ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ponto de Vista - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Contribuição da reumatologia pediátrica no tratamento da COVID-19

Contribution of pediatric rheumatology in the treatment of COVID-19

RESUMO

Nos últimos meses, o avanço no tratamento da COVID-19 teve por base o reconhecimento de manifestações comuns a certas doenças que o reumatologista pediatra está acostumado a tratar. O uso de drogas biológicas que atuam nos mecanismos do estado inflamatório caracterizado pela tempestade de citocinas tem ajudado a salvar vidas.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Tratamento Biológico, Reumatologia, Inflamação.

ABSTRACT

The advance in the treatment of COVID-19 was based on the recognition of manifestations common to certain diseases that the pediatric rheumatologist is used to treating. The use of biological drugs that act on the mechanisms of the inflammatory state characterized by the storm of cytokines has helped to save lives.

Keywords: Coronavirus Infections, Biological Treatment, Rheumatology, Inflammation.


Muito conhecimento tem sido acumulado desde o início da pandemia. Se tivéssemos os conhecimentos atuais e iniciado o tratamento no momento certo, dirigido para as manifestações fisiopatológicas, provavelmente, muitas mortes e sequelas resultantes do acometimento de órgãos teriam sido evitadas. Ao mencionar o tratamento precoce, não me refiro aos tratamentos experimentais da fase inicial da doença onde supostamente exerceriam uma ação direta no vírus, diminuindo a carga viral e/ou a presença do vírus no organismo. Nesta fase, na maioria dos casos (90%), o sistema imune funciona muito bem, neutralizando o vírus. O paciente pode estar assintomático, apresentar sintomas leves ou acentuados durante um determinado período de tempo, sem correr risco de vida. O sistema da imunidade inata sinaliza a presença de perigo e se organiza a fim de reduzir a replicação e a carga viral. Posteriormente, a imunidade adaptativa produz os anticorpos específicos contra o vírus, ativa linfócitos T citotóxicos que matam as células infectadas pelo vírus, diminuindo a propagação para outras células. Para que o sistema imune aja de modo eficiente e seguro, é necessário haver um equilíbrio entre a intensidade de ativação do sistema imunológico durante um período de tempo adequado.

Os casos graves de COVID-19 ocorrem em uma minoria dos pacientes onde a resposta imune é insuficiente (ou tardia) ou excessiva. Na realidade, pouquíssimos casos se devem à dificuldade em eliminar o vírus. Na grande maioria, a gravidade está ligada a uma reação imunológica exagerada ao vírus, onde um “estado hiperinflamatório” cursa com um excesso de macrófagos ativados, intensa liberação de citocinas (tempestade de citocinas), participação de linfócitos T citotóxicos, ativação do complemento e participação da cascata de coagulação. Essas ativações se retroalimentam criando um ciclo vicioso.

A tempestade de citocinas leva a um quadro de inflamação sistêmica com lesões imunomediadas em múltiplos órgãos, a ativação da coagulação resulta em micro e macrotrombos, que podem acometer qualquer tipo de vaso. Se o paciente não for tratado imediatamente e de forma adequada, a fim de controlar este estado hiperinflamatório, poderá evoluir com insuficiência respiratória, insuficiência cardíaca, insuficiência de múltiplos órgãos, derrames e morte. Este tipo reação hiperinflamatória, conhecida como “tempestade de citocinas” não é exclusiva da COVID-19, podendo ocorrer em infecções bacterianas e outras infecções virais, incluindo a infecção por vírus da influenza.

A reumatologia pediátrica contribuiu de modo significativo para o progresso do tratamento da COVID-19 ao perceber as semelhanças entre os fenômenos imunomediados decorrentes da tempestade de citocinas na fase secundária da COVID- 19 e a síndrome de ativação macrofágica (SAM) - uma complicação identificada em várias doenças da reumatologia pediátrica. A causa mais comum de SAM é a artrite idiopática juvenil sistêmica, onde 10% das crianças podem apresentar esta complicação que pode ser letal em 10% dos casos, principalmente quando não é reconhecida e tratada a tempo. Esta síndrome também é observada com menor frequência no lúpus eritematoso sistêmico juvenil e mais raramente na doença de Kawasaki, dermatomiosite e algumas doenças autoinflamatórias.

