ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Relato de caso: neurossífilis congênita

Case report: congenital neurosyphilis

RESUMO

OBJETIVO: Relatar um caso de neurossífilis congênita, com alteração cutânea, afim de complementar a literatura.
RELATO DE CASO: Gestante, 26 anos, primigesta, dá luz a um recém-nascido apresentando lesões vesicobolhosas em mãos e pés, condizentes com pênfigo palmoplantar. Realizado rastreio para sífilis congênita observou-se VDRL sanguíneo de 1:512 no recém-nascido e de 1:128 na puérpera. No líquor, por sua vez, o exame veio reagente na proporção de 1:2, sendo então diagnosticado como neurossífilis congênita.
CONCLUSÃO: A importância do exame físico na pediatria é de grande valia, uma vez que pode nos alertar para possíveis diagnósticos. Infelizmente, a sífilis voltou a se fazer presente no nosso dia a dia e não podemos deixar de rastrear e tratá-la, já que seu correto tratamento pode melhorar a qualidade de vida ou ainda curar o recém-nascido.

Palavras-chave: Sífilis Congênita, Neurossífilis, Doenças Transmissíveis, Treponema pallidum.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report a case of congenital neurosyphilis with cutaneous alteration in order to complement the literature.
CASE REPORT: A 26-year-old, pregnant woman, gives birth to a newborn with vesicobullous lesions on the hands and feet, consistent with plantar pemphigus. Screening for congenital syphilis showed blood VDRL of 1:512 in the newborn and 1:128 in the postpartum. In the cerebrospinal fluid, on the other hand, the exam was reagent in the ratio of 1:2, being then diagnosed as congenital neurosyphilis.
CONCLUSION: The importance of physical examination in pediatrics is of great value, as it can alert us to possible diagnosis. Unfortunately syphilis is once again present in our daily lives, and we can not but trace and treat it as its correct treatment can improve the quality of life or even cure the newborn.

Keywords: Syphilis, Congenital, Neurosyphilis, Communicable Diseases, Treponema pallidum.


INTRODUÇÃO

A sífilis congênita (SC) é uma doença infectocontagiosa transmitida pelas espiroquetas do Treponema pallidum. Essas, por sua vez, podem atravessar a placenta em qualquer fase da gestação, entretanto, a resposta imune mais potente acontece entre 18ª e 22ª semana de idade gestacional, quando pode-se visualizar as características da sífilis congênita1. O Treponema também pode invadir o sistema nervoso central (SNC), passando a ser chamado de neurossífilis congênita, determinando alterações no líquido cefalorraquidiano (LCR), ou ainda, paralisia geral progressiva2.

O início tardio do acompanhamento pré-natal, o número insuficiente de consultas, os antecedentes obstétricos de risco, além do baixo nível socioeconômico e/ou de escolaridade são fatores de risco e sinais de alarme para possíveis doenças sexualmente transmissíveis, incluindo a sífilis3. Aproximadamente 60 a 90% dos recém-nascidos infectados são assintomáticos, sendo que apenas os casos mais graves evidenciam sintomas. Dentre as manifestações clínicas mais frequentes estão a rinite sifilítica, hepatoesplenomegalia, icterícia e linfadenopatia generalizada. Entretanto, essas manifestações são inespecíficas e merecem diagnóstico diferencial com outras infecções congênitas1,3.

Ao investigar o envolvimento do sistema nervoso central, o diagnóstico de neurossífilis provável dá-se pela presença de pleocitose, ou seja, mais de 25 leucócitos em lactentes menores de 1 mês de idade e/ou proteinorraquia, com proteínas no líquor maior que 150mg/dL4. Contudo, para ser considerado neurossífilis confirmado, é necessário a presença do VDRL reagente no líquido cefalorraquidiano, mesmo que tal exame apresente uma sensibilidade de 54% e especificidade de 90%5.

De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde) a sífilis afeta mais de 1 milhão de gestantes por ano, sendo mais de 300 mil mortes fetais e neonatais, em todo o mundo. O Rio Grande do Sul está entre os estados brasileiros que mais possuem casos notificados de gestantes com sífilis e de recém-nascidos com sífilis congênita, no ano de 20166.

