ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Manifestações graves da doença de Kawasaki em tempos de COVID-19: relato de caso

Severe manifestations of Kawasaki disease in the times of COVID-19: a case report

RESUMO

A doença de Kawasaki é uma das vasculites primárias mais comuns na infância e a principal causa de cardiopatias adquiridas. Trata-se de uma vasculite aguda, multissistêmica, de etiologia desconhecida e autolimitada, que ganhou notoriedade durante a pandemia do novo coronavírus. A febre alta e persistente por mais de cinco dias, associada ao exantema polimórfico, conjuntivite bilateral, eritema da língua com proeminência papilar (“língua em morango”), edema de extremidades e linfonodomegalia cervical são características clínicas típicas da doença, mas que também foram encontradas em alguns pacientes diagnosticados com COVID-19 e na síndrome inflamatória multissistêmica, assim como suas principais complicações: estenoses e aneurismas de coronárias, miocardite, insuficiência cardíaca e choque.

Palavras-chave: Miocardite, Choque Cardiogênico, Síndrome de Linfonodos Mucocutâneos, Infecções por Coronavírus.

ABSTRACT

Kawasaki disease is one of the most common primary vasculitis in childhood and main cause of acquired heart disease. It is an acute, multisystemic vasculitis, of unknown etiology, and self-limited, which gained notoriety during the new coronavirus pandemic. High and persistent fever for more than five days, associated with polymorphic rash, bilateral conjunctivitis, tongue erythema with papillary prominence (“strawberry tongue”), extremities edema, and enlarged cervical lymph nodes are typical clinical features of the disease, but these were also found in patients diagnosed with COVID-19 and multisystemic inflammatory syndrome, as well as its main complications: coronary stenosis and aneurysms, myocarditis, heart failure and shock.

Keywords: Myocarditis, Shock, Cardiogenic, Mucocutaneous Lymph Node Syndrome, Coronavirus Infections.


INTRODUÇÃO

A doença de Kawasaki é uma das vasculites primárias mais comuns na infância. Trata-se de uma vasculite aguda, multissistêmica e autolimitada, que acomete predominantemente vasos de médio calibre, com predileção pelas artérias coronárias, principalmente em crianças menores de 5 anos1. Foi inicialmente descrita por Tomisaku Kawasaki, em 1967, como uma doença benigna e autolimitada, sendo posteriormente evidenciado alterações coronarianas graves, insuficiência cardíaca e óbito quando não tratada adequadamente2.

Ainda que 85% dos casos sejam relatados em menores de 5 anos, pode atingir todas as faixas etárias, sendo que há maior risco de sequelas cardiovasculares a partir dos oito anos de idade. É mais frequente em meninos, sendo a principal causa de doença cardíaca adquirida na infância nos Estados Unidos, onde a incidência estimada é de 25 casos para cada 100.000 crianças menores de cinco anos. Já nos países asiáticos essa incidência é ainda maior, atingindo 30,3 em cada 100.000 crianças2,3.

Apesar de sua etiologia não estar bem definida, algumas hipóteses tentam explicar seu desenvolvimento. Alguns autores acreditam que ela seja desencadeada por agentes que causam infecções assintomáticas ou oligossintomáticas na infância, principalmente os vírus do tipo RNA, resultando em doença naqueles indivíduos geneticamente suscetíveis, embora os primeiros estudos tenham fornecido evidências de uma estimulação imunológica por superantígenos bacterianos, assim como uma resposta oligoclonal de IgA, entretanto, muito se tem falado sobre a teoria do coronavírus NL-63, que ganhou força após relatos da doença em pacientes acometidos pela COVID-194-6.

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde foi notificada devido a um surto de pneumonia de origem desconhecida na cidade de Wuhan, na China. Posteriormente o agente etiológico foi identificado, tratava-se de um novo tipo de coronavírus, que recebeu o nome de SARS-CoV-27. Em meio a pandemia, foi publicado o caso de uma criança de 6 meses de idade diagnosticada com doença de Kawasaki, que também apresentou resultado positivo para COVID-19. A partir daí inúmeros relatos de uma síndrome grave, com manifestações iniciais semelhantes à da doença de Kawasaki, que surgia cerca de quatorze dias após a infecção pelo novo coronavírus foram publicados, recebendo o nome de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada ao SARS-CoV-2 (MIS-C)8.

O caso relatado a seguir ilustra a doença de Kawasaki em sua forma clássica e suas manifestações graves. Diante dos resultados de sorologias (IgM e IgG) e o RT-PCR (reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa) negativos para COVID-19, não se enquadra nos critérios de definição da MIS-C, mas deve ser considerada seu principal diagnóstico diferencial. Nosso objetivo é atentar o leitor quanto às características peculiares da doença de Kawasaki, que pode confundir muitos profissionais em tempos de pandemia, seu potencial de gravidade e a necessidade do diagnóstico precoce e específico, direcionando o tratamento a fim de evitar suas complicações.