Nas últimas décadas, a experiência acumulada pelos reumatologistas pediatras motivou estudos multicêntricos internacionais que ajudaram a estabelecer os critérios de classificação de SAM e que permitem o diagnóstico precoce já que não existe um biomarcador específico para esta condição. Os critérios de classificação que foram selecionados para identificar a SAM no paciente febril com AIJ sistêmica são: ferritina >684ng/ml e mais dois dos seguintes critérios: número de plaquetas ≤181.000/mm3, TGO >48U/l, triglicerídios >156mg/dl e fibrinogênio <360mg/dl1. Outros exames relevantes são o aumento da proteína C-reativa, D-dímeros, IL-6, e redução do número de plaquetas, linfócitos e da albumina. Os protocolos de tratamento de SAM utilizam basicamente os glicocorticoides e anticitocinas específicas (anti-IL1 e anti-IL6), e as decisões sobre ajustes de doses e monitoramento devem ser contínuos e baseadas na avaliação clínica e laboratorial2.

Infelizmente, nos primeiros meses de pandemia, apenas uma minoria de pacientes com COVID-19 grave recebeu este tipo de abordagem no momento oportuno, pois pouco se sabia sobre a doença. É importante notar que o tratamento imunomodulatório no caso da COVID-19, por se tratar de uma infecção, deve ser ainda mais cauteloso, a fim de torná-lo mais seguro. A adição de terapias antivirais ainda em estudo pode ser necessária e a imunossupressão, menos agressiva, deve ser ajustada de acordo com a avaliação do paciente.

Um tipo de manifestação clínica que tem sido descrita em crianças é a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) que muitas vezes se apresenta como doença de Kawasaki na forma completa e/ou incompleta, e que costuma apresentar boa resposta com o tratamento similar ao empregado na doença de Kawasaki3.

As recomendações de uso de corticosteroide (dexametasona) no tratamento da COVID-19 já está estabelecido; a pulsoterapia com metilprednisolona, imunoglobulina endovenosa, aspirina e heparina têm como base a doença de Kawasaki e, o tratamento com anticitocinas vem da experiência com a SAM. Assim, dependendo das características específicas de cada paciente, o tratamento deve ser individualizado4.

Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se estes conhecimentos tivessem sido incorporados no tratamento da COVID desde o início da pandemia? Não sabemos.

No entanto, diante da evolução dos conhecimentos devemos empregar esta abordagem dos reumatologistas que é realista, baseada em anos de experiência, apresenta riscos, mas é necessária se desejamos salvar vidas.


REFERÊNCIAS

1. Henderson LA, Cron RQ. Macrophage activation syndrome and secondary hemophagocytic lymphohistiocytosis in childhood inflammatory disorders: diagnosis and management. Paediatr Drugs. 2020 Fev;22(1):29-44.

2. Dulek DE, Fuhlbrigge RC, Tribble AC, Connelly JA, Loi MM, Chebib HE, et al. Multidisciplinary guidance regarding the use of immunomodulatory therapies for acute COVID-19 in pediatric patients. J Pediatric Infect Dis Soc. 2020 Dez;9(6):716-37.

3. Rodríguez Y, Novelli L, Rojas M, De Santis M, Acosta-Ampudia Y, Monsalve DM, Ramírez-Santana C, et al. Autoinflammatory and autoimmune conditions at the crossroad of COVID-19. J Autoimmun. 2020 Nov;114:102506.

4. Henderson LA, Canna SW, Friedman KG, Gorelik M, Lapidus SK, Bassiri H, et al. American College of Rheumatology Clinical Guidance for Pediatric Patients with Multisystem Inflammatory Syndrome in Children (MIS-C) Associated with SARS-CoV-2 and Hyperinflammation in COVID-19: version 1. Arthritis Rheumatol. 2020 Jul;72(11):1791-805.










Universidade federal do Rio de Janeiro, Pediatria - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

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Sheila Knupp Feitosa de Oliveira
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E-mail: sheila_knupp@hotmail.com

Data de Submissão: 14/09/2020
Data de Aprovação: 18/09/2020