ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Desafios impostos pelo isolamento social na pandemia de COVID-19 ao acompanhamento de diabéticos e expostos ou infectados por HIV em um hospital universitário pediátrico

Challenges imposed by social isolation in the COVID-19 pandemic on monitoring diabetics and those exposed to or infected with HIV in a pediatric teaching hospital

RESUMO

OBJETIVOS: Identificar fatores que possam ter influenciado no acompanhamento de pacientes com diabetes mellitus tipo 1 e infecção ou exposição ao vírus da imunodeficiência humana em um hospital universitário pediátrico durante a pandemia de COVID-19.
MÉTODOS: Estudo descritivo e transversal; foram entrevistados responsáveis pelos pacientes dos ambulatórios de diabetes e doenças infectoparasitárias-imuno (DPI-imuno) com consultas agendadas durante o período de isolamento social no município do Rio de Janeiro. Questionário com perguntas diretas.
RESULTADOS: Foram entrevistados 88 responsáveis (59 diabetes e 29 DIP-Imuno), na maioria mães (79,7% e 44,8%, respectivamente). Discreta predominância do sexo feminino, maior parte adolescentes. Maioria dos responsáveis compareceu ao agendamento (95% e 72,4%, respectivamente), cerca de metade utilizando dois ou mais transportes públicos. Pacientes compareceram em função de consulta marcada (53,6% e 95,2%, respectivamente). Os motivos para o responsável não ter levado o paciente ao ambulatório de diabetes foram para evitar a exposição à COVID-19 e orientação médica prévia para ir sozinho. No ambulatório de DIP-imuno, o motivo foi por ser somente a verificação de resultado de exame. A pandemia interferiu na doença em 59,3% e 41,4%, respectivamente. Foram apontados: medo de adoecer, da aglomeração, alterações comportamentais nos pacientes, mudanças na rotina da família e problemas financeiros.
CONCLUSÃO: Fatores relacionados à pandemia influenciaram o acompanhamento dos pacientes, com destaque para a insegurança de sua exposição. Apesar das dificuldades, o cuidado foi mantido, pois a maioria dos responsáveis e a equipe de saúde do hospital encontraram uma forma intermediária de atuação sem exposição direta do paciente com doença crônica.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Criança, Adolescente, Doença Crônica, Diabetes Mellitus Tipo 1, HIV.

ABSTRACT

Objectives: To identify factors that may have influenced the follow-up of patients with type 1 diabetes mellitus and infection or exposure to the human immunodeficiency virus in a pediatric academic hospital during the COVID-19 pandemic.
Methods: Descriptive and cross-sectional study; the patients’ responsible for outpatient clinics (diabetes and infectious-parasitic-immune diseases), whose children had an appointment scheduled during the period of social isolation in the city of Rio de Janeiro, were interviewed. A direct questionnaire was applied.
Results: Interview of 88 responsible (59 diabetes and 29 DIP-imuno), mostly mothers (79.7% and 44.8%, respectively). Slight predominance of females; the most frequent age group of adolescents. Most responsible attended the appointment (95% and 72.4%, respectively), about half using two or more public transportation. The patients attended due to a scheduled appointment (53.6% and 95.2%, respectively). Responsible’s reasons for not taking the patient to the diabetes clinic were to avoid exposure to COVID-19 and prior medical advice to go alone. In the DIP-imuno clinic, the reason was to check a test result. The pandemic interfered in the disease in 59,3% and 41,4%, respectively. Fear of falling ill, agglomeration, patients’ behavioral changes and financial problems were pointed out.
Conclusion: Factors related to the pandemic influenced the patients’ follow-up, with emphasis on the insecurity of their exposure. Despite the difficulties, care was maintained as most of the responsible and the hospital’s health team found an intermediate way of acting without direct exposure of the patient with chronic disease.

Keywords: Coronavirus Infection, Child, Adolescent, Chronic Disease, Diabetes Mellitus Type 1, HIV.


INTRODUÇÃO

No Brasil, dados do IBGE mostram que entre 9% e 11% das crianças e adolescentes têm alguma doença crônica1,2. As doenças crônicas demandam tratamento contínuo, de longa duração, exigindo cuidados permanentes como consultas frequentes, realização de exames complementares, necessidades de insumos que visam evitar a descompensação da condição clínica. Atendimentos de emergência e internações hospitalares ocorrem com maior frequência e, por esta complexidade, as famílias precisam de orientações específicas3. Há uma preocupação, expressa amplamente na mídia, com o tratamento de pacientes com doenças crônicas durante o isolamento imposto pela pandemia de COVID-19 (adultos e crianças). O absenteísmo às unidades de saúde é observado e teme-se que esse comportamento possa levar a consequências graves. Por outro lado, há a preocupação com a contaminação desses pacientes, muitos deles grupos de risco para o agravamento da COVID-19.

