ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Mudança no perfil epidemiológico da síndrome respiratória aguda grave na população pediátrica brasileira: indício de subnotificação da COVID-19

Change in the epidemiological profile of severe acute respiratory syndrome in the Brazilian pediatric population: indication of COVID-19 subnotification

RESUMO

INTRODUÇÃO: O impacto da COVID-19 na população pediátrica brasileira pode estar subestimado pela subnotificação. O presente estudo objetiva comparar a incidência de hospitalizações e óbitos por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e etiologias na faixa pediátrica até a semana 25, em 2019 e 2020.
MÉTODOS: Estudo epidemiológico realizado por consulta ao InfoGripe. Foram consultados dados referentes às semanas epidemiológicas 1 a 25, dos anos de 2019 e 2020. Os dados foram analisados por meio do programa SPSS 26.0.
RESULTADOS: Comparando os anos de 2019 e 2020, observa-se redução da taxa de incidência (por 100.000) de hospitalizações por SRAG na faixa etária de 0-4 anos de 4,023 para 2,980 (p = 0,05), e aumento nas outras faixas etárias, nos escolares a incidência passou de 0,353 para 0,618 (p = 0,009) e entre os adolescentes de 0,115 para 0,393 (p = 0,002). Houve aumento dos óbitos de 0,013 para 0,017 (p = 0,05) entre 5-9 anos, e de 0,009 para 0,029 (p = 0,001) entre 10 e 19 anos. Em relação à SRAG por “etiologia desconhecida”, a incidência de hospitalizações aumentou 0,294 para 1,454 (p = 0,007) e os óbitos de 0,03 para 0,28 (p = 0,004).
CONCLUSÃO: A incidência de hospitalizações e óbitos por SRAG em 2020 nas faixas etárias entre 5-9 e 10-19 anos foi superior à de 2019. O aumento de 3,4 vezes no número de casos e de 9,3 vezes nos óbitos por SARG sem etiologia definida em 2020 pode sugerir importante subnotificação da COVID-19 no Brasil. Faz-se necessário que novos estudos avaliem a extensão e impacto do SARS-CoV-2 na população pediátrica.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Pediatria, Síndrome Respiratória Aguda Grave.

ABSTRACT

INTRODUCTION: The impact of COVID-19 on the Brazilian pediatric population may be underestimated by underreporting. This study compares the incidence of hospitalizations and deaths due to severe acute respiratory syndrome (SARS) and etiologies in children between 2019 and 2020.
METHODS: Epidemiological study carried out by consulting InfoGripe. Data referring to epidemiological weeks 1 to 25 of the years 2019 and 2020 were consulted, analyzed using the SPSS 26.0 program.
RESULTS: Comparing the years 2019 and 2020, we observed reduction in the incidence rate (per 100,000) of hospitalizations for SARS in the 0-4 year age group from 4.023 to 2.980 (p = 0.05), and an increase in the other age groups, in schoolchildren, 0.353 to 0.618 (p = 0.009) and among adolescents, 0.115 to 0.393 (p = 0.002). There was an increase in deaths from 0.013 to 0.017 (p = 0.05) between 5-9 years, and from 0.009 to 0.029 (p = 0.001) between 10-19 years. In relation to “unknown etiology”, the incidence of hospitalizations increased from 0.294 to 1.454 (p = 0.007) and deaths from 0.03 to 0.28 (p = 0.004).
CONCLUSION: The incidence of hospitalizations and deaths due to SARS in 2020 in children aged 5-9 and 10-19 years was higher than in 2019. The 3.4-fold increase in the number of cases, and 9.3-fold increase in deaths from SARS without a defined etiology in 2020 may suggests an important underreporting by COVID -19 in Brazil. Further studies are needed to assess the extent and impact of SARS-CoV-2 in children.

Keywords: Coronavirus Infections, Pediatrics, Severe Acute Respiratory Syndrome.


INTRODUÇÃO

O novo coronavírus (SARS-CoV-2) é um vírus RNA da linhagem B, subgênero Sarbecovírus, subfamília Coronaviridae, causador da doença denominada COVID-19, transmitida de pessoa a pessoa por gotículas, contato direto com secreções infectadas, aerossóis gerados por procedimentos terapêuticos ou fômites1. O surto inicial foi reportado na cidade de Wuhan, província de Hubei, China, em 31 de dezembro de 2019, e em 11 de março de 2020 já estava declarada pandemia mundial pela Organização Mundial da Saúde2,3.

