ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ética Médica - Ano 2021 - Volume 11 - Número 2

Aspectos bioéticos na prevenção da transmissão vertical e manejo do tratamento com antirretrovirais em gestantes portadoras de HIV/AIDS no Brasil

Bioethics aspects in the prevention of vertical transmission and management of treatment with antiretrovirals in pennants infected with HIV/AIDS in Brazil

RESUMO

Em 2012, a Organização das Nações Unidas juntamente com a Organização Mundial de Saúde relataram que, até o término de 2011, existiriam cerca de 34 milhões de portadores do vírus da imunodeficiência humana no mundo. Entre outras formas, a transmissão vertical tem sido foco de atenção na medida em que se constatou aumento de casos de infecção em mulheres. Neste contexto, este trabalho objetiva presentar o tratamento com antirretrovirais em gestantes portadoras de HIV/AIDS, bem como discutir os aspectos bioéticos relacionados à prevenção da transmissão vertical. Em 1994, o Protocolo 076 comprovou que o uso de zidovudina em mulheres grávidas portadoras do vírus, durante o pré-natal e no momento do parto e, no bebê, durante as seis primeiras semanas de vida, reduziu em 2/3 a transmissão do vírus para as crianças. Posteriormente, o Ministério da Saúde adotou medidas para diminuir a incidência de transmissão vertical. Na atualidade o médico pode fazer uso de diretrizes e deve utilizar os tratamentos disponíveis para o bem dos enfermos, segundo sua capacidade e juízo, de acordo com a tradição hipocrática, desde que sejam adequadamente mensurados os riscos que tais medicamentos podem promover a gestante e ao bebê.

Palavras-chave: Sorodiagnóstico da AIDS, Transmissão Vertical de Doença Infecciosa, Bioética.

ABSTRACT

In 2012, the United Nations Organization together with the World Health Organization reported that by the end of 2011 there would be about 34 million infected with the human immunodeficiency virus worldwide. Among other forms, the vertical transmission has been a focus of attention in the sense that there has been an increase in cases of infection in women. In this context, this study aims to present antiretroviral treatment in pregnant women with HIV/AIDS, as well as to discuss the bioethical aspects related to the prevention of vertical transmission. In 1994, protocol 076 showed that the use of zidovudine in pregnant women who had the virus during prenatal and childbirth and in the baby during the first six weeks of life, reduced the transmission of the virus by 2/3 for children. Subsequently, the Ministry of Health adopted measures to reduce the incidence of vertical transmission. Nowadays the doctor can make use of guidelines and must use the treatments available for the good of the patients, according to their capacity and judgment, according to the hippocratic tradition, provided that are adequately measured the risks that such medicines can promote to the pregnant woman and to the baby.

Keywords: AIDS Serodiagnosis, Infectious Disease Transmission, Vertical, Bioethics.


INTRODUÇÃO

As doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) têm preocupado gestores da saúde desde os tempos mais remotos. Apesar de diversos esforços e avanços já terem sido feitos rumo à erradicação dessas enfermidades, elas ainda permanecem como um dos problemas de saúde que mais afligem a população mundial1,2. As DSTs são provenientes de infecções geralmente transmitidas pelo contato íntimo ou pelo intercurso sexual, embora também possam ser transmitidas de outras formas, como de mãe para filho ou pelo contato com sangue ou seus derivados2.

Uma das DSTs presentes na atualidade é a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV)2. Relatos iniciais contam que a síndrome surgiu na África Central, provavelmente, pela mutação do vírus do macaco. Um grande estudioso na área em seu artigo sobre a AIDS e sua origem, propôs como correta a hipótese de que o vírus precursor tenha passado de primatas para o homem, entretanto, não está totalmente elucidado o mecanismo pelo qual isso teria ocorrido3.

O HIV é um retrovírus, classificado na subfamília dos Lentiviridae. Esses vírus compartilham algumas propriedades comuns: período de incubação prolongado antes do surgimento dos sintomas da doença, infecção das células sanguíneas, do sistema nervoso central e supressão do sistema imune4.