Embora a maioria dos casos da COVID-19 na infância seja secundário à exposição aos familiares doentes, as crianças são tão suscetíveis à infecção quantos os adultos e desempenham importante papel na disseminação do vírus, por serem geralmente assintomáticas ou apresentarem doença leve, com poucas complicações e necessidade de hospitalização e raríssimos casos com desfechos fatais4,5. Cerca de 94% das crianças cursam com formas assintomáticas, leve ou moderada da doença; 5% com forma grave e menos de 1% com quadro crítico6-10.

Como a transmissão da COVID-19 pode ocorrer no período assintomático, o controle da epidemia apenas com o isolamento dos sintomáticos fica prejudicado. Desta forma, as crianças também devem participar das ações preventivas usuais para contenção e evitar a disseminação do vírus, como o isolamento social. A limitação de acesso aos espaços públicos, o fechamento de escolas, universidades, comércio e outras atividades de prestação de serviços consideradas não essenciais, têm atingido a população de todas as faixas etárias, comprometendo inclusive a assistência à saúde11,12.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) elaborou “Notas de Alerta” que orientam profissionais e familiares de crianças e adolescentes com algumas condições crônicas em relação ao tratamento durante a pandemia da COVID-19, dentre elas o diabetes mellitus. Crianças diabéticas não devem comparecer a consultas eletivas em consultórios ou hospitais, pelo risco de contaminação. A orientação é de que seja feito contato com a equipe médica caso haja qualquer necessidade13. Para outras condições crônicas e imunodeficiências, a recomendação é semelhante14. Entretanto, a SBP não publicou nenhuma nota específica relacionada à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Entrar em contato remoto com profissionais de saúde em hospitais públicos, nem sempre é viável. Além disso, a população de baixa renda muitas vezes depende de ações da equipe de saúde para obtenção de insumos e realização de exames sem custos, tornando necessário o comparecimento à unidade de saúde, sob o risco de não conseguirem manter, por meios próprios, o tratamento adequado. Este estudo teve como objetivo identificar fatores que podem influenciar o acompanhamento de crianças e adolescentes com diabetes mellitus tipo 1 e infecção ou exposição ao HIV durante a pandemia de COVID-19.


MÉTODOS

Estudo descritivo e transversal, realizado em um hospital universitário pediátrico no Rio de Janeiro, no qual grande parte dos atendimentos ambulatoriais é voltado para pacientes com doenças crônicas. Foram incluídos os responsáveis pelos pacientes dos ambulatórios de doenças infectoparasitárias-imuno (DIP-imuno), crianças e adolescentes expostos ou com infecção pelo HIV e diabetes, que habitualmente comparecem às consultas com os pacientes; apenas um de cada família, cujas crianças/adolescentes tinham consultas agendadas em um período de três semanas durante o isolamento social no município do Rio de Janeiro, imposto pela pandemia de COVID-19 (final de abril a início de maio de 2020) e que concordaram em participar do estudo por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Foram excluídos os que tiveram suas consultas desmarcadas pelo próprio serviço.

A seleção desses dois ambulatórios se deu por conveniência, ou seja, melhor operacionalização do estudo. Foi aplicado questionário via telefone, com perguntas diretas para caracterizar o perfil do paciente, as demandas que a doença crônica apresenta rotineiramente e como estava ocorrendo o acompanhamento durante a pandemia. As variáveis estudadas foram: relação do entrevistado com o paciente, idade e sexo do paciente, local de residência, ambulatório de origem, frequência de comparecimento, motivo alegado para ter comparecido ou faltado à consulta durante a pandemia, presença da criança/adolescente na consulta, tipo e quantidade de meios de transporte utilizados para ir à instituição, ocorrência de mudanças no acompanhamento durante a pandemia, alternativa de acompanhamento em outras unidades de saúde e mudanças na vida familiar. Os dados foram analisados por distribuição de frequência simples para as nominais, distribuição por faixas de valores para as numéricas e descrição de respostas obtidas nas perguntas abertas diretas, agrupando-as. Estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital (número do parecer: 4.014.891).


