ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Doença de Kawasaki atípica associada à síndrome colestática: relato de caso

Atypical Kawasaki disease associated to cholestatic syndrome: case report

RESUMO

OBJETIVOS: Relatar o caso de uma criança com doença de Kawasaki atípica associada à síndrome co-lestática. A doença de Kawasaki é uma síndrome inflamatória que compromete pequenos e médios vasos, de causa desconhecida. O diagnóstico é clinico e baseado em critérios clássicos que são sinto-mas comumente relatados, não incluindo icterícia colestática e hepatomegalia por serem achados incomuns.
RELATO DE CASO: Paciente feminina de 6 anos de idade iniciou quadro de febre alta persis-tente, exantema maculopapular e sintomas gastrointestinais, evoluindo com hiperemia conjuntival, língua em framboesa e fissura labial, sem melhora da febre após o tratamento empírico com antimi-crobiano. No decorrer da doença houve melhora apenas do exantema e surgimento de síndrome colestática e sintomas clássicos da doença de Kawasaki completa (adenomegalia cervical unilateral, hiperemia conjuntival e descamação de mãos), que possibilitou seu diagnóstico e início do tratamen-to, havendo resposta terapêutica e resolução completa da síndrome colestática, sem surgimento de aneurisma.
CONCLUSÕES: Este relato mostra a importância de incluir a doença de Kawasaki co-mo diagnóstico diferencial em casos de síndrome ictérico-febril, permitindo o tratamento em tempo hábil para prevenir complicações.

Palavras-chave: Doença de Kawasaki, Criança, Colestase, Dor Abdominal, Icterícia.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To report the case of a child with atipical Kawasaki disease associated with cholestatic syndrome. Kawasaki disease is an inflammatory syndrome that affects small and medium-sized vases, which cause is unknown. The diagnostic is clinical and based in classic criterions, which are commonly reported symptoms, does not including cholestatic jaundice nor hepatomegaly because they are un-usual findings.
CASE REPORT: 6-year-old female presented persistent high fever, rash and gastrointes-tinal symptoms. She developed with conjunctival injection, strawberry tongue, and cracked lips, with-out improvement of the fever after the empiric antibiotic treatment. In elapsing of the disease, the rash got improvement and appeared cholestatic syndrome and classic symptoms of the disease of complete Kawasaki (unilateral cervical lymphadenopaty, conjunctival injection, and hand desquama-tion), that it made possible her diagnosis and treatment, with improvement of cholestatic syndrome, without aneurysm appearance.
CONCLUSIONS: This paper shows the importance of including Kawasaki disease as differential diagnosis in cases of jaundice feverish syndromes, allowing their treatment in skilled time end prevent complications.

Keywords: Kawasaki Disease, Child, Cholestasis, Abdominal Pain, Jaundice.


INTRODUÇÃO

A doença de Kawasaki (DK) é uma síndrome inflamatória multissistêmica, de etiologia desconhecida e expressão clínica variável1. Caracterizada por vasculite de pequenos e médios vasos, tem como principal complicação o aneurisma de artérias coronárias2. Seu diagnóstico é baseado em critérios clínicos, já que não existem testes ou achados laboratoriais específicos da doença. Alguns pacientes, entretanto, apresentam-se com quadros atípicos, o que frequentemente leva ao atraso do diagnóstico e tratamento2. O acometimento do trato gastrointestinal, com dor abdominal difusa e síndrome colestática tem sido raramente descrito na DK.

O presente estudo relata o caso de uma criança do sexo feminino com apresentação atípica da doença e objetiva reforçar a necessidade do conhecimento sobre manifestações clínicas não contempladas nos critérios clássicos.


RELATO DE CASO

Paciente de 6 anos e 8 meses de idade, do gênero feminino, previamente hígida, procurou serviço de pronto atendimento com queixa de febre persistente (de até 39°C), associada à exantema maculopapular generalizado e pruriginoso, dor abdominal difusa, principalmente pós-prandial, náuseas e vômitos de conteúdo alimentar. Internada em hospital pediátrico, evoluiu no segundo dia de doença com hiperemia conjuntival bilateral, língua em framboesa e fissura labial. Recebeu tratamento empírico com ceftriaxone e sintomáticos, sem melhora do quadro febril.