O vírus tem como principal alvo os linfócitos TCD4+. São esses leucócitos que organizam e comandam a resposta diante dos agressores. Produzidos na glândula timo, aprendem a memorizar, reconhecer e destruir microrganismos reconhecidos como “estranhos” pelo organismo. O HIV liga-se a um componente da membrana dessa célula, o CD4, penetrando no seu interior para se multiplicar. Com isso, o sistema de defesa vai gradualmente perdendo a capacidade de responder adequadamente, tornando o organismo mais vulnerável a patologias. Quando o organismo torna-se enfraquecido para combater esses agentes externos, o infectado começa a apresentar os sintomas da síndrome, que é denominada AIDS4.

A infecção pelo vírus HIV representa um fenômeno global, dinâmico e instável, cuja forma de ocorrência nas diferentes regiões do mundo depende, entre outros determinantes, do comportamento humano individual e coletivo. Destaca-se entre as enfermidades infecciosas emergentes pela grande magnitude e extensão dos danos causados5.

A AIDS, assim que foi descoberta, foi fortemente associada a grupos de risco, como homossexuais masculinos, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo. Nas últimas décadas, alterou significativamente seu perfil epidemiológico, uma vez que tem acometido, cada vez mais a população feminina, em idade reprodutiva, com baixa renda e escolaridade, e em cidades do interior do país e, consequentemente, atingindo seus filhos6.

A transmissão vertical (materno-infantil) do HIV ocorre pela exposição ao vírus durante a gestação, trabalho de parto, parto ou aleitamento, e tem sido foco de atenção na medida em que se constatou aumento de casos de HIV em mulheres. Essa via de transmissão é responsável por 90% dos casos de infecção pediátrica no Brasil7.

A taxa de transmissão vertical do HIV durante a gravidez, sem qualquer tratamento, pode ser de até 30%. Entretanto, em situações em que a gestante ou nutriz seguem todas as recomendações das diretrizes, a possibilidade de infecção do bebê reduz para níveis menores que 1%8.

No Brasil, o Ministério da Saúde (MS) adotou medidas profiláticas para a prevenção da transmissão vertical a partir de 1996. Tais medidas incluem: terapia antirretroviral, aconselhamento universal e recomendação do teste anti-HIV para todas as gestantes, indicação da via de parto - cesárea eletiva - em situações específicas e a suspensão do aleitamento materno. Nos últimos anos a ocorrência da transmissão vertical vem diminuindo significativamente devido às medidas preventivas adotadas no país7,9.

Anteriormente às medidas profiláticas adotadas pelo MS e da publicação de diretrizes que auxiliam prescritores, havia um grande dilema bioético relacionado à escolha de tratamento capaz de prevenir a transmissão vertical para os fetos, sem prejuízo para a gestante.


OBJETIVO

Neste contexto, este trabalho tem como objetivo apresentar o tratamento com antirretrovirais em gestantes portadoras de HIV/AIDS, bem como discutir os aspectos bioéticos relacionados à prevenção da transmissão vertical.

Aspectos bioéticos do desenvolvimento da prevenção de transmissão vertical

O termo bioética foi criado no começo do século XX, por Fritz Jahr (1895-1953), no artigo “Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos seres humanos com os animais e as plantas” (1927)10, este artigo resumia a bioética considerando a vida em primeiro lugar. Na década de 1970, o termo foi aplicado pela primeira vez, nos Estados Unidos, por Van Rensselaer Potter (1911-2001), que primeiro publicou o artigo “Bioethics: the science of survival” (1970)11; depois o livro “A bridge to the Future” (1971)12 e criou um “credo bioético”. O termo bioética trata-se de um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethiké (ética). Na Europa começou a ser empregado na década de 1980 e nos países em desenvolvimento a partir da década de 199013-15.

O surgimento da bioética foi uma exigência de situações decorrentes, sobretudo, da revolução científica e tecnológica. A bioética trata-se da ética aplicada ao campo das ciências da vida (filosofia, sociologia, biologia e medicina). Na área da saúde, representa o estudo da conduta humana na pesquisa, atenção e tratamento à luz dos valores e princípios morais. Abrange dilemas relacionados à ética dos profissionais de saúde, incluindo assistência à saúde, as investigações biomédicas em seres humanos e as questões humanísticas e sociais, dentre elas o direito à saúde. A bioética se fundamenta em princípios, valores e virtudes tais como a justiça, a beneficência, a não maleficência, a equidade, a autonomia, o que pressupõe nas relações humanas a responsabilidade, o livre-arbítrio, a consciência, a decisão moral e o respeito à dignidade do ser humano na assistência, pesquisa e convívio social14,16.

