Relato de Caso
-
Ano 2021 -
Volume 11 -
Número
2
Deficiência intelectual e dismorfias em criança com deleção 14q32.31-q32.33: relato de caso
Intellectual disability and dysmorphisms in a child with 14q32.31-q32.33 deletion: a case report
Simone de Menezes Karam1,2; Roberto Giugliani3,4; Sharbel W. Maluf5; Kevin Francisco Durigon Meneghini2; Mariluce Riegel3,4
RESUMO
Deficiência intelectual e atraso global no desenvolvimento são causas frequentes de consultorias genéticas requeridas pelos pediatras. Cerca de 30% dos casos de deficiência intelectual grave e 70% casos de deficiência intelectual leve não recebem um diagnóstico etiológico.
OBJETIVO: O teste para micro-arranjos cromossômicos é considerado o teste diagnóstico padrão para pacientes que apresentem deficiência intelectual ou atraso global no desenvolvimento inexplicados, desordens do espectro autista e anomalias congênitas múltiplas sem diagnóstico clínico, pois o referido teste é bastante sensível, aumentando a chance de diagnóstico e mostrando a região envolvida e seu tamanho.
DESCRIÇÃO DO CASO: Este é o relato sobre uma menina com deficiência intelectual, hipotonia, retardo de crescimento pós-natal e dismorfias com uma deleção terminal em 14q cujo diagnóstico foi elucidado somente após seis anos através do teste para micro-arranjos cromossômicos.
Palavras-chave:
Hibridização Genômica Comparativa, Citogenética, Deficiência Intelectual, Deleção de Sequência.
ABSTRACT
INTRODUCTION: Intellectual disability and global developmental delay are frequent causes of genetic consultation requested by pediatricians. Around 30% of severe intellectual disability and 70% of mild intellectual disability do not present a defined diagnosis.
OBJECTIVES: Chromosome microarray comparative genomic hybridization test is now the standard diagnosis for patients presenting unexplained global developmental delay or intellectual disability, autism spectrum disorders, and multiple congenital anomalies due to the tests sensibility, increasing the chance for a diagnosis and elucidating size and region affected.
CASE REPORT: This paper reports a girl with intellectual disability, prominent hypotonia, postnatal growth retardation and several dysmorphisms with a small subtelomeric 14q terminal deletion whose diagnosis was sought during six years and only became possible through the chromosome microarray test.
Keywords:
Comparative Genomic Hybridization, Cytogenetics, Intellectual Disability, Sequence, Deletion
INTRODUÇÃO
Deficiência intelectual (DI) ou Atraso no Desenvolvimento Global (GDD) são causas comuns de uma consulta genética. Uma proporção de casos de DI, variando de 17 a 50%, é atribuída à etiologia genética1. Entretanto, cerca de 30% das DI grave e 70% da DI leve não apresentam diagnóstico etnológico2. Estudos citogenéticos são recomendados, mas uma porcentagem significativa desses pacientes não é diagnosticada porque as técnicas convencionais são limitadas e não conseguem identificar anormalidades cromossômicas, envolvendo menos de 5Mb. O teste de microarranjo cromossômico é o diagnóstico padrão para pacientes que apresentam atraso global de desenvolvimento inexplicável ou DI, transtornos do espectro autista e anomalias congênitas múltiplas, pois apresenta aumento da sensibilidade3. Aqui é relatada uma menina com DI, hipotonia e dismorfismos com uma pequena deleção subtelomérica cujo diagnóstico foi procurado durante seis anos e só se tornou possível através da hibridização genômica comparativa array (array-CGH).
RELATÓRIO CLÍNICO
Mulher, 11 anos, primeira filha de pais saudáveis sem parentesco; ela nasceu a termo, de parto normal, o Apgar aos 5' foi 8. A Tabela 1 mostra a antropometria e os marcos de desenvolvimento nas diferentes idades. O período pré-natal foi normal e a mãe tinha 23 anos no momento do parto. O pai tem uma menina saudável de 7 anos de seu segundo casamento. Não havia história familiar de DG/DI ou anomalias congênitas.
