ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 3

Síndrome de Hurley: jornada diagnóstica em uma doença rara - relato de caso

Hurler syndrome: diagnostic journey in a orphan disease - case report

RESUMO

OBJETIVOS: Promover a precoce detecção da doença através de achados clínicos pertinentes a pacientes acometidos com mucopolissacaridose tipo I.
RELATO DE CASO: Paciente com MPS I com sinais clínicos típicos da doença desde muito cedo, foi diagnosticada somente com 22 meses de idade e iniciará a terapia de reposição enzimática.
DISCUSSÃO: A doença, quanto mais precoce for detectada, melhor e mais eficaz se torna o tratamento, podendo ser terapia de reposição enzimática, ou, em último caso, transplante de células-tronco hematopoiéticas.

Palavras-chave: Mucopolissacaridose I, Terapia de Reposição de Enzimas, Transplante de Medula Óssea.

ABSTRACT

OBJECTIVES: Promote the early detection of the disease through pertinent clinical findings in patients with mucopolysaccharidosis.
CASE REPORT:
Patient with MPS I with typical clinical signs of the disease from a very early age were diagnosed only at 22 months old and will begin enzymatic replacement therapy.
DISCUSSION: The disease, the earlier it is detected, the better and more effective the treatment, which may be enzyme replacement therapy, or, in the last case, transplantation of hematopoietic stem cells.

Keywords: Mucopolysaccharidosis I, Enzyme Replacement Therapy, Bone Marrow Transplantation.


INTRODUÇÃO

Mucopolissacaridoses são doenças de armazenamento lisossômico causadas pelo acúmulo de mucopolissacarídeos (longas moléculas de açúcar), mais modernamente chamados de glicosaminoglicanos (GAGs). O acúmulo deve-se à deficiência da enzima α-L-iduronidase e seu tipo de herança é origem autossômica recessiva. São doenças metabólicas raras, atualmente apresentadas em sete tipos diferentes (I, II, III, IV, VI, VII e IX). O tipo I é também denominado como síndrome de Hurler, síndrome de Hurler-Sheie e síndrome de Sheie (variando de acordo com a gravidade do acometimento do paciente)1-5.

Com o acúmulo progressivo dos GAGs, componentes essenciais da estrutura de ossos, cartilagem, pele, tendões e outros tecidos do corpo, pode advir comprometimento de diversos órgãos, particularmente o encéfalo4,5.

Sua incidência gira em torno de 1 afetado a cada 130 mil nascidos vivos em algumas estatísticas. Trata-se de uma afecção genética autossômica recessiva caracterizada por um defeito de enzima alfa-iduronidase provocando acúmulo de glicosaminoglicanos2,5,6.

Os sinais e sintomas mais comuns da MPS I são infecções de vias aéreas de repetição, hérnia inguinal e/ou umbilical, aumento no tamanho do fígado e baço, apneia obstrutiva do sono, rigidez articular e opacidade córnea. Na apresentação mais grave da doença (síndrome de Hurler), acometimento do sistema nervoso central (SNC) é comum, com pacientes apresentando atraso neuropsicomotor e deficiência intelectual8,9.

O tratamento atual da síndrome de Hurler compreende a terapia de reposição enzimática (TRE), que consiste na aplicação periódica de uma enzima recombinante por via intravenosa, e o transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH), que deve ser realizado, preferencialmente, ainda antes dos dois anos. O sucesso dessas terapias atuais pode ser influenciado por vários fatores e deve ser monitorizado com a avaliação clínico e o uso de biomarcadores (como a dosagem dos GAGs urinários)9,10,14-16.


RELATO DE CASO

Paciente, sexo feminino, caucasiana, foi encaminhada para avaliação por apresentar atraso de desenvolvimento motor. Paciente nasceu em 29/11/2016 de parto cesário (por opção materna), a termo, com 3.450g, comprimento de 51cm, perímetro cefálico 36cm, perímetro torácico de 36cm, com APGAR 9 no 1º minuto e 10 no 5º minuto. Seu histórico gestacional não revelou intercorrências, exames pré-natais não revelaram anormalidades. Genitora relatou boa movimentação fetal (a partir do 4º mês de gestação).