A infecção pelo SARS-CoV-2 gera quadros mais exuberantes em adultos e idosos, ao passo que a população pediátrica apresenta curso clínico brando ou até assintomático, com melhor prognóstico e raros relatos de morte. Na maior série de casos pediátricos, cerca de 90% das 2.143 crianças avaliadas com testes positivos apresentaram infecção sem sintomas ou sintomas leves a moderados4.

As razões para a menor agressividade do vírus na população infantil ainda estão sendo elucidadas. Sabe-se que a infecção ativa a imunidade celular e humoral, inata e adaptativa, podendo desencadear resposta inflamatória exacerbada do hospedeiro, com quadros de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), sepse e síndrome da disfunção de múltiplos órgãos. Fatores como imaturidade do sistema imune adaptativo das crianças, vacinação BCG e infecções prévias pelo vírus sincicial respiratório, parecem estar relacionados a menor invasão viral e resposta inflamatória menos exuberante5,6. Por outro lado, com a evolução da pandemia e aumento expressivo do número de infectados no Brasil e no mundo, casos agudos e graves têm sido reportados em crianças e adolescentes, possivelmente associados à COVID-19. Os casos têm sido descritos como SRAG e Síndrome Inflamatória Multissistêmica, potencialmente fatais7. Tradicionalmente, as principais etiologias que resultam em SRAG são os vírus (influenza A, dengue, vírus sincicial respiratório, adenovírus, hantavírus e coronavírus) e bactérias (Pneumococo, Legionella sp., Leptospirosa, etc.)8. No entanto, com a emergência da pandemia pelo SARS-CoV-2, um novo subtipo de vírus tornou-se uma etiologia importante de SRAG, provocando desde quadros completamente assintomáticos até manifestações exuberantes em idosos, adultos e até mesmo adolescentes e crianças infectadas4,7.

No dia 27 de junho de 2020, 4 meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 em território nacional, o Brasil possuía 1.313.667 casos confirmados e 57.070 óbitos, sendo o segundo país com maior número de óbitos confirmados pela doença. No entanto, apesar do expressivo e já conhecido impacto sanitário, econômico, político e social ocasionado pelo SARS-CoV-2, as repercussões podem ser ainda mais severas em virtude do grande volume de subnotificação e do pequeno número de testes realizados9.

Estima-se que o número de casos confirmados e notificados de COVID-19 corresponda apenas a 32% (IC 95%, 25-38%) do total de casos sintomáticos no Brasil10. Até o dia 29 de maio de 2020, eram realizados apenas 2,28 testes a cada mil habitantes, quantidade substancialmente inferior à média encontrada em países como EUA (48,96/mil habitantes), Portugal (81,7/mil habitantes) e Espanha (54,23/mil habitantes)11. Outro estudo recente aponta que o número real de casos é cerca de 11 vezes maior do que o reportado. Trata-se de um panorama que requer cautela, visto que a ausência de dados fidedignos pode suscitar interpretações errôneas e medidas equivocadas de planejamento e ação para o controle da doença12.

Frente ao expressivo contingente de subnotificações e à emergência de casos graves, potencialmente fatais entre crianças e adolescentes, torna-se fundamental buscar ferramentas que auxiliem no real entendimento da situação epidemiológica vigente e do impacto da doença nessas faixas etárias. Nesse sentido, a análise comparativa da incidência de casos e óbitos por SRAG nos anos de 2019 e 2020 é relevante, visto que uma possível elevação de casos confirmados sem diagnóstico etiológico definido pode representar casos de COVID-19 subnotificados na população pediátrica. Este trabalho objetiva comparar a incidência de SRAG na faixa etária pediátrica nas semanas epidemiológicas de 1 a 25, em 2019 e 2020, com a finalidade de encontrar uma elevação não esperada no número de casos sem diagnóstico etiológico definido que, na realidade, podem representar casos de SARS-CoV-2 não diagnosticados.


MÉTODOS

Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, cujos dados foram obtidos por meio de consulta à base de dados do InfoGripe, que monitora os casos reportados de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) no SINAN (sistema de informações de agravos de notificação), disponibilizada no endereço eletrônico: http://info.gripe.fiocruz.br/ (acesso em 27/06/2020).