O probando foi encaminhado para avaliação genética, aos dois anos de idade, devido a (GDD). Na primeira avaliação, apresentava hipotonia global, não conseguia se levantar ou andar e apresentava fala incompreensível. Ao exame físico, apresentava microcefalia, fronte alta, diâmetro bifrontal estreito, blefarofimose, epicanto bilateral, nariz bulboso curto com narinas antevertidas, face alongada, palato alto e arqueado, lábio superior fino, orelhas assimétricas e frouxidão articular (figura 1). Não havia anomalias internas. Foram relatadas várias infecções respiratórias desde o nascimento até os cinco anos de idade. Quanto ao comportamento adaptativo, come sozinha, brinca sozinha e com outras crianças e desenha rabiscos, mas aos 6 anos não reconhece letras ou números do alfabeto. O quociente de inteligência aos 7 anos, pela Wechsler Intelligent Scale versão III (WISC-III), foi de 44 e a presença de ansiedade foi perceptível. A Tabela 2 mostra as principais características do probando, comparando com outros casos publicados na literatura. Em uma primeira investigação aos 2 anos de idade, um eletromiograma sugeriu miopatia e as enzimas musculares apresentaram resultados limítrofes; O cariótipo GTG era normal (46, XX). Foi prescrita fisioterapia e acompanhamento em clínica de genética. Quando o paciente tinha 8 anos de idade, foi feita outra investigação e uma amostra de sangue foi coletada para análise molecular citogenética, elucidando o diagnóstico. Em seguida, foi encaminhada a um terapeuta ocupacional e a um oftalmologista, que diagnosticaram miopia. Ela foi matriculada na escola regular e recebeu todo tipo de assistência pedagógica onde está apresentando melhora. Aos 10 anos, ainda apresentava ansiedade e não sabia ler nem escrever.
Figura 1. Proband aos dois anos de idade. Observe a testa alta, o diâmetro bifrontal estreito, epicanto bilateral, nariz bulboso curto com narinas antevertidas e ponte nasal larga.
Análise citogenética molecular e o resultado
A investigação citogenética molecular foi realizada usando microarrays baseados em oligonucleotídeos Agilent 60-mer personalizados com uma resolução teórica de 40 kb (8X60K, Agilent Technologies Inc., Santa Clara, CA). A marcação e a hibridização foram realizadas de acordo com os protocolos fornecidos pela Agilent. Os arrays foram analisados com um scanner de microarray (G2600D) e software Feature Extraction (v9.5.1) (ambos da Agilent Technologies). A análise de imagem foi realizada usando Agilent Genomic Workbench Lite Edition 6.5.0.18 com o algoritmo estatístico ADM-2 e limiar de sensibilidade 6.0. A posição do mapa foi baseada no UCSC Genome Browser, fevereiro de 2009, gh19 (sequência de referência NCBI Build GRCH37).
O resultado mostrou deleção 14q32.31-q32.33 (figura 2).
Figura 2. Perfil do cromossomo 14 aCGH do paciente (em vermelho) e uma amostra de DNA de referência de uma mulher normal (em azul). A figura mostra (A) uma perda de número de cópias correspondente ao segmento 14q32.31-q32.33 em um segmento genômico com a razão log2 mediana deslocada para -0,7 (linha preta). As razões log2 da sonda foram plotadas de acordo com as coordenadas genômicas (com base no UCSC Genome Browser, dezembro de 2013, sequência de referência NCBI Build 38). Em (B), detalhe da região 14q32.31-q32.33 mostrando a região deletada de ~4,67 Mb.
DISCUSSÃO
O foco deste trabalho é relatar um caso adicional de deleção terminal 14q e discutir a importância do array-CGH para o diagnóstico, que vem sendo pesquisado desde o segundo ano de vida desse paciente. As deleções de 14q são relativamente raras e resultam de rearranjos (translocações balanceadas) ou deleções de novo, que levam a um espectro amplo e inconsistente de características clínicas, de acordo com o ponto de interrupção local e o tamanho da deleção. Pode ser uma deleção intersticial com pontos de interrupção variáveis e tamanhos variáveis ou deleção aparentemente terminal de tamanho variável4. Às vezes, a deleção do cromossomo 14 pode se apresentar como um anel 4. A hipotonia é um sinal importante nos primeiros meses de vida apresentado por este paciente. As características mais reconhecíveis durante a infância são deficiência intelectual e dismorfismos. As malformações congênitas maiores são incomuns7; entretanto, foram relatados defeitos oftalmológicos e cardíacos, malformações cerebrais, gastrointestinais e geniturinárias masculinas8. Algumas características são mais específicas nos casos por deleção do 14q com cromossomos em anel, como convulsões e retinite pigmentosa4.
Pacientes com deleções terminais de 14 cromossomos geralmente compartilham um número significativo de características clínicas, variando de acordo com a região afetada5. Algumas dessas características, como a face alongada, tornam-se evidentes à medida que o paciente envelhece9. As características clínicas típicas incluem DI, microcefalia, retardo de crescimento pós-natal, hipotonia muscular e dismorfismos como testa alta, blefarofimose, prega epicântica e nariz bulboso curto11. A maioria dessas características está presente neste probando. Infecções respiratórias raramente foram relatadas2. Técnicas como array-CGH permitem a localização e definição de tamanho, bem como genes envolvidos, que podem ser úteis para correlações genótipo-fenótipo12. Excluindo os pseudogenes, o cromossomo 14 apresenta densidade gênica média de 10 genes por Mb, sendo que 21 desses genes estão associados a doenças genéticas10. No presente caso, o array-CGH foi fundamental tendo em vista que o paciente apresentava pequenas anomalias e DI sem diagnóstico definitivo, o que, neste tipo de situação, atualmente é sustentado por dados mais rentáveis em relação à investigação tradicional, como o cariótipo2. Esse diagnóstico permitiu o aconselhamento genético adequado, esclarecendo que não havia risco de recorrência para a família, e o acompanhamento do paciente, evitando novas investigações laboratoriais desnecessárias. É importante ressaltar que o pediatra deve buscar um diagnóstico etnológico, solicitando consulta genética, se disponível, e utilizando ferramentas de citogenética molecular.
