ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2014 - Volume 4 - Número 1

Trombose em crianças - quem, quando e como investigar?

Thrombosis investigation in children - who, when and how?
Trombosis en niños - ¿quién, cuándo y cómo investigar?

RESUMO

Os eventos tromboembólicos são incomuns em crianças, mas vêm sendo reconhecidos com maior frequência e possuem alta morbimortalidade, tendo grande importância na prática clínica. Quando nos deparamos com um paciente com trombose, um dos principais questionamentos é se devemos ou não investigar a sua etiologia e quais exames solicitar. A trombose no paciente pediátrico é uma condição clínica multifatorial, envolvendo fatores de risco adquiridos, como a presença de cateteres venosos centrais, e condições relacionadas ao paciente. O tratamento agudo da trombose raramente é modificado pela identificação de uma trombofilia hereditária, à exceção de neonatos e crianças com suspeita de deficiência grave de proteína C, S ou antitrombina III. O objetivo desse artigo é discutir as indicações de investigação de trombofilias no paciente pediátrico.

Palavras-chave: crianças, investigação laboratorial, trombofilias, trombose.

ABSTRACT

Thromboembolic events are uncommon in children, but are being recognized more frequently and have high morbidity and mortality having great importance in clinical practice. When faced with a patient with thrombosis, one of the main questions is whether or not to investigate the etiology and which tests to request. Thrombosis in pediatric patients is a multifactorial clinical condition involving acquired risk factors, such as the presence of central venous catheters, and patient-related conditions. The acute treatment of thrombosis is rarely modified by the identification of an inherited thrombophilia, except for neonates and children with suspected severe deficiency of protein C, S or antithrombin III. The aim of this paper is to discuss the indications for thrombophilia investigation in pediatric patients.

Keywords: children, laboratorial research, thrombophilia, thrombosis.

RESUMEN

Los eventos tromboembólicos son poco comunes en los niños, pero están siendo reconocidos con más frecuencia, tienen alta morbimortalidad y gran importancia en la práctica clínica. Cuando nos enfrentamos a un paciente con trombosis, una de las principales preguntas es si debe investigar su etiología y que exámenes solicitar. La trombosis en pacientes pediátricos es un cuadro clínico multifactorial que implica factores adquiridos de riesgo, como la presencia de cateteres venosos centrales y las condiciones relacionadas con el huésped. El tratamiento agudo de la trombosis rara vez es afectado por la identificación de una trombofilia hereditaria, excepto en los recién nacidos y niños con sospecha de deficiencia severa de las proteínas C, S o antitrombina III. El objetivo de este trabajo es discutir las indicaciones para la investigación de trombofilia en pacientes pediátricos.

Palabras-clave: accidente cerebrovascular, investigación de laboratorio, niños, trombofilia.


INTRODUÇÃO

Os eventos tromboembólicos, a trombose arterial, o acidente vascular encefálico isquêmico e a trombose do seio venoso são eventos incomuns em crianças, mas vêm sendo reconhecidos com maior frequência e determinam elevada morbimortalidade, com grande importância na prática clínica. Quando nos deparamos com um paciente com trombose, um dos principais questionamentos é se se deve ou não investigar a sua etiologia e que exames solicitar. Essa dúvida é bastante frequente e geralmente o assunto não é atrativo para os clínicos e pediatras de modo geral, por parecer complexo e de entendimento distante.


EPIDEMIOLOGIA

Apesar de a incidência de trombose na população pediátrica ser baixa (0,07 casos a cada 100.000 crianças), a frequência de trombose venosa em crianças hospitalizadas é consideravelmente alta (60 a cada 10.000 internações)1. As maiores incidências ocorrem em lactentes menores de um ano de idade e em adolescentes. Apesar de serem descritos diversos mecanismos desencadeadores da trombose, o conceito mais importante para a formação do trombo foi proposta por Virchow, e envolve a tríade: alterações da parede vascular, estase sanguínea e alterações da coagulação (hipercoagulabilidade)1. A maioria das crianças que desenvolve trombose apresenta múltiplos fatores de risco, que podem ser adquiridos, hereditários e/ou anatômicos. A presença de um cateter venoso central é o principal fator de risco para o desenvolvimento de trombose venosa profunda em pacientes pediátricos, podendo corresponder a 90% dos casos no período neonatal e 60% na infância. Os cateteres podem causar lesão endotelial e/ou alteração do fluxo sanguíneo, contribuindo para estase. Múltiplos fatores de risco adquiridos estão associados à trombose, como trauma, infecção, estados inflamatórios (doenças autoimunes, por exemplo) e medicamentos. Das condições clínicas, as neoplasias malignas, doenças cardíacas congênitas e a prematuridade são as principais envolvidas na trombose (Tabela 1).