No 8° dia de doença, a criança apresentou melhora do exantema, porém evoluiu com icterícia, colúria e acolia fecal, sendo solicitada transferência para hospital pediátrico terciário.

No momento da admissão, mantinha febre diária há 11 dias e apresentava descamação furfurácea em face e tronco e lamelar em mãos, sem artrite e orofaringe sem alterações. Notou-se em esclera, além da icterícia (2+/4+), hiperemia leve residual. Apresentava ainda gânglio palpável em cadeia cervical posterior à direita, de aproximadamente 1,5cm de diâmetro, de consistência fibroelástica e indolor. À palpação abdominal, apresentava fígado a 4cm do rebordo costal direito, doloroso e de superfície regular.

Diante da história clínica e exame físico, foi diagnosticado doença de Kawasaki com colestase e imediatamente iniciado tratamento com imunoglobulina humana endovenosa, 2g/kg em dose única, associada ao ácido acetilsalicílico (AAS) na dose de 80mg/kg/dia.

Exames admissionais demonstravam Hb: 10,6mg/dL; Ht: 31,9%; VCM: 78,6fl; HCM 26,1pg; leucócitos: 19.500/mm3 (segmentados 80%, linfócitos 12%, bastões 0,5%, eosinófilos 6,3%); plaquetas 677.000/mm3; PCR 18,1mg/dL (valor de referência <6); VHS 120mm; TGO: 102U/L; TGP: 119U/L; fosfatase alcalina: 1593U/L; gama GT: 576 U/L. Sorologias para citomegalovírus, toxoplasmose, hepatites A, B e C, Epstein-Barr vírus e dengue, reação de Widal e pesquisa de Plasmodium negativos. Anticorpo antinúcleo, antimúsculo liso e antimitocôndria foram negativos, excluindo o diagnóstico de hepatite autoimune. Ultrassonografia de abdome total sem alterações.

A paciente evoluiu com remissão da febre, melhora da dor abdominal e redução gradual dos sinais colestáticos 24 horas após o início do tratamento.

Ecocardiograma realizado no momento do diagnóstico não evidenciou alterações nas coronárias e a paciente recebeu alta hospitalar 72h após o início do tratamento, em uso de AAS na dose de 5mg/kg/dia, para seguimento ambulatorial em unidade de reumatologia pediátrica. Ecocardiogramas subsequentes também não demostraram acometimento de artérias coronárias.


DISCUSSÃO

DK é uma vasculite autolimitada, de origem ainda desconhecida, cujo diagnóstico se baseia em critérios clínicos: febre alta (de 38° a 40°C), por no mínimo cinco dias, associada a pelo menos quatro de cinco dos seguintes sinais: 1. Exantema polimorfo (sem vesículas); 2. Hiperemia conjuntival bilateral sem exsudado; 3. Alterações em lábios e cavidade oral, como enantema, fissuras, língua em framboesa, edema difuso de mucosa oral e da faringe; 4. Linfadenopatia cervical maior que 1,5cm de diâmetro e geralmente unilateral; 5. Alterações nas extremidades: inicialmente eritema de regiões palmar e plantar, seguido de edema de mãos e pés, e em fase subaguda, evidencia-se descamação lamelar periungueal3.

No caso relatado, a paciente apresentava febre acima de 5 dias associada a cinco dos critérios acima (exantema, adenomegalia cervical unilateral, hiperemia conjuntival, lesões características de cavidade oral e alteração de extremidades observada ao exame físico. Destacamos neste caso, entretanto, o desenvolvimento de quadro colestático no curso da doença, com icterícia, o que levou ao atraso do diagnóstico e do tratamento específico no tempo recomendado.