A população do estudo é constituída por todos os casos de hospitalizações e óbitos por SRAG, definidos como “SRAG” e “óbitos por SRAG”, respectivamente, em três faixas etárias: 0 a 4 anos, 5 a 9 anos e 10 a 19 anos, reportados entre as semanas epidemiológicas 1 a 25, dos anos de 2019 e 2020. Os dados sobre a incidência de hospitalizações e óbitos por SRAG segundo etiologia representam a população total de casos sem especificação de faixas etárias e estão categorizados em “etiologia desconhecida”, “não SARS-CoV-2”, “SARS-CoV-2”, reportados no mesmo período. Todas as incidências são apresentadas conforme disponibilizadas pela plataforma InfoGripe, sendo o denominador constituído por 100.000 habitantes sem distinção quanto à faixa etária, representando, portanto, toda a população brasileira.

As análises estatísticas foram realizadas com o auxílio do SPSS (Statistical Package for Social Science) versão 26.0. A parametricidade dos dados foi verificada por meio do teste de Shapiro-Wilk. A distribuição das incidências foi avaliada por meio de gráficos de dispersão e Boxplot. A comparação das médias de 2019 e 2020 das incidências das 25 semanas por 100.000 habitantes foi realizada aplicando-se o teste de Mann-Whitney. Em todas as análises foi adotado um nível de significância de 5% (p ≤ 0,05).


RESULTADOS

Até a semana epidemiológica 25, do ano de 2020, a incidência média (por 100.000) de SRAG na população de 0 a 19 anos foi de 3,991 (DP±2,765) (Tabela 1). Considerando a faixa etária com maior representatividade de casos SRAG, encontramos incidência de 2,980 (DP±2,219) na faixa etária 0-4 anos. Em contrapartida, a menor incidência de SRAG ocorreu entre 10-19 anos, com valor de 0,393 (DP±0,276), e entre 5-9 anos a incidência foi de 0,618 (DP±0,389). Ao compararmos a incidência de SRAG até a referida semana no biênio 2019-2020, verificamos redução na incidência de SRAG entre 0-4 anos (p valor = 0,05) e elevação estatisticamente significativa da incidência da doença entre as faixas etárias de 5-9 (p = 0,009) e 10-19 anos (p = 0,002). Assim, a incidência de SRAG em 2020 entre 10-19 anos foi cerca de 3,5 vezes mais alta do que no ano de 2019, enquanto entre 5-9 anos foi aproximadamente 1,75 vezes maior.




Na análise da incidência de óbitos por SRAG, essa associação se manteve (Tabela 1). Observamos acréscimo, com significância estatística, na incidência de óbitos por SRAG nas faixas etárias de 5-9 de 0,013 para 0,017 (p = 0,05) e entre 10-19 anos de 0,009 para 0,029 (p = 0,001). Desse modo, o registro de óbitos em 2020 foi 1,3 vezes maior na faixa etária de 5-9 anos e 3,2 vezes maior entre os adolescentes (10-19 anos).

Analisando a distribuição da incidência de hospitalizações por SRAG no biênio 2019-2020, observamos em 2020 um incremento na incidência total de hospitalizações a partir da 10ª semana epidemiológica. Esse acréscimo da incidência ocorreu em todas as faixas etárias analisadas, mas foi substancialmente expressivo na faixa etária de 0-4 anos, atingindo um pico de incidência na 12ª semana, com valor de aproximadamente 10 para 100.000. Nas faixas etárias de 5-9 e 10-19 anos, a incidência também foi superior àquela encontrada em 2019, mas o pico na 12º semana foi menos expressivo, com cerca de 1,72 e 0,74 para cada 100.000, respectivamente (Gráfico 1A).




Em relação à dispersão da incidência de óbitos por SRAG no mesmo período, observamos que a partir da 9ª semana, na maioria das semanas, a incidência em 2020 foi superior à incidência em 2019. O pico de incidência em 2020, 0,397 óbitos em 100.000, ocorreu na 13ª semana epidemiológica e foi maior que o valor encontrado no ano anterior. A faixa etária de 0-4 anos apresentou maior incidência de óbitos na 13ª semana, com cerca de 0,29. Por fim, a maior incidência de óbitos entre 5-9 ocorreu na 14ª semana, cerca de 0,027, e entre 10-19 anos o pico de incidência de óbitos por SRAG foi verificado na 17ª semana com valor aproximado de 0,086 (Gráfico 1B).