Apesar do aumento da incidência de sífilis congênita e/ou neurossífilis, geralmente os pacientes apresentam-se assintomáticos e ou não apresentam VDRL reagente no líquor, devido à sua baixa sensibilidade. Portanto, objetivamos relatar um caso sintomático e com alteração liquórica, para complementar a literatura.


RELATO DE CASO

Recém-nascido (RN), sexo feminino, nascido de parto vaginal em julho de 2018, devido a trabalho de parto prematuro, recebeu um Apgar de 4 e 9, no primeiro e quinto minuto, respectivamente, sendo necessário ventilação por pressão positiva (VPP) na sala de parto. Idade gestacional (IG) de 35 semanas e 3 dias, por uma ultrassonografia precoce. Pesou 2.140g ao nascimento e mediu 43cm. Logo, em sua inspeção observou-se a presença de lesões vesicobolhosas com conteúdo seroso em região palmoplantar, que se rompiam facilmente liberando esse líquido translúcido e deixando um fundo hiperemiado (Figura 1. e 2.) Essas lesões por sua vez sugeriram o diagnóstico de pênfigo palmoplantar, que associado à hepatoesplenomegalia que o bebê apresentava, nos fez pensar em doenças congênitas.


Figura 1. Descamação em mão, evolução de bolhas com conteúdo seroso.


Figura 2. Descamação em pés, após rompimento de bolhas serosas.



Revisando a história materna descobriu-se que a gestante realizou exame para rastreio de sífilis durante o pré-natal, o VDRL (Venereal Disease Research Laboratory), evidenciando titulação de 1:32, no terceiro trimestre da gestação. Foi prescrito o tratamento com 3 doses de penicilina benzatina, no entanto não houve tempo hábil para o tratamento completo, sendo que realizou apenas a primeira dose, e essa ocorreu 3 dias antes do parto. Outras sorologias para doenças infectocontagiosas estavam negativas e paciente não possuía outras comorbidades. Negava uso de álcool ou drogas durante a gestação.

Na maternidade o VDRL da puérpera veio com um valor de 1:128, enquanto no RN evidenciou VDRL de 1:512. Realizado rastreio completo para sífilis congênita e neurossífilis com hemograma, radiografia de ossos longos e punção lombar. Os resultados evidenciaram: hemograma com Rodwell 2, por neutrofilia e aumento de imaturos, radiografia de ossos longos normal, porém, o líquor mostrou-se alterado. Mesmo uma coleta sem acidente de punção, o VDRL do líquido cefalorraquidiano apresentou-se reagente (1:2), e com 25cél/mm³ de leucócitos e 95mg/dL de proteínas.

Diante do quadro clínico, exames laboratoriais e história materna, fez-se o diagnóstico de neurossífilis congênita, iniciando o tratamento conforme protocolo do Ministério da Saúde (MS)1 com 50.000UI/Kg/dia de penicilina cristalina, endovenosa, durante 10 dias. Recebeu alta hospitalar com a pele íntegra e exame físico neurológico sem alterações. Fez acompanhamento ambulatorial e controle de sorologias, sendo VDRL negativo no 1º e 2º mês subsequente.


DISCUSSÃO

Vários são os estudos epidemiológicos que evidenciam o aumento crescente da sífilis gestacional e congênita em nosso meio. Um deles destacou que Porto Alegre e Recife chegaram a 18 por 1.000 nascidos vivos no ano de 20137. E conseguimos ver esse aumento em nosso dia a dia, como nosso caso relatado.

Um líquor apresentando pleocitose (> 25leucocitos/mL) ou proteinorraquia (> 150mg/dL) alertam para um diagnóstico de neurossífilis provável, contudo, a presença do VDRL reagente no líquido cefalorraquidiano confirma a doença2. Cardoso et al.8 fizeram um estudo transversal analisando 175 casos de sífilis em gestantes e sífilis congênitas correspondentes, entre 2008 e 2010. Esse estudo, por sua vez, obteve um resultado de VDRL no líquor dos RNs reagente em 21% deles e a maioria (77,8%) apresentavam título maior que 1:8 no LCR. Além disso, 36% dos recém-nascidos eram assintomáticos8. Visto isso, apesar de possuir um grande número de RNs assintomáticos, destaca-se a prevalência das alterações liquóricas, indicando neurossífilis congênita.

