ano de 2019 ou de 2020 referimo-nos apenas ao trimestre estudado. Não foram coletados dados de outros meses nos respectivos anos. Os dados foram tabulados em Microsoft Excel.

Comparou-se a frequência de internação em 2019 e 2020 através do método estatístico qui-quadrado. O valor significante considerado quando p < 0,05. Os dados encontrados foram correlacionados com dados da literatura científica atual. Não foram guardados os dados posteriormente a esta pesquisa.


RESULTADOS

No ano de 2019, foram realizados 1.658 atendimentos médicos no pronto-socorro infantil. Março representou 33,7% do total de atendimentos. Abril revelou-se o mês com o maior número de atendimentos, sendo 43,8% do total. Já no mês de maio, ocorreu o menor número de atendimentos, com queda de 20% em relação ao mês anterior. A bronquite aguda (J219) e a bronquiolite aguda (J21) surgiram como as queixas mais frequentes.

Em 2020, totalizaram-se 502 atendimentos, ou seja, houve uma queda de 70% na procura pelo pronto-socorro infantil, quando comparado ao ano anterior. Março representou 83,2% do total de consultas, sendo, portanto, o mês com o maior número de casos. Em abril, foram realizados apenas 11,2% dos atendimentos. Em maio, apenas 5,6%. No trimestre, a bronquite aguda foi a patologia mais prevalente. A Tabela 1 ilustra a frequência de doenças para os anos de 2019 e 2020.




Foram registradas 537 internações em 2019 e 215 em 2020. Em ambos, a bronquite aguda foi uma das causas mais frequente de internação, tendo representado em 2019, 37% do total de internações, e em 2020, 53%. A bronquiolite aguda devido ao vírus sincicial respiratório, totalizou em 2019, 38% do total de atendimentos, porém sofreu brusca queda em 2020, quando totalizou apenas 4% das internações. No ano de 2019, os traumatismos intracranianos (S069) representavam somente 1,2% do total de internações. Já em 2020, essa taxa subiu para 5%. Os Gráficos 1 e 2 exemplificam as internações registradas.






Com relação às internações, o mês de março totalizou 29% em 2019, seguido de abril com 40% e maio com 30%. Em 2020, março representou 85% de todas as internações, seguido por abril com 10% e maio sendo 4%. Aplicou-se o teste estatístico do qui-quadrado para comparar as frequências de internação em 2019 e 2020. No ano de 2019, os meses de março e abril incorreram em valor significantemente maior de internação por bronquiolite devido ao vírus sincicial respiratório quando comparados a 2020 (p = 0,0566 para março; p = 0,0585 para abril). No ano seguinte, o mês de março teve maior internação por bronquite aguda (p = 0,0025). O aumento no número de internações por quadros de traumas crânio-encefálicos não evidenciou relevância estatística (p = 0,1149; p = 0,8522).


DISCUSSÃO

Previamente à pandemia, no trimestre referente ao estudo, registravam-se grande parte dos casos respiratórios pediátricos anuais da região1. Desde o início da crise sanitária, assim como em outros países, optou-se pelo fechamento de creches e escolas, visando diminuir a propagação do coronavírus ou SARS-CoV-2. Isso gerou epidemiologicamente uma queda da propagação viral, assim como um receio de contaminação por parte da população4,7, que redobrou seus cuidados de higiene pessoal. Tais fatores foram impactantes na mudança observada pelo pediatra nos atendimentos de urgência e emergência. A redução do número de casos atendidos no pronto-socorro infantil em 2020 foi claramente evidenciada nesse estudo. Notou-se ainda, queda nos casos de bronquiolite aguda por vírus sincicial respiratório, sugerindo uma efetividade nos métodos adotados de isolamento social4. Vale ressaltar que muitos cuidadores e pais têm tolerado grande parte dos sintomas graves em ambiente domiciliar, a fim de evitar a ida ao hospital. Essa prática, embasada em receio excessivo, pode colocar em risco à vida de muitas crianças, devendo, portanto, ser desaconselhada pelos pediatras.

Em ambos os anos predominaram as internações hospitalares de quadros respiratórios. A prevalência dos quadros respiratórios na amostra é esperada uma vez que na região sudeste do Brasil, local do estudo, os meses de março a junho são os de maior prevalência na circulação de alguns vírus1. Todavia, a bronquite aguda foi a mais prevalente causa de internação em 2020. Por se tratar de doença crônica que se caracteriza pelas crises de agudização, a mesma pode representar outras causas desencadeantes de exacerbação, que não sejam infecciosas, tais como: frio, poluição, alérgenos aéreos, alergias alimentares, entre outros1,5.