De acordo com Clotet (2003)17, o princípio da beneficência requer, de modo geral, que sejam atendidos os interesses importantes e legítimos dos indivíduos e que, na medida do possível, sejam evitados danos. Logo, este princípio se ocupa da procura do bem-estar e interesses do paciente por intermédio da ciência médica e de seus representantes ou agentes. Neste contexto, o prescritor deve utilizar os tratamentos disponíveis para o bem dos enfermos, segundo sua capacidade e juízo.

Com relação ao princípio da não-maleficência, este se propõe a não acarretar dano intencional e está em concordância com o consagrado aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não prejudicar), cuja finalidade é restringir os efeitos adversos ou indesejáveis das ações diagnósticas e terapêuticas18.

Com base nas informações supracitadas e considerando aspectos bioéticos relacionados à prevenção da transmissão vertical de HIV, a beneficência é um dos princípios da bioética principialista que facilmente pode ser relacionado com a prevenção vertical do vírus HIV ao bebê. A fim de promover o princípio da não-maleficência, serão apresentadas opções terapêuticas capazes de promover poucos eventos adversos, proporcionando segurança tanto para a gestante quanto para o bebê.

Tratamentos disponíveis no Brasil

Existem diversos medicamentos, com diferentes mecanismos de ação, aprovados no Brasil para o tratamento do HIV. Em 1987, foi aprovado o primeiro fármaco denominado zidovudina (AZT), inicialmente utilizado em monoterapia até a liberação da didanosina. Em seguida, novos medicamentos antirretrovirais (ARV) surgiram, não só inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (ITRN), como inibidores da transcriptase reversa não-análogos de nucleosídeos (ITRNN), inibidores de protease (IP), inibidores de fusão (IF) e, mais recentemente, inibidores de integrase (II) e de receptores de CCR519.

Desde 1996, com o decreto da Lei nº 9.313, no Brasil há distribuição gratuita de medicamentos que compõem a terapêutica antirretroviral (TARV) de alta potência20, segundo dados de 2015, 455 mil pessoas estavam em uso destes medicamentos. Atualmente, existem 22 medicamentos divididos em cinco tipos: os ITRN que atuam na enzima transcriptase reversa, incorporando-se à cadeia de DNA que o vírus cria. Tornam essa cadeia deficiente, impedindo que o vírus se reproduza. Fazem parte desta classe o abacavir, didanosina, estavudina, lamivudina, tenofovir, zidovudina e a combinação lamivudina/zidovudina; os ITRNNs que bloqueiam diretamente a ação da enzima e a multiplicação do vírus. Sendo eles o efavirenz, nevirapina e etravirina; os IPs que atuam na enzima protease, bloqueando sua ação e impedindo a produção de novas replicações de células infectadas com HIV. Fazem parte desta classe o atazanavir, darunavir, fosamprenavir, lopinavir, ritonavir, saquinavir e tipranavir; o IF enfuvirtida que impede a entrada do vírus na célula e, por isso, ele não consegue se reproduzir; por último, o II raltegravir que atua bloqueando a atividade da enzima integrase, responsável pela inserção do DNA do HIV ao DNA humano. Assim, inibe a replicação do vírus e sua capacidade de infectar novas células4.

Protocolos e guias de tratamento para gestantes

O MS reuniu o Comitê Assessor para Recomendações de Profilaxia da Transmissão Vertical do HIV e Terapia Antirretroviral em Gestantes, que revisou as recomendações de terapia antirretroviral e as demais condutas relacionadas à profilaxia da transmissão vertical do HIV e publicou o guia de tratamento de recomendações para profilaxia da transmissão vertical do HIV e terapia antirretroviral em gestantes em 201021.

O guia aponta que têm indicação de tratamento as mulheres que apresentam repercussão clínica e/ou imunológica grave da infecção do HIV, independe da gravidez e em qualquer idade gestacional. Portanto, gestantes sintomáticas ou assintomáticas com contagem de LT-CD4+ ≤350céls./mm3 apresentam critérios de início de tratamento, conforme recomendado para adultos que vivem com HIV, devendo iniciá-lo com o objetivo de tratar a doença ou reduzir o risco de progressão21.