Quanto à incidência de hospitalizações por SRAG de acordo com a etiologia (Tabela 2) em 2020 até a semana epidemiológica 25 foi a seguinte: etiologia definida como “SARS-CoV-2” foi de 1,712 (DP±1,849), enquanto por etiologia definida como “não SARS-CoV-2” foi de 0,054 (DP±0,063), e por “etiologia desconhecida” foi de 1,454 (DP±1,214) por 100.000 habitantes. Comparando o biênio 2019-2020, observamos incremento estatisticamente significativo (p=0,007) na incidência de casos por “etiologia desconhecida” no ano de 2020, em 4,9 vezes. Em relação à etiologia “não SARS-CoV-2”, a incidência no ano de 2020 foi 3,4 vezes menor (p<0,001) que a do ano de 2019. A comparação de óbitos por etiologia nos dois períodos seguiu padrão semelhante. Em 2020, a incidência de óbitos por “etiologia desconhecida” foi 9,3 vezes maior (p=0,004) que a do mesmo período no ano anterior. Por outro lado, a incidência de óbitos por etiologia “não SARS-CoV-2” apresentou redução de 3,4 vezes em 2020 em relação a 2019.




Observa-se no Gráfico 2 que, em relação à dispersão das hospitalizações (Gráfico 2A) e óbitos (Gráfico 2B) por SRAG segundo a etiologia, as semanas 1 a 25 do ano de 2019 e as 9 primeiras semanas de 2020, apresentaram distribuição epidêmica, sem pontos outliner. A partir da semana 9 do ano de 2020, as incidências por “etiologia desconhecida” apresentaram incremento substancial, sendo superiores às incidências de todas as semanas correspondentes no ano de 2019.




Em relação à etiologia definida “não SARS-CoV-2”, os principais vírus foram influenza A e VSR (vírus sincicial respiratório). A incidência de hospitalizações por SRAG por influenza A no ano de 2019 foi de 0,065 (DP±0,063) para 100.000 e em 2020 foi de 0,021 (DP±0,029), com redução de 68% (p=0,02) em relação ao mesmo período no ano anterior. De forma semelhante, a incidência de hospitalizações por SRAG por VSR também sofreu redução de 0,099 (DP±0,062) em 2019 para 0,017 (DP±0,020) em 2020, expressando redução de 83% (p<0,001). Quanto aos óbitos, a incidência por SRAG por influenza A em 2019 foi de 0,011 (DP±0,011) e em 2020 foi de 0,002 (DP±0,004), redução de 82% (p valor=0,001). A incidência de óbitos por SRAG pelo VSR foi 0,004 (DP±0,003) em 2019 e 0,001 (DP±0,001), redução de 75% (p valor<0,001).


DISCUSSÃO

Ao comparar as primeiras 25 semanas epidemiológicas de 2019 e 2020, o presente estudo verificou aumento da incidência de hospitalizações e óbitos por SRAG nas faixas etárias de 5-9 e 10-19 anos; com relação à etiologia observada em todas as faixas etárias, observamos redução nas internações e óbitos por SRAG de etiologia definida como “não SARS-CoV-2” e aumento expressivo de casos com “etiologia desconhecida”.

As importantes mudanças no perfil epidemiológico da SRAG refletem a presença do novo agente etiológico causador da COVID-19 e também as modificações comportamentais trazidas pela implementação da quarentena. O distanciamento social mesmo que feito de forma parcial reduz a circulação de todos os vírus e bactérias, o que justifica a redução de casos e óbitos de etiologia definida como “não SARS-CoV-2”, e isso se reflete sobretudo na faixa etária de 0 a 4 anos, população mais suscetível à SRAG por agentes etiológicos como VSR e influenza.

O expressivo aumento de hospitalizações e óbitos por SRAG de “etiologia desconhecida” em meio a pandemia de COVID-19, faz supor que o incremento não esperado de casos sem diagnóstico etiológico, na verdade, pode representar casos de SARS-CoV-2 não diagnosticados, seja por baixa de disponibilidade de testes ou pela baixa sensibilidade dos mesmos. Corrobora com essa hipótese o fato de, nos primeiros dias após a infecção, os testes sorológicos apresentarem sensibilidade entre 18,4% e 46,7%. Nos testes de detecção do RNA viral, por meio do RT-PCR, a sensibilidade identificada foi de 44,2%13,14. Assim, é factível afirmar que existe um enorme contingente de resultados falso-negativos, principalmente em fases mais precoces da infecção.