RESULTADOS

No período do estudo estavam agendados 94 pacientes no ambulatório de diabetes e 41 no ambulatório de DIP-imuno. Por impossibilidade de contato telefônico, houve perda de 35 pacientes do ambulatório de diabetes e 12 do ambulatório de DIP-imuno. Nenhum responsável contatado se recusou a responder o questionário da pesquisa. Desta forma, constituíram a amostra do estudo, 88 responsáveis por crianças e adolescentes, sendo 59 do ambulatório de diabetes e 29 do ambulatório de DIP-imuno.

No ambulatório de diabetes, o entrevistado foi a mãe em 79,7%, seguido pelo pai (15,3%), avó/avô (1,7%) e outro tipo de responsável em 3,3%. No ambulatório de DIP-imuno foi a mãe em 44,8% dos casos, seguido por outro familiar (20,7%), pai (13,8%), avó/avô (10,3%) e outro tipo de responsável (madrasta, amiga ou cuidadora) em 10,2%.

Na Tabela 1 pode-se observar a distribuição por frequência, por ambulatório, das características dos pacientes e de dados sobre o acompanhamento feito de rotina, antes do isolamento social.




Na Tabela 2 são apresentados os dados relacionados ao acompanhamento nesses dois ambulatórios durante o isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19.




Em relação à pandemia da COVID-19 ter alterado a vida da família em algum aspecto interferente na doença do paciente, no ambulatório de DIP-imuno 12/29 responderam afirmativamente (Tabela 2). Os motivos relatados foram medo de adoecimento 6/12 (50%), medo de aglomeração em transporte público 4/12 (33,3%) e problemas financeiros (desemprego e falta de dinheiro) em 2/12 (16,7%). No ambulatório de diabetes, no qual houve uma ou mais respostas por entrevistado, 35/59 apontaram distúrbios emocionais nas crianças/adolescentes (angústia, ansiedade, agitação, nervosismo, estresse, medo de adoecer por ser grupo de risco em 14/35 [40%]), diminuição da possibilidade de realizar atividade física/atividades de lazer em 13/35 (37,1%), alteração da rotina diária pela falta da escola em 8/35 (22,8%), dificuldade de controlar a alimentação em 6/35 (17,1%), dentre outros (criança precisou mudar de casa para melhor isolamento, desemprego e diminuição de disponibilidade de transporte público) em 3/35 (8,5%). Apenas uma mãe disse que a criança ficou mais tranquila nesse período, tendo inclusive parado com as transgressões alimentares cometidas anteriormente.


DISCUSSÃO

O presente estudo abordou os fatores que influenciaram no comparecimento ao hospital e no acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, que foram, em sua maioria, relacionados à pandemia, com destaque a insegurança da possibilidade de exposição à COVID-19 de uma criança/adolescente com doença crônica. A presença de doença crônica pré-existente parece ser fator de risco para gravidade da doença, tal como acontece em adultos, embora a maioria das crianças sejam assintomáticas ou apresentem quadros leves4-10. Entretanto, um estudo realizado em 46 unidades de terapia intensiva (UTI) pediátrica dos Estados Unidos e Canadá, mostrou que 83% das crianças internadas por COVID-19 tinham doenças pré-existentes como condições médicas complexas (dependência por longo tempo de tecnologia de suporte à vida, incluindo traqueostomia), malignidade e imunossupressão, obesidade, diabetes, epilepsia, cardiopatia congênita e outras malformações congênitas, anemia falciforme e doença pulmonar crônica, embora tenham sido somente 48 crianças internadas15. Outro estudo realizado em 77 instituições de 21 países europeus com 585 casos de crianças e adolescentes com infecção pela COVID-19 encontrou 25% dos casos em crianças e adolescentes com condições médicas pré-existentes, estatisticamente associadas à necessidade de internação em UTI16.

Tais dados reforçam a importância da manutenção do acompanhamento e tratamento adequados durante o período da pandemia, para evitar a descompensação da condição clínica crônica de base. Crianças e adolescentes com diabetes mellitus geralmente têm que mudar muitas áreas de suas vidas; é necessário bom controle glicêmico, alimentação adequada e atividade física, sob ameaça de descompensação aguda e comprometimento da qualidade de vida1,2. De forma semelhante, crianças e adolescentes com infecção pelo HIV necessitam de profilaxia das infecções oportunistas, além do manejo das intercorrências infecciosas e distúrbios nutricionais para que não sejam comprometidos o crescimento pôndero-estatural e desenvolvimento neuropsicomotor; lactentes expostos ao HIV devem ser encaminhados precocemente aos serviços especializados para iniciar a terapia antirretroviral e evitar a transmissão vertical17.