Conflito de interesses
Os autores declaram que não há conflitos de interesse a serem divulgados.
Financiamento
O presente estudo não recebeu nenhum financiamento.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à paciente e sua família pela cooperação; Escola LLL, Dr. Têmis M. Félix e Projeto Rede BRIM/CNPq 402012/2010-0.
Aprovação do Comitê de Ética
O presente estudo faz parte do projeto “Deficiência mental em uma coorte de nascimentos: prevalência, prevalência e determinantes (Deficiência mental em uma coorte de nascimento: prevalência, etiologia e determinantes)” e foi aprovado pelo comitê de ética da instituição local de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
Consentimento Informado do Guardião
O responsável do paciente assinou um termo de consentimento permitindo a realização de fotografias médicas da criança; entendendo que as informações podem ser usadas para publicação em revistas médicas e ao consentir com essas fotografias médicas entende que não receberá pagamento de nenhuma parte. E, em caso de recusa em consentir, em nada afetaria o atendimento médico que receberá. E, caso tivesse alguma dúvida ou desejasse retirar o consentimento no futuro entraria em contato com o pesquisador responsável.
REFERÊNCIAS
1. Brasil. Ministério da Saúde. Guia de Vigilância Epidemiológica. 7 ed. 2ª reimpressão- Brasília: Ministério da Saúde, 2010. [Acesso em 12 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/guia_vigilancia_epidemio_2010_web.pdf
2. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Centro de Vigilância epidemiológica “Prof. Alexandre Vranjac”. Informe Técnico - Coqueluche 2011 - Atualização da Situação Epidemiológica. [Acesso 12 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.br/htm/resp/pdf/IF11_COQUELUCHE.pdf
3. Brasil. Ministério da Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso. 8. ed. rev. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. [Acesso em 12 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_infecciosas_parasitaria_guia_bolso.pdf
4. Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. Alerta para notificação de casos suspeitos de coqueluche no Ceará. 27/09/2011. http://www.cve.saude.sp.gov.br/htm/resp/pdf/IF11_COQUELUCHE.pdf
5. Luz PM, Codeço CT, Werneck GL. A reemergência da coqueluche em países desenvolvidos: um problema também para o Brasil? Cad Saúde Pública. 2003;19(4):1209-13. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2003000400043
6. Carvalho AP, Pereira EMC. Vacina acelular contra pertússis para adolescentes. J Pediatr (Rio J). 2006;82(3 Suppl):S15-24. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0021-75572006000400003
7. Donoso FA, Ramírez AM, León BJ, Rojas AG, Valverde GC, Oberpaur WB, et al. Coqueluche: una causa de hipertensión pulmonar fatal. Rev Chil Infectol. 2002;19(4):226-30. DOI: http://dx.doi.org/10.4067/S0716-10182002000400003
8. Piva JP, Garcia PCR, Santana JCB, Menna Barreto SS. Insuficiência respiratória na criança. J Pediatr (Rio J). 1998;74 Suppl 1:S99-S112.
9. Wood N, McIntyre P. Pertussis: review of epidemiology, diagnosis, management and prevention. Paediatr Respir Rev. 2008;9(3):201-11. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.prrv.2008.05.010
10. Riegel M, Moreira LA, Espírito Santo LD, Toralles MBP, Schinzel A. Deleção intersticial 14q24.3 a 31.3 em menino de 6 anos com fenótipo dismórfico não específico. Citogenética Molecular. 2014;7:77 .
11. Schlade-Bartusiak K, Ardinger H, Cox DW. Uma criança com síndrome de deleção terminal 14q: consideração das correlações genótipo-fenótipo. Am J Med Genet A. 2009;149: 1012-18.
12. Youngs EL, Hellings JA, Butler MG. Um relato clínico e delineamento adicional da síndrome de deleção 14q32. Dismorfol Clínico. 2011; 20:143-47.
1. Universidade Federal do Rio Grande, Genética Médica - Rio Grande - Rio Grande do Sul - Brasil
2. Universidade Federal do Rio Grande, Medicina - Rio Grande - Rio Grande do Sul - Brasil
3. Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Genética Médica - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
4. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Genética - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
5. Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Farmácia - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
Endereço para correspondência:
Simone de Menezes Karam
Universidade Federal do Rio Grande
Av. Itália, s/nº - km 8 - Carreiros, Carreiros, Rio Grande, RS, Brasil. CEP: 96203-900
E-mail: karam.simone@gmail.com
Data de Submissão: 19/06/2019
Data de Aprovação: 04/07/2019