Nesse sentido, devido à baixa efetividade em confirmar casos de infectados por COVID-19 no Brasil, presume-se que exista uma grande diferença entre o número de casos suspeitos e notificados12. Por meio dos resultados encontrados, nota-se que isso também se aplica à população pediátrica, visto que, conforme verificado pelo presente estudo, a incidência de hospitalizações por etiologia desconhecida no ano de 2020 foi superior ao ano de 2019 em 4,9 vezes. Dentre as inúmeras justificativas para essa desproporção e a provável subnotificação de hospitalizações por SRAG por SARS-CoV-2 destacam-se: dificuldades operacionais para realização de testes; baixa disponibilidade de novos exames; capacidade restrita de análise dos resultados; baixa sensibilidade dos testes diagnósticos; dificuldade logística na distribuição de testes em um país de dimensões continentais como o Brasil12,15.

A metodologia do presente estudo fundamentou-se na análise de base de dados secundários e, em virtude da fonte de informações disponibilizada, algumas limitações se impõem.

Primeiramente, no ano de 2019, uma minoria das hospitalizações ou mortes por SRAG, a etiologia foi notificada, ao passo que em 2020, em mais da metade dos casos a notificação ocorreu. Certamente as hospitalizações e óbitos por SRAG em 2019 foram predominantemente de etiologia desconhecida por não haver motivação tamanha em elucidá-la quando comparado ao cenário pandêmico de 2020. Os dois anos não são, portanto, comparáveis quanto à etiologia. Com isso, não é possível afirmar categoricamente que a etiologia desconhecida em 2020 significa um grande número de subnotificações de SARS-CoV-2. Porém, é factível inferir que neste contingente de casos, pode haver casos de COVID-19 não notificado, representando um indício de subnotificação.

Por outro lado, as etiologias das hospitalizações e óbitos por SRAG representam a população total, sem distinção quanto à faixa etária, portanto não é possível afirmar com precisão que os dados disponibilizados se aplicam à população pediátrica. A estratificação desses dados, por idade, seria essencial para uma compreensão mais assertiva da situação epidemiológica. Ainda assim, foi verificada redução estatisticamente significativa na incidência de hospitalizações e óbitos por influenza A e VSR, importantes agentes etiológicos responsáveis por SRAG entre 0-4 anos8. Portanto, é possível que a redução de hospitalizações e óbitos por esses agentes também se estenda à população pediátrica e uma explicação plausível para esse decréscimo é o distanciamento social adotado durante a pandemia, o que diminui significativamente o contato com secreções e gotículas contaminadas por esses vírus.

Outro aspecto relevante que compromete o pleno entendimento da situação epidemiológica vigente é o viés de diagnóstico ou detecção pela emergência do novo coronavírus no Brasil. Em virtude da atenção mundial à COVID-19, do início de protocolos hospitalares e da detecção dos primeiros casos no país, há maior probabilidade de que o diagnóstico e notificação de SRAG tenham sido realizados. Assim, o pico de casos próximo à semana 12 pode ser reflexo, novamente, de um viés de motivação diagnóstica, que teria valor no incremento do número de diagnósticos de SRAG em detrimento de outros como pneumonia, síndrome gripal, insuficiência respiratória, sepse, possivelmente mais realizados em anos anteriores.

Por fim, o aumento de hospitalizações e óbitos por SRAG em escolares e adolescentes, somado ao aumento de casos de “etiologia desconhecida” pode indicar que a subnotificação de casos e óbitos por COVID-19 no Brasil também seja expressiva entre pacientes pediátricos e interfere na compreensão do momento epidemiológico vivenciado pelo país, assim como da sua real gravidade.

Ainda que limitados, os dados disponíveis retratam aumento das incidências de hospitalizações e óbitos por SRAG no ano de 2019 para 2020 em maiores de 4 anos. Dessa forma, torna-se primordial a amplificação da testagem e notificação dos casos confirmados, bem como a apresentação dos dados de etiologia em categorias por idade. Além disso, são fundamentais novos estudos que permitam avaliar a extensão e impacto do SARS-CoV-2 na população pediátrica, fornecendo estimativas fidedignas e garantindo assim, a tomada de condutas assertivas capazes de impactar positivamente no controle da doença.


REFERÊNCIAS

1. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Departamento Científico de Terapia Intensiva (2019-2020). Nota de Alerta. COVID-19: protocolo de diagnóstico e tratamento em unidade de terapia intensiva pediátrica [Internet]. Rio de Janeiro (RJ): SBP; 2020 Mai; [acesso em 2020 Jun 24]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/22487d-NA_-_COVID-_Protoc_de_Diag_Trat_em_UTI_Pediatrica.pdf

2. Sohrabi C, Alsafi Z, O’Neill N, Khan M, Kerwan A, Al-Jabir A, et al. World Health Organization declares global emergency: a review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). Int J Surg. 2020 Abr;76:71-6. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijsu.2020.02.034

3. Han Q, Lin Q, Jin S, You L. Coronavirus 2019-nCoV: a brief perspective from the front line. J Infect. 2020 Abr;80(4):373-7. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jinf.2020.02.010

4. Lu X, Zhang L, Du H, Zhang J, Li YY, Qu J, et al. SARS-CoV-2 infection in children. N Engl J Med. 2020 Abr;382(17):1663-5.

5. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Departamento Científico de Pneumologia (2019-2020). Nota de Alerta. COVID-19 em crianças: envolvimento respiratório [Internet]. Rio de Janeiro (RJ): SBP; 2020 Abr; [acesso em 2020 Jun 23]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/22430d-NA_-_COVID-19_em_criancas-_envolvimento_respiratorio.pdf

6. Eastin C, Eastin T. Epidemiological characteristics of 2143 pediatric patients with 2019 coronavirus disease in China: Dong Y, Mo X, Hu Y, et al. Pediatrics. 2020 Mar;58(4):712-3.

7. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Departamentos Científicos de Infectologia (2019-2021) e de Reumatologia (2019-2021). Nota de Alerta. Síndrome inflamatória multissistêmica em crianças e adolescentes provavelmente associada à COVID-19: uma apresentação aguda, grave e potencialmente fatal [Internet]. Rio de Janeiro (RJ): SBP; 2020 Mai; [acesso em 2020 Jun 25]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/22532d-NA_Sindr_Inflamat_Multissistemica_associada_COVID19.pdf

8. Monteiro CC, Dezanet LNC, França EB. Monitoramento de vírus respiratórios na região metropolitana de Belo Horizonte, 2011 a 2013. Epidemiol Serv Saúde. 2016 Jun;25(2):233-42.

9. Ministério da Saúde (BR). Painel coronavírus - COVID-19 [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020; [acesso em 2020 Jun 27]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br

10. Russell TW, Hellewell J, Abbott S, Golding N, Gibbs H, Jarvis CI, et al. Using a delay-adjusted case fatality ratio to estimate under-reporting. CMMID Repository [Internet]. 2020; [acesso em 2020 Jul 03]. Disponível em: https://cmmid.github.io/topics/covid19/global_cfr_estimates.htm

11. Ritchie H, Ortiz-Ospina E, Beltekian D, Mathieu E, MacDonald B, Hasell J, et al. Coronavirus pandemic (COVID-19). Our World in Data [Internet]. 2014; [acesso em 2020 Jul 3]. Disponível em: https://ourworldindata.org/coronavirus/

12. Prado MF, Antunes BBP, Bastos LSL, Peres IT, Silva AAB, Dantas LF, et al. Análise da subnotificação de COVID-19 no Brasil. Rev Bras Ter Intensiva [Internet]. 2020; [citado 2020 Jul 06]; 32(2):224-8. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-507X2020005002202&lng=en DOI: https://doi.org/10.5935/0103-507x.20200030

13. Pachito DV, Bagattini AM, Oliveira Junior HA, Medeiros FC, Brito GV, Matuoka JY, et al. Testes diagnósticos para COVID-19. Síntese de evidências. Oxford Brazil EBM Alliance [Internet]. 2020; [acesso em 2020 Jun 27]. Disponível em: https://oxfordbrazilebm.com/index.php/2020/03/27/testes-diagnosticos-covid-19/

14. World Health Organization (WHO). Laboratory testing for coronavirus disease 2019 (COVID-19) in suspected human cases: interim guidance, 2 March 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020; [acesso em 2020 Jun 26]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/331329/WHO-COVID-19-laboratory-2020.4-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y

15. Ribeiro LC, Bernardes AT. Nota Técnica. Estimate of underreporting of COVID-19 in Brazil by acute respiratory syndrome hospitalization reports [Internet]. Belo Horizonte (BH): Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar)/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); 2020; [acesso em 2020 Jun 23]. Disponível em: https://saci2.ufop.br/data/solicitacao/18528_nt_estimativa_subnotificacao.pdf










1. Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria - Goiânia - GO - Brasil
2. Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Medicina - Goiânia - GO - Brasil

Endereço para correspondência:

Renata Machado Pinto
Universidade Federal de Goiás. Rua 235, s/n - Setor Leste Universitário
Goiânia - GO, Brasil. CEP: 74605-050
E-mail: drarenatamachado@gmail.com

Data de Submissão: 05/07/2020
Data de Aprovação: 04/08/2020