No entanto, frequentar o hospital para consultas e exames de rotina no momento é uma situação de risco e tem se tornado um desafio. Diversas condições interferem neste momento e a frequência desses pacientes aos hospitais decresceu de forma preocupante desde o início da pandemia no Rio de Janeiro, inclusive no hospital em questão (dados não publicados). A segurança de pacientes e familiares no trajeto até a instituição, assim como a sua permanência no local, é uma preocupação da equipe de saúde e, certamente, também dos familiares.

O responsável por levar o paciente para a consulta aos ambulatórios foi mais frequentemente a mãe, com percentual maior no ambulatório de diabetes do que no de DIP-imuno (79,7% versus 44,8%). Além disso, foi observada uma variedade de responsáveis pelos pacientes no segundo ambulatório, com elevada frequência de outro familiar (20,7%) e outro tipo de responsável (10,2%); talvez pela maior necessidade de rede de apoio na possibilidade dos pais também adoecidos estarem necessitando de cuidados ou já terem falecido por HIV. Apesar de, em ambos os ambulatórios, a grande maioria residir no município do Rio de Janeiro, percebe-se que mais da metade depende de transporte público e cerca de metade utiliza dois ou mais meios de transporte para chegar à instituição, ou seja, pacientes e familiares ficam expostos à contaminação pela COVID-19 em seu deslocamento.

Dentre os pacientes, houve pequeno predomínio do sexo feminino. O maior grupo foi de adolescentes, o que é esperado em doenças crônicas que têm longo tempo de acompanhamento e no caso do ambulatório de diabetes, a frequência de pacientes aumentou de acordo com o aumento da faixa etária, resultado que corrobora dados relatados em serviço especializado de outro hospital universitário brasileiro18, fato diferente do ambulatório de DIP-imuno, onde o segundo grupo mais frequente é o de lactentes.

As crianças geralmente adquirem o HIV de mãe doente por meio da transmissão vertical. Desta forma, logo após o nascimento elas são encaminhadas aos serviços especializados para terapia antirretroviral e profilaxia das infecções oportunistas17, o que justifica a presença de lactentes em percentual elevado no presente estudo (34,5%). Como a passagem transplacentária de anticorpos maternos do tipo IgG anti-HIV podem persistir até os 18 meses de idade, a detecção destes anticorpos não é suficiente para o diagnóstico em lactentes, sendo necessária a quantificação da carga viral. Até que se tenham estes resultados, estes lactentes são categorizados como expostos ao HIV17. Devido às ações de profilaxia para prevenção da transmissão vertical, espera-se maior número de crianças expostas ao HIV do que de crianças infectadas em acompanhamento17. Encontramos somente oito (27,6%) crianças expostas ao HIV e 21 (72,4%) crianças infectadas em acompanhamento no ambulatório de DIP-imuno, visto que as crianças não infectadas pelo HIV não mantêm acompanhamento no serviço, recebendo alta para serem acompanhadas apenas na atenção básica. Somente as crianças e adolescentes que têm diagnóstico confirmado, mantêm acompanhamento com a equipe multiprofissional do ambulatório de DIP-imuno, justificando o maior número encontrado de infectados do que de expostos.

No ambulatório de diabetes, o intervalo rotineiro entre as consultas é de dois ou três meses tal como relatado pelos responsáveis (Tabela 1), embora o fornecimento de alguns insumos seja mensal, diretamente pela farmácia do hospital, sem necessidade de consulta. A criança exposta ao HIV deve ter o acompanhamento mensal nos primeiros seis meses até um ano de idade17, justificando a grande frequência que encontramos de acompanhamento mensal (51,7%) no ambulatório de DIP-imuno antes do isolamento social. Como parte da prevenção combinada ao HIV, além das consultas e exames ambulatoriais, estes pacientes também recebem na própria instituição as drogas antirretrovirais e, nos primeiros meses de vida, fórmulas infantis adequadas à alimentação.

Durante o período de estudo, a maior parte dos responsáveis entrevistados havia comparecido ao hospital, conforme agendamento prévio, em ambos os ambulatórios (56/59; 95% no diabetes e 21/29; 72,4% na DIP-imuno). No caso do diabetes, o maior percentual compareceu durante a pandemia para remarcar a consulta e/ou verificar resultado de exames e/ou buscar insumos, receitas e/ou laudo (33/56; 59%), ao invés de consultas (Tabela 2). Isso pode ser explicado pela não necessidade de o paciente compensado comparecer nessa época de isolamento social, pois parte do tratamento consta da avaliação das anotações de glicemias diárias, liberação de medicação e insumos e revisão da insulinoterapia19, procedimentos que podem ser realizados sem a presença do paciente, sendo possível adiar a consulta da criança ou do adolescente para uma época em que seu deslocamento seja mais seguro. Já o motivo alegado para o comparecimento no ambulatório de DIP-imuno mesmo durante a pandemia foi, principalmente, a necessidade de consulta (14/21; 66,6%). Crianças e adolescentes infectados pelo HIV têm a possibilidade de maior número de intercorrências infecciosas e os lactentes expostos necessitam de consultas mensais, além de receberem mensalmente fórmulas nutricionais adequadas à faixa etária17; acreditamos que essa possa ser uma explicação para comparecimento às consultas em elevado percentual.