O responsável pelo paciente autorizou o uso de dados do prontuário e fotos para a confecção desse relato, diante da assinatura do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa por meio da Plataforma Brasil.


APRESENTAÇÃO DO CASO

Pré-escolar, masculino, 3 anos, previamente hígido apresentando febre contínua há 5 dias, evoluindo com exantema polimórfico não pruriginoso (Figuras 1 e 2) no quarto dia de história, tipo urticariforme no tórax e dorso, e eritema maculopapular nos membros superiores e inferiores. Foi admitido na enfermaria de pediatria em uso de anti-histamínico e esteroides para tratamento das lesões cutâneas.


Figura 1. Edema e fissura dos lábios e exantema polimórfico no tórax e abdome.


Figura 2. Exantema polimórfico dos membros inferiores.


Na admissão apresentava-se em regular estado geral, desidratado, descorado (+/4+), febril e eupneico. Escala de coma de Glasgow igual a 15, pupilas isocóricas e fotorreagentes, e hiperemia conjuntival bulbar bilateral sem secreção. A oroscopia evidenciou vermelhidão e fissuras nos lábios, enantema, hipertrofia e hiperemia das tonsilas, além de hiperemia da língua com proeminência das papilas. Palpado linfonodo submandibular à esquerda, sem sinais flogísticos.

Após doze horas na enfermaria o exantema ficou mais intenso e as mãos edemaciadas. Apresentava-se gemente, saturando 88% em ar ambiente e 92% na máscara de Venturi à 50%, pressão arterial sistólica de 80mmHg, diastólica 45mmHg e média 60mmHg, evoluindo com taquipneia e esforço respiratório. Encaminhado para a unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP) em insuficiência respiratória sendo prontamente intubado, acoplado à ventilação mecânica, puncionado acesso central em jugular interna direita, iniciado cefepima empiricamente, 150mg/kg/dia dividido em três doses, colhidos exames laboratoriais e culturas (Quadro 1).




Permaneceu estável no primeiro dia de internação na unidade, entretanto, no segundo dia necessitou de aumento dos parâmetros ventilatórios, cursando com bradicardia, hipotensão (sistólica: 66mmHg; diastólica 35mmHg; média: 45mmHg), extremidades frias, tempo de enchimento capilar de 5 segundos e redução na diurese. Recebeu duas expansões volêmicas de 20ml/kg associado à epinefrina 0,3mcg/kg/minuto em infusão contínua. Foi realizado ecocardiograma a beira leito que evidenciou discreta dilatação das câmaras cardíacas com redução da contratilidade segmentar do ventrículo esquerdo, com fração de ejeção de 43%, sem alterações coronarianas.

Diante dos dados da história clínica e do exame físico, inicialmente aventou-se duas hipóteses diagnósticas: síndrome do choque tóxico e síndrome inflamatória multissistêmica possivelmente relacionada ao coronavírus, sendo então associado clindamicina 40mg/kg/dia de 6/6 horas e solicitado RT-PCR e sorologias para COVID-19 (IgM e IgG). Após os resultados dos exames laboratoriais foi administrado concentrado de hemácias 10ml/kg, vitamina K 1mg/kg e furosemida 1mg/kg, com boa diurese em seguida.

No terceiro dia de cuidados intensivos (8º dia de sintomas) mantinha-se febril, apesar da antibioticoterapia, da hemocultura, urocultura e cultura de líquor negativas. O RT-PCR, IgM e IgG para COVID-19 foram negativos. As alterações liquóricas sem crescimento de microrganismos na cultura sugeriu meningite asséptica. Então optamos pela infusão de imunoglobulina 2g/kg em doze horas, associado à administração de ácido acetilsalicílico 100mg/kg/dia considerando a possibilidade de miocardite secundária à doença de Kawasaki como etiologia do choque cardiogênico.

Após cinco dias internado na UTIP (10º dia dos sintomas) apresentou remissão da febre (48 horas da imunoglobulina), sendo possível diminuir os parâmetros ventilatórios e titular a droga vasoativa até a sua suspensão. Reduzimos a dose de AAS para 5mg/kg/dia e procedemos a extubação. Foi encaminhado para enfermaria no oitavo dia de internação onde permaneceu por mais quatro dias, sendo que no 16º dia da doença os dedos das mãos e dos pés começaram a descamar.


DISCUSSÃO

A hipótese etiopatogênica mais aceita até o momento é de que a doença de Kawasaki seja desencadeada por agentes infecciosos que determinam manifestações clínicas em indivíduos susceptíveis. Alterações inflamatórias são observadas em vários órgãos, principalmente no coração, pericárdio e vasos sanguíneos, causando miocardite, pericardite, aneurismas e estenoses de coronárias. Não é infrequente meningite asséptica, pneumonite, linfadenite e hepatite2,4,10.