De acordo com o guia, a incidência de reações adversas em gestantes e crianças expostas a ARV para profilaxia da transmissão vertical do HIV é baixa. Além de pouco frequentes, os efeitos adversos geralmente são transitórios e de intensidade leve a moderada, tanto nas gestantes quanto nas crianças. Tais efeitos raramente determinam a suspensão da utilização dos ARV, já que a eficácia desses medicamentos na prevenção da transmissão vertical do HIV, claramente sobrepõe-se aos riscos das reações adversas aos mesmos21.

O guia cita que entre os antirretrovirais disponíveis, a AZT é a que mais apresenta dados relativos à segurança durante a gestação, sendo que, informações sobre outros antirretrovirais são limitadas. A terapia com AZT provocou anemia em 2 a 40% em gestantes em uso do medicamento para profilaxia da transmissão vertical do HIV, incluindo esquemas profiláticos usados por períodos muito variáveis21.

Com relação a outros tratamentos, foram descritas ocorrência de pancreatite, esteatose hepática e acidose láctica, com ocorrência de óbito materno em mulheres que estavam em uso da combinação de didanosina com estavudina como parte do seu esquema ARV. Tais alterações podem estar associadas ao uso prolongado de ITRN (acima de seis meses de uso), que possivelmente relacionam-se à toxicidade mitocondrial21.

Em 2015, foi publicado o protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de HIV, sífilis e hepatites virais, tal documento foi publicado pelo MS e foi elaborado pela Secretaria de Vigilância em Saúde - Departamento de DST22. De acordo com o protocolo, a ARV está indicada para toda gestante infectada pelo HIV, independente de critérios clínicos e imunológicos, e não deverá ser suspensa após o parto, independentemente do nível de LT-CD4+ no momento do início do tratamento. Esta indicação possui nível de evidência 1A e grau de recomendação A22.

Ainda de acordo com o protocolo supracitado, tal diretriz, conhecida internacionalmente como opção B+, visa suprimir a replicação viral de forma sustentada, prevenindo a transmissão vertical e sexual do HIV; reduzir o risco de progressão da doença, diminuindo a morbidade e a mortalidade associadas ao HIV; melhorar a qualidade de vida; preservar e, quando possível, restaurar o sistema imunológico; evitar uso intermitente de terapia antirretroviral em diferentes gestações; promover proteção precoce, em relação à transmissão vertical, em futuras gestações22.

Este protocolo publicado pelo MS aponta que, o tratamento para gestantes deve ser composto por - esquema ARV com ITRNN. A terapia inicial deve sempre incluir combinações de três antirretrovirais, sendo dois inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos e nucleotídeos associados a um ITRNN. O esquema preferencial de primeira linha deve ser: tenofovir + lamivudina + efavirenz na apresentação de dose fixa combinada, sempre que disponível22.


DISCUSSÃO

A infecção por HIV é um grave problema de saúde pública. Em 2012, a Organização das Nações Unidas juntamente com a Organização Mundial de Saúde relataram que, até o término de 2011, existiriam cerca de 34 milhões de portadores do HIV no mundo, sendo considerada, portanto, uma pandemia23.

Desde a década de 80, a transmissão vertical por via transplacentária, no trabalho de parto, parto ou amamentação, tem predominado de forma marcante, sendo o primeiro caso notificado e confirmado de soropositividade por este tipo de exposição em 198524.

A preocupação mais recente com questões relacionadas ao HIV/AIDS é a mudança do perfil epidemiológico dos portadores da síndrome, o aumento no número de mulheres infectadas trouxe como consequência o crescimento nas taxas de transmissão vertical do HIV. Essa situação provocou a infecção de percentual considerável de crianças em todo o mundo com o vírus HIV, uma vez que muitas das mulheres infectadas encontram-se em idade reprodutiva25,26.

Um fato que gera dúvidas quanto à condução de estudos clínicos com pacientes portadores de HIV é a lembrança de estudos conduzidos sem ética, como o histórico estudo da sífilis não-tratada de Tuskegee, este que foi um experimento médico realizado em Alabama, entre 1932 e 1972, e que é até hoje referido como exemplo de má conduta científica27.