A presente pandemia gerou grande incerteza na área da saúde no que tange à prevenção e manutenção de cuidados20. Neste contexto, um dos motivos referidos para as crianças e adolescentes e seus responsáveis não comparecerem ao hospital, apesar de a maioria não ter outra unidade de saúde para recorrer, foi o receio da exposição ao vírus que já ocorre pelo fato de sair de casa e, em seguida, entrar em transporte público, como é o caso da maioria dos frequentadores deste hospital. O receio da exposição habita o imaginário coletivo, mas vai além, em função da realidade, que mostrava aumento do número de casos e de óbitos diariamente no período estudado21. Foi referido também o respeito ao isolamento social e o fato de o responsável estar sintomático no momento do agendamento.

A adesão ao tratamento e a valorização das consultas pelas famílias podem ser observadas pela frequência com que os responsáveis levaram as crianças e adolescentes aos ambulatórios para efetivamente realizar a consulta médica (93,3% dos 30 que compareceram ao ambulatório de diabetes e 90% dos 20 ao ambulatório de DIP-imuno) (Tabela 2), mesmo no período da pandemia. Esta atitude pode refletir confiança e boa interação com a equipe de saúde. Dentre os 26/56 (46,4%) que optaram por comparecer sem levar os pacientes ao ambulatório de diabetes, os motivos alegados foram na grande maioria (84,6%) para não expor o paciente ao risco de contaminação, seja por iniciativa própria, seja por orientação do médico do serviço. Os demais não os levaram por terem ido apenas buscar resultados de exames e/ou insumos e/ou remarcar consulta. No ambulatório de DIP-imuno o único responsável que optou por comparecer sem levar o paciente alegou ter ido somente verificar resultado de exames.

A vida da família foi alterada de forma geral durante a pandemia, afetando os cuidados das crianças e dos adolescentes. Foram constatados insegurança em relação ao adoecimento, mudanças comportamentais nos pacientes como ansiedade, angústia e agitação, além de problemas financeiros familiares. A fragilidade do ser é exposta e advêm sentimentos de desamparo e abandono que muitas vezes causam mais transtornos do que a própria COVID-1920. Recentemente, a Sociedade Brasileira de Diabetes chamou atenção para novos conhecimentos de fatores psicológicos e sociais que precisam ser considerados no tratamento do diabetes mellitus tipo 119. De fato, os responsáveis por diabéticos entrevistados citaram que as alterações no dia a dia tais como a interrupção do exercício físico, o difícil controle dos horários de refeições e a falta da rotina escolar interferiram no controle glicêmico das crianças e dos adolescentes, apesar de estarem sob supervisão mais direta dos familiares devido ao isolamento social.

Como limitações, citamos o curto intervalo de tempo de realização do estudo e a perda de pacientes que não conseguiram ser convidados em função da dificuldade da comunicação telefônica. O presente estudo mostrou que, apesar das dificuldades geradas pela pandemia em diversos contextos nas famílias dos pacientes estudados, o cuidado foi mantido, pois a maioria dos responsáveis, juntamente com a equipe de saúde do hospital encontraram uma forma intermediária de acompanhamento da doença crônica, muitas vezes sem exposição do paciente ao risco de contrair a COVID-19. Acreditamos que no retorno ao acompanhamento regular de pacientes com doença crônica no período pós-pandemia, seja importante que a equipe de saúde esteja atenta às dificuldades vivenciadas e às adaptações que se fizeram necessárias para superá-las, no sentido de retomar o tratamento habitual da melhor forma possível.


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1. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Pediatria - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Curso de Medicina/Faculdade de Medicina - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
3. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Curso de Terapia Ocupacional/Faculdade de Medicina - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:
Ana Lúcia Ferreira
Federal University of Rio de Janeiro
Rua Bruno Lobo, nº 50, 3°Andar, Cidade Universitária
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 21941-902
E-mail: analuferr@gmail.com

Data de Submissão: 04/07/2020
Data de Aprovação: 06/07/2020