As alterações hereditárias são as que possuem maior importância no desenvolvimento da trombose, sendo as mais estudadas a mutação do fator V de Leiden, da protrombina (G20210A) e a deficiência das proteínas C e S e da antitrombina III. Também existem deficiências adquiridas de proteína C, proteína S e antitrombina III. Já os níveis elevados de fator VIII, lipoproteína a e homocisteína, apesar de estarem associadas a um maior risco de trombose, não são necessariamente geneticamente determinados. Outras alterações na coagulação que foram associadas a um maior risco trombótico, como elevação dos fatores IX e XI, deficiência do cofator II da heparina e disfibrinogenemia, não foram consideradas importantes na avaliação do paciente com suspeita de trombofilia2.


DISCUSSÃO

Em 2002, a Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH) recomendou que todos pacientes pediátricos com trombose fossem avaliados para trombofilias hereditárias. Essa recomendação foi baseada no fato de que é comum a combinação de fatores de risco hereditários e adquiridos em crianças com trombose. Mas, na prática clínica, a maioria dos pacientes apresenta situação clínica distinta e a maioria dos médicos concorda que não há razão em realizar testes de triagem se a chance de se encontrar um resultado alterado e de desfecho desfavorável é pequena2.

Quem deve ser investigado?3

Paciente com trombose não relacionada a cateter venoso central


Está indicada a pesquisa de trombofilias nos pacientes com episódios de trombose, sem a presença de cateter venoso central, independentemente da presença de outros fatores de risco, como: uso de estrogênio, câncer, trauma ou cirurgia de grande porte, já que existe alta prevalência nesse grupo de pacientes, tendo impacto em uma futura indicação de profilaxia trombótica e na avaliação familiar. Também estão incluídos os recém-nascidos, com episódios de trombose venosa ou arterial.

Pacientes com trombose recorrente

A alta prevalência de trombofilia hereditária nesse grupo também justifica a pesquisa, independentemente de estar relacionada a cateter venoso central.

Quando não investigar?

Os estudos realizados em adultos não recomendam a pesquisa de trombofilia nos casos de doenças mieloproliferativas, trombocitopenia induzida por heparina, doença inflamatória intestinal, imobilização prolongada, cirurgia recente de grande porte, trauma, doença maligna, pré-eclâmpsia, trombose de veia da retina, de membros superiores e lúpus eritematoso sistêmico4. A justificativa é que a incidência de alterações pró-trombóticas hereditárias nesses pacientes é baixa, mas não há consenso em pediatria. As situações bem definidas que contraindicam a pesquisa de trombofilia hereditária nos pacientes pediátricos são: anemia falciforme e trombose relacionada a cateter venoso central (primeiro episódio).

De forma geral, o manejo dos pacientes com trombose não difere, exceto naqueles com múltiplas alterações hereditárias pró-trombóticas e aqueles com anticorpos antifosfolipídeos. Pacientes com lúpus eritematoso sistêmico que apresentam trombose devem ser investigados para anticorpos antifosfolipídeos5.

Investigação em crianças assintomáticas com história familiar de trombose

A realização de testes em crianças assintomáticas com história familiar de trombose deve ser evitada. O membro da família é quem deve ser investigado inicialmente. Se alguma trombofilia for identificada, os pais da criança devem ser testados antes da decisão de submeter a criança à realização de exames. É importante lembrar que cada situação clínica deve ser individualizada e que o médico que acompanha o paciente deve ter experiência no manejo da criança com trombose.

Os potenciais benefícios na identificação de trombofilia em pacientes assintomáticos com história familiar estão relacionados à decisão na realização da profilaxia trombótica em situações de alto risco (após fratura de fêmur em um adolescente obeso, por exemplo) e na avaliação do risco de uso de anticoncepcionais à base de estrogênio (principalmente em mulheres com mutação no fator V de Leiden). A pesquisa é justificada, já que o risco relativo para o desenvolvimento de trombose aumenta 35 vezes (1 a cada 350 mulheres) e que há necessidade de modificação dos hábitos que favoreçam o desenvolvimento da trombose, como desidratação, obesidade e tabagismo2.

Investigação em crianças assintomáticas sem história familiar de trombose em situações de alto risco

Até o momento, não há evidências para a recomendação do rastreio de trombofilia em crianças assintomáticas sem história familiar, mesmo em situações de alto risco, como leucemia linfocítica aguda antes da quimioterapia, inserção de cateter permanente, assim como o rastreio em adolescentes antes do início da contracepção oral com pílulas a base de estrogênio. A justificativa é que o custo é maior que o benefício e que a maioria dos pacientes testados não apresentará trombose6,7.