A penicilina continua a ser a medicação de escolha para a sífilis, existindo poucos estudos a respeito de drogas alternativas que realmente são eficazes contra o Treponema pallidum. Logo, pacientes que realizam o tratamento com medicações de 2ª escolha podem não estar totalmente livres da doença9. A literatura traz referências de que após 12 a 15 meses do tratamento adequado o VDRL já deve estar negativado4 e conseguimos esse resultado já no 2º mês de vida.

As lesões vesicobolhosas presentes em nosso recém-nascido, apresentam algumas diferenças das encontradas na literatura. Comumente apresentam-se como erupção papuloescamosa ou uma dermatite descamativa envolvendo região palmoplantar10; estas por sua vez, no nosso relato, foram a evolução do quadro ao longo do tratamento (descamativa), e não as lesões inicias. O importante, na verdade, é observar as alterações e pensar em diagnósticos diferenciais que possam sugerir doenças congênitas.

A SC é uma doença prevenível, tratável e curável. Diante do exposto, não se pode perder a oportunidade de, nas consultas do pré-natal e/ou do nascimento na maternidade, fazer o diagnóstico e tratar os pacientes portadores da doença, tentando extinguir a sífilis novamente.


CONCLUSÃO

Conclui-se que a sífilis congênita e neurossífilis voltaram a ser uma doença prevalente, e que quando não tratada pode trazer várias complicações. Os estudos e informações à população geral fazem parte da educação em saúde e merecem maior atenção quando relacionada ao pré-natal e a disponibilidade de tratamento.


REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical do HIV, sífilis e hepatites virais. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2018.

2. Menezes MLB, Marques CAS, Leal TMA, Melo MC, Lima PR. Neurossífilis congênita: ainda um grave problema de saúde pública. J Bras Doenças Sex Transm. 2007;19(3-4):134-8.

3. Ministério da Saúde (BR). Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical do HIV, sífilis e hepatites virais. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019.

4. Guinsburg R, Santos AMN. Critérios diagnósticos e tratamento da sífilis congênita. São Paulo (SP): Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP); 2010.

5. Dobson SR. Congenital syphilis: clinical features and diagnosis. UpToDate [Internet]. 2019 Jan; [acesso em 2019 Dez 23]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/congenital-syphilis-clinical-features-and-diagnosis

6. Feitosa JAS, Rocha CHR, Costa FS. Artigo de revisão: sífilis congênita. Rev Med Saúde Brasília. 2016;5(2):286-97.

7. Silveira SLA. Estudo epidemiológico da sífilis congênita: a realidade de um hospital universitário terciário [dissertação]. São Paulo (SP): Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Residência Médica; 2017.

8. Cardoso ARP, Araújo MAL, Cavalcante MS, Frota MA, Melo SP. Análise dos casos de sífilis gestacional e congênita nos anos de 2008 a 2010 em Fortaleza, Ceará, Brasil. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2018 Fev; [citado 2019 Dez 29]; 23(2):563-74. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csc/2018.v23n2/563-574

9. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância da Saúde. Boletim epidemiológico [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2017; [acesso em 2018 Set 20]; 48(36):1-44. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-de-sifilis-2017

10. Mathes E, Howard RM. Vesicular, pustular, and bullos lesions in the newborn and infant. UpToDate [Internet]. 2018 Dez; [citado 2020 Fev 13]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/vesicular-pustular-and-bullous-lesions-in-the-newborn-and-infant










1. Hospital Universitário São Francisco de Paula, Residência Médica em Pediatria - Pelotas - Rio Grande do Sul - Brasil
2. Hospital Nossa Senhora da Conceição, Setor de Pediatria - Tubarão - Santa Catarina - Brasil

Endereço para correspondência:
Tuany Martins Nunes
Hospital Universitário São Francisco de Paula
Rua Mal. Deodoro, 1123 - Centro
Pelotas - RS, Brasil. CEP: 96020-220
E-mail: tuanymn@gmail.com

Data de Submissão: 12/02/2019
Data de Aprovação: 08/04/2020