O caso relatado retrata bem as características e os critérios diagnósticos da doença de Kawasaki (Quadro 2), que é dividida em três fases clínicas: aguda, subaguda e convalescença. A febre alta, persistente, incide junto ao primeiro dia da doença. Essas crianças frequentemente são examinadas nas unidades de emergências, onde são prescritos antibióticos empiricamente, o que não cessa a febre e leva ao retorno do paciente2.




A presença de febre por 5 dias ou mais, associada a pelo menos 4 dos outros 5 critérios caracterizam a forma clássica, também chamada de completa, da doença de Kawasaki. No entanto, os pacientes febris que não apresentam todas essas características clínicas são frequentemente considerados como portadores da forma incompleta (ou atípica) da doença, e devem ser submetidos ao ecocardiografia2.

Diante de inúmeras notas de alerta de sociedades médicas e publicações científicas sobre a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada ao SARS-CoV-2, o diagnóstico diferencial com formas graves da doença de Kawasaki deve ser prontamente estabelecido, visto que os sinais e sintomas são semelhantes, e o desfecho parecido. Além da MIS-C, outros diagnósticos diferenciais devem ser considerados. O choque nos faz destacar a síndrome do choque tóxico, seja estafilocócico ou estreptocócico. A semelhança das características clínicas, mas a diferença nos tratamentos pode retardar o início da terapia com imunoglobulina, resultando na manutenção do estado de hipoperfusão e aumento na morbimortalidade8,9.

A conjuntivite bulbar bilateral e não secretiva, associada à febre e ao exantema, muitas vezes confundem o examinador, dada a semelhança com outros exantemas virais, infecções bacterianas e farmacodermias. O rash aparece até o quinto dia da doença, é inespecífico e polimórfico; varia desde eritema maculopapular até rash urticariforme, purpúrico ou escarlatiniforme. Enantema e fissuras labiais são frequentes. Eritema e hipertrofia papilar deixam a língua com “aspecto de morango”. Linfadenopatia cervical unilateral no triângulo cervical anterior também são comuns na doença3.

Os exames laboratoriais podem exibir achados característicos (Quadro 3), assim como o eletrocardiograma pode evidenciar a presença de arritmias, prolongamento do intervalo PR e alterações inespecíficas do segmento ST e da onda T2,3.




A fase subaguda é marcada pela descamação periungueal, das extremidades e região perineal. O risco de morte súbita aumenta já que comumente aparece trombocitose e remodelação das camadas médias das artérias coronárias, favorecendo a formação de calcificações, estenoses e trombos. Já a convalescença começa com a melhora dos sinais clínicos, e dura de seis a oito semanas, até a normalização das provas inflamatórias, entretanto, a evolução temporal da doença pode ser abreviada com o tratamento específico10.

A miocardite é encontrada em quase 70% dos pacientes. Sua severidade pode resultar em contratilidade anormal, insuficiência cardíaca e choque, caso o tratamento adequado não seja estabelecido nos primeiros dias da fase aguda. A alteração do nível de consciência, taquicardia, taquipneia e alterações da perfusão periférica podem representar sinais precoces de disfunção miocárdica, evoluindo rapidamente com extremidades frias, pulsos finos, diaforese, cianose, ritmo de galope, estertores crepitantes, hepatomegalia, estase jugular e edema periférico9,10.

O tratamento na fase aguda tem como objetivo reduzir a resposta inflamatória e prevenir a vasculite e suas consequências, enquanto na fase subaguda e de convalescença visa prevenir a isquemia e o infarto. A imunoglobulina na dose de 2g/kg associado ao ácido acetilsalicílico (AAS) 100mg/kg é o tratamento de escolha, devendo ser utilizados preferencialmente nos primeiros dez dias de doença, e o AAS mantido até a convalescença naqueles pacientes sem aneurisma coronariano3,11.

A função cardíaca e a febre melhoram em até 72 horas após a infusão da imunoglobulina. Cerca de 10% dos pacientes não respondem à terapia inicial, e nesses casos está indicada a pulsoterapia com corticoides ou imunossupressores como ciclofosfamida e ciclosporina12. Estudos ainda em andamento mostram resultados promissores com o uso de infliximab e etanercept13,14. A plasmaférese tem se mostrado efetiva na redução da incidência de aneurismas, mas diante dos riscos relacionados ao procedimento não deve ser realizada de rotina15.


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1. Universidade Estadual Paulista - UNESP, Departamento de Pediatria - Botucatu - São Paulo - Brasil
2. Santa Casa de Jaú, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - Jaú - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Haroldo Teófilo de Carvalho
Universidade Estadual Paulista - UNESP
Avenida Professor Mario Rubens Guimarães Montenegro, Distrito de, Av. Rubião Jr, s/n
Botucatu - SP, Brasil. CEP: 18600-400
E-mail: haroldoteofilo@gmail.com

Data de Submissão: 05/08/2020
Data de Aprovação: 19/08/2020