Embora sintomas gastrintestinais como náusea, vômitos, diarreia e dor abdominal sejam frequentemente observados em pacientes com DK4, icterícia colestática e hepatomegalia, por vezes com esplenomegalia associada, são relatados na literatura como achados incomuns. Interessantemente, semelhante ao caso descrito, geralmente ocorrem na ausência de alteração cardíaca1,5.

Poucos estudos têm relatado a icterícia como sinal proeminente no quadro clínico da DK. Na maioria deles, os pacientes apresentaram-se inicialmente com síndrome colestática febril, preenchendo posteriormente os critérios estabelecidos para DK6-9. Taddio et al. (2012)10 também enfatizaram esta apresentação inicial atípica, reportando 5 casos, dos quais apenas dois tinham outras alterações clínicas da doença no momento da admissão hospitalar. Koca et al. (2015)11 relataram caso em que o diagnóstico definitivo se estabeleceu apenas após a evidência de lesão coronária, no décimo quarto dia de doença. Nossa paciente apresentou os sintomas colestáticos no curso da DK e, apesar disso, a colestase foi um fator determinante para o atraso no diagnóstico, provavelmente devido à raridade de tais manifestações e diagnósticos diferenciais frequentes em nossa região, com destaque as doenças infectocontagiosas.

Outros sinais não contemplados nos critérios clássicos, mas que são relativamente comuns, incluem artrite, irritabilidade como resposta a meningite asséptica, pneumonite, gastroenterite, colite, disúria e otite. Além deles, também são raros: paralisia de nervo craniano, envolvimento renal, hidropsia da vesícula biliar, isquemia gastrointestinal, síndrome de ativação macrofágica e síndrome inapropriada do hormônioantidiurético1,5. Tais alterações corroboram no diagnóstico de casos atípicos ou na DK incompleta, onde os pacientes não preenchem todos os critérios propostos.

Em virtude da existência de outras causas mais frequentes para síndrome ictérico-febril em nosso meio, foi realizado investigação para hepatites viral e autoimune, bem como para outros diagnósticos diferenciais, incluindo aqueles peculiares de nossa região de clima tropical, em um país subdesenvolvido. Essas pesquisas foram negativas. Ultrassonografia abdominal, no contexto da investigação de status hepático, também teve resultado compatível com normalidade, sendo importante ressaltar que algumas referências apontam para alterações ocasionalmente encontradas, como hidropsia ou espessamento de parede da vesícula biliar, hepatoesplenomegalia e ectasia de ductos biliares1,10-12.

Apesar de não fazer parte dos critérios diagnósticos, DK é associado à alta incidência de aneurisma de artéria coronária em pacientes não tratados, sendo esta complicação a principal causa de morbimortalidade, reforçando a necessidade de diagnóstico e tratamento até o décimo dia da doença5. A investigação com ecocardiograma em nossa paciente não evidenciou alterações, tanto no momento do diagnóstico, como no seguimento ambulatorial. Sabe-se que o tratamento em tempo oportuno, reduz significativamente o risco dessa grave complicação3.

Portanto, diante de um quadro típico ou de alta suspeição, o tratamento deve ser prontamente iniciado com ácido acetilsalicílico (80-100mg/kg/dia) e imunoglobulina humana endovenosa (na dose de 2g/kg em dose única)3. Recebemos a paciente no décimo primeiro dia de doença, porém o tratamento foi justificado pela presença marcante de sinais inflamatórios, como a persistência da febre, colestase e elevação de provas de fase aguda. De fato, observou-se resposta terapêutica após o início do tratamento, visto que houve resolução do quadro febril e regressão dos sinais de colestase. Além disso, houve evolução favorável, já que a paciente não apresentou aneurismas.

Ressaltamos com esse relato de caso, que mesmo em região de clima tropical, em que as infecções são a principal causa de síndrome ictérico-febril, não podemos deixar de incluir a doença de Kawasaki como diagnóstico diferencial, pois seu tratamento específico em tempo hábil previne graves complicações de instalação precoce.


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Erica Gomes do Nascimento Cavalcante
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Data de Submissão: 23/05/2019
Data de Aprovação: 11/06/2019