Abril de 2019 foi o mês com mais internações. No contexto da chamada “sazonalidade” pediátrica, esse dado poderia ser facilmente encontrado em anos anteriores. Contudo, em 2020, após o mês de março, concomitantemente com o início da pandemia no Brasil, as internações nos meses subsequente declinaram bruscamente, denotando que, o curso de evolução previsto foi interrompido pelas medidas aplicadas, principalmente no que tange ao fechamento de creches, escolas e áreas de lazer infantil3,4. O estigma que tem se associado à doença também pode ter contribuído para tal.

Em vigência do maior tempo de ociosidade infantil dentro do ambiente domiciliar, esperávamos encontrar um grande aumento na frequência em 2020 de acidentes domésticos, traumas e agressões; especialmente porque muitas crianças ficam sem a supervisão adequada dos pais ou cuidadores nesse período. Erroneamente, muitos consideram o ambiente domiciliar como seguro ou possuem demasiado afazeres, que impossibilitam a vigilância necessária. O aumento no número de casos de traumas cranioencefálicos desse estudo pode sugerir mais acidentes domésticos no período da pandemia. Embora irrelevante estatisticamente, necessitamos de mais estudos para avaliar este dado, podendo em próximos estudos ser evidenciada a hipótese aqui supracitada2.

Este estudo avaliou apenas os CID-10 mais frequentes no dia-a-dia do pronto-socorro infantil do hospital em questão. As internações parecem estar diretamente ligadas ao número de atendimento. E a pandemia, diretamente relacionada à queda nos atendimentos infantis. O impacto desta pandemia ainda é imensurável e são necessários mais estudos epidemiológicos a esse respeito.


CONCLUSÃO

A pandemia da COVID-19 parece ter impactado na epidemiologia pediátrica, reduzindo o número de atendimentos e internações. Sugerimos novos estudos epidemiológicos a respeito, a fim de conhecer o real impacto da pandemia na vida do pediatra.


REFERÊNCIAS

1. Caballero MT, Polack FP, Stein RT. Viral bronchiolitis in young infants: new perspectives for management and treatment. J Pediatr (Rio J). 2017;93(Suppl 1):75-83.

2. Cai J, Xu J, Lin D, Yang Z, Qu Z, Zhang Y, et al. A case series of children with 2019 novel coronavirus infection: clinical and epidemiological. Clin Infect Dis. 2020 Fev;1:ciaa198.

3. Qiu H, Wu J, Hong L, Luo Y, Song Q, Chen D. Clinical and epidemiological features of 36 children with coronavirus disease 2019 (COVID-19) in Zhejiang, China: an observational cohort study. Lancet Infect Dis. 2020 Jun;20(6):689-96.

4. Dong Y, Mo X, Hu Y, Qi X, Jiang F, Jiang Z, et al. Epidemiological characteristics of 2143 pediatric patients with 2019 coronavirus disease in China. Pediatrics. 2020 Abr;58(4):712-3.

5. Cheng VCC, Lau SKP, Woo PCY, Yuen KY. Severe acute respiratory syndrome coronavirus as an agent of emerging and reemerging infection. Clin Microbiol Rev. 2007 Out;20(4):660-94.

6. Lu X, Zhang L, Du H, Zhang J, Li YY, Qu J, et al. SARS-CoV-2 infection in children. N Engl J Med. 2020 Abr;382(17):1663-5.

7. Houghton C, Meskell P, Delaney H, Smalle M, Glenton C, Booth A, et al. Barriers and facilitators to healthcare workers’ adherence with infection prevention and control (IPC) guidelines for respiratory infectious diseases: a rapid qualitative evidence synthesis. Cochrane Database Syst Rev. 2020;4(4):CD013582.










1. Universidade de Santo Amaro, Pediatria - São Paulo - SP - Brasil
2. Instituto de Responsabilidade Social Sírio Libanês, Pediatria - São Paulo - SP - Brasil

Endereço para correspondência:
Juliana Carvalho Tavares Alves
Universidade de Santo Amaro. Rua Isabel Schmidt, 349 - Santo Amaro, São Paulo - SP, Brasil. CEP: 04743-030
E-mail: polianawada@hotmail.com

Data de Submissão: 30/06/2020
Data de Aprovação: 08/07/2020