Assim, estudos com portadores de HIV geram muitos questionamentos, alguns deles até mesmo na década de 1990, nos Estados Unidos. Esses estudos foram muitas vezes realizados em indivíduos considerados pobres ou vulneráveis, e alguns com grupo controle em uso de placebo. Até recentemente, muitos destes estudos foram conduzidos em países subdesenvolvidos, e grande parcela destes pacientes encontram-se nestas situações por estarem infectados pelo HIV28.

Em 1994, o Protocolo 076 comprovou que o uso do AZT em mulheres grávidas HIV positivas durante o pré-natal e no momento do parto e, no bebê, durante as seis primeiras semanas de vida, reduziu em 2/3 a transmissão do vírus para as crianças. Este estudo foi considerado um dos mais importantes (e polêmicos) na área de prevenção da transmissão vertical e mostrou a possibilidade de prevenção da infecção no bebê, quando as gestantes são identificadas e tratadas adequadamente29.

A polêmica veio do uso de grupo controlado por uso de placebo. O estudo foi interrompido quando a primeira análise preliminar foi feita e constatou-se a eficácia e segurança do uso do AZT. A todas as participantes do grupo placebo foi oferecida a possibilidade de se tratarem igualmente com AZT29.

Embora a implementação de protocolos de pesquisa como o Protocolo 076 tenham enfrentado dilemas e debates, os resultados destes estudos promoveram benefícios inenarráveis na escolha de terapia adequada para gestantes portadoras de HIV.

Na pesquisa clínica realizada no país, há diversas publicações de estudos, em concordância com os comitês de ética em pesquisa nacionais, realizados com gestantes portadoras da síndrome, que continuaram tratamento com ARV ao longo de toda a gestação. Embora a maior parte destes estudos seja observacional retrospectivo, comprovam a segurança de ARV para os bebês. Tais informações podem ser evidenciadas nos estudos de Cartaxo et al. (2013)23 e Araújo et al. (2008)25.

Posteriormente ao estudo do protocolo 076 realizado por Connor et al. (1994)29, o MS propôs a inserção do aconselhamento e diagnóstico do HIV na rotina do atendimento pré-natal. Também adotou outras medidas como a administração da zidovudina combinada a outros antirretrovirais para as gestantes infectadas, administração da zidovudina durante o trabalho de parto e no pós-parto para os recém-nascidos e a substituição do aleitamento materno30.

Anteriormente ao MS adotar medidas profiláticas para a transmissão vertical, havia um grande dilema bioético relacionado ao tratamento de gestantes portadoras do vírus da AIDS. A escassez de publicações dificultava a escolha de tratamento capaz de prevenir a transmissão vertical para os fetos, sem prejuízo para a mãe.

Em decorrência do crescente número de crianças infectadas através da transmissão vertical, houve a publicação de recomendações do MS na assistência a gestantes. Como exemplos recentes destes documentos há o guia de tratamento de recomendações para profilaxia da transmissão vertical do HIV e terapia antirretroviral em gestantes, publicado em 201021, o protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de HIV, sífilis e hepatites virais de 201519 e o protocolo clínico e diretrizes terapêuticas - prevenção da transmissão vertical de HIV, sífilis e hepatites virais publicado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (CONITEC)31.

Tais diretrizes recomendam que todo o tratamento da gestante seja realizado de forma a preservar a confidencialidade, voluntariedade e o consentimento para os diferentes tratamentos e abordagens ao longo do período de risco - da gestação ao aleitamento21,22,31.

Recomendações

Na atualidade existem medicamentos adequados para o manejo da gestante com HIV capazes de prevenir a transmissão vertical sem prejuízo à mãe. Cada caso deve ser avaliado isoladamente e o médico pode fazer uso de diretrizes elaborados pelo MS tratando sobre a utilização de ARV em gestantes portadoras de HIV/AIDS. O prescritor deve utilizar os tratamentos disponíveis para o bem dos enfermos, segundo sua capacidade e juízo, de acordo com a tradição hipocrática, seguindo o princípio bioético da beneficência, desde que sejam adequadamente mensurados os riscos que tais medicamentos podem promover à gestante e ao bebê. Já que durante o tratamento com ARV podem ocorrer alterações fisiológicas durante a gestação e que podem afetar a cinética da absorção, distribuição, biotransformação e eliminação dos medicamentos, alterando potencialmente a susceptibilidade da gestante à toxicidade aos diferentes fármacos.


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Data de Submissão: 01/07/2019
Data de Aprovação: 27/09/2019