Em resumo, não há indicação absoluta na pesquisa de trombofilias em crianças assintomáticas com história familiar isolada (sem outros fatores de risco) e em crianças assintomáticas e sem história familiar, mas que serão submetidas a situações de alto risco. Nas outras situações, a decisão deve ser individualizada.

Quais testes laboratoriais devem ser realizados na pesquisa de trombofilias?

Na suspeita de trombofilia, há uma abordagem racional baseada na frequência das desordens pró-trombóticas e na complexidade dos testes (Tabela 2). Como passo inicial, os testes a serem solicitados fazem parte do Nível 1. A realização de testes adicionais de desordens mais raras (Nível 2) só está indicado na forte suspeita clínica e nas situações em que os testes de Nível 1 foram normais.




Qual é o melhor momento para investigar?

Durante um episódio agudo de trombose, os níveis de proteína C e S, antitrombina III e antifosfolipídeos podem estar transitoriamente diminuídos e ainda podem sofrer interferência dos anticoagulantes (Tabela 3). Níveis de fator VIII e lipoproteína a podem estar elevados em condições inflamatórias. Logo, esses testes devem ser repetidos após a resolução da trombose e quando o paciente estiver sem medicação anticoagulante. Em crianças com baixos níveis de proteína C, S e antitrombina, os pais devem ser testados antes de se afirmar o diagnóstico hereditário da deficiência (Tabela 4). Testes que envolvem análise molecular como PCR ou mutações genéticas podem ser realizados durante o episódio agudo, já que o resultado é confiável, sem necessidade de repeti-los6.






CONCLUSÃO

A trombose no paciente pediátrico é uma condição clínica multifatorial, envolvendo fatores de risco adquiridos, como a presença de cateteres venosos centrais, e condições relacionadas ao paciente. O tratamento agudo da trombose raramente é modificado pela identificação de uma trombofilia hereditária, à exceção de neonatos e crianças com suspeita de deficiência grave (homozigótica isolada ou duas alterações heterozigóticas) de proteína C, S ou antitrombina III, em que a reposição de plasma fresco é crucial para a resolução do quadro10. É importante saber quais pacientes se beneficiarão da pesquisa de trombofilia e quais testes e qual o momento de se realizar tal investigação, desmistificando o tema e tornando-o prático para o pediatra clínico. Assim, os pacientes que se enquadram nas indicações absolutas de investigação de trombofilia são aqueles com trombose não relacionada a cateter venoso central e pacientes com trombose recorrente.


REFERÊNCIAS

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3. UpToDate. Screening for inherited thrombophilia in children [Acesso 2014 fev 20]. Disponível em: http://www.uptodate.com/contents/screening-for-inherited-thrombophilia-in-children?source=search_result&search=Screening+for+inherited+thrombophilia+in+children&selectedTitle=1~150

4. Kearon C, Julian JA, Kovacs MJ, Anderson DR, Wells P, Mackinnon B, et al. Influence of thrombophilia on risk of recurrent venous thromboembolism while on warfarin: results from a randomized trial. Blood. 2008;112(12):4432-6. DOI: http://dx.doi.org/10.1182/blood-2008-06-163279

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9. UpToDate. Evaluation of the patient with established venous thrombosis [Acesso 2014 fev 20]. Disponível em: http://www.uptodate.com/contents/evaluation-of-the-patient-with-established-venous-thrombosis?topicKey=PULM%2F1363&elapsedTimeMs=8&imageId=76966&source=graphics_search&searchTerm=thrombophilia&view=print&displayedView=full

10. Yang JY, Chan AK. Pediatric thrombophilia. Pediatr Clin North Am. 2013;60(6):1443-62. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.pcl.2013.09.004










1. Médico Residente de Reumatologia Pediátrica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pediatra pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Médico do Hematologistas Associados - Serviço de Hemoterapia, Rio de Janeiro
2. Professor Assistente de Pediatria da UFRJ. Responsável pelo serviço de Reumatologia Pediátrica do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NESA/UERJ)

Endereço para correspondência:
Leonardo Rodrigues Campos
Hematologistas Associados
Rua Conde de Irajá, nº 183. Botafogo
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Telefone: (21) 2537-7440
E-mail: camposlr@gmail.com

¥ Na fase aguda da trombose, os anticorpos antifosfolipídeos podem estar falsamente negativos por consumo, em paciente com síndrome do anticorpo antifosfolipídeo.