Antecedentes de desenvolvimento neuropsicomotor não revelaram atraso significativo dos marcos motores, embora atraso de fala já fosse observado na paciente. Apesar de a paciente apresentar infecções de vias aéreas de repetição e fazer seguimento com otorrinolaringologista desde o um mês de vida, não houve realização de diagnóstico de sua doença de base. Genitora refere que paciente apresenta roncos noturnos com apneia frequentes, realizando polissonografia que evidenciou grave apneia obstrutiva do sono.

O seu histórico familiar não apresentava caso semelhante ou quaisquer outras patologias de cunho hereditário, genitores eram jovens à época da concepção e não consanguíneos. Não houve exposição materna a agentes teratogênicos durante a gestação.

Avaliada por diversas especialidades médicas (como ortopedia, cardiologista pediátrico, neuropediatra), paciente foi encaminhada ao serviço de genética médica.

Seu exame genético-clínico revelou: estatura abaixo do percentil 3; peso entre os percentis 50 e 75; perímetro cefálico entre os percentis 50 e 75, fáceis infiltrado, dorso nasal curto, mais nasal achatada, lábios grossos, contratura e rigidez das articulações, mãos em garra, cabelo espesso em crânio, hepatoesplenomegalia, reflexos osteotendíneos grau 1 em MMII e em MMSS, ausência de sinais de compressão medular.

Devido à suspeita de doença de armazenamento lisossômico pelos dismorfismos faciais (Figura 1), foram solicitados exames complementares direcionados para essa hipótese diagnóstica (Tabela 1).


Figura 1. Face típica de paciente com MPS-I. Fonte: Os autores (2018).




A deficiência da enzima alfa-iduronidase associada ao aumento expressivo de GAGs urinários confirmou o diagnóstico de mucopolissacaridose tipo I na paciente (agora com 22 meses de idade). Pela idade de apresentação e envolvimento neurológico, paciente enquadra-se na síndrome de Hurler. Foram discutidas com os genitores as possibilidades terapêuticas: genitores declinaram do transplante de células-tronco hematopoéticas pelo risco de mortalidade associado ao mesmo e optaram por iniciar TRE.


DISCUSSÃO

A MPS I (CID E76.1) costumava ser dividida em dois grandes grupos (grave e leve). Atualmente, ela pode ser classificada em MPS I - forma clássica (síndrome de Hurler), MPS intermediária (síndrome de Hurler-Scheie) e MPS I - leve (síndrome de Scheie), de acordo com a magnitude dos sintomas apresentados pelos pacientes1,4-6,8.

A incidência mundial da MPS I é bastante variável, sendo estimada entre 0,69 a 1,66 por 100.000 pessoas; contudo, dados de triagem neonatal demonstraram que a incidência pode ser maior, variando entre 1:7.353 (estado de Washington, EUA)13 e 1:14.567 (Missouri, EUA). Em estudo de Pastores et al. (2007)4, no qual foram capturados dados clínicos de pacientes com MPS I, a fim de caracterizar a evolução natural da doença, a distribuição da MPS I entre os sexos masculino e feminino mostrou-se semelhante, como esperado para uma doença autossômica recessiva2-7.

Existem raros estudos epidemiológicos sobre a MPS I no Brasil. Segundo o registro brasileiro da doença, que faz parte de um registro internacional, em 2010 foram registrados 891 pacientes com MPS I em todo o mundo, sendo 82 no Brasil. Outro estudo brasileiro, relatou 225 casos diagnosticados de MPS I entre 1982 e 2015 e, considerando o período entre 2000 e 2013, a prevalência da MPS I ao nascimento foi de 1/322.580 nascidos vivos6,7.

A grande maioria dos pacientes com a forma Hurler da doença apresentam sinais da doença durante os primeiros 6 meses de vida, como as infecções de vias aéreas e otites médias de repetição (como o apresentado por nossa paciente) (Tabela 2). Outros sintomas, como cifose, turvação da córnea, doença cardíaca, restrições articulares e aumento do perímetro cefálico, aparecem discretamente mais tardiamente (idade média de 8 a 10 meses). Durante os primeiros 12 meses, o desenvolvimento motor é afetado, e um número significativo de pacientes também apresenta atraso na linguagem (como no caso da paciente relatada)4,9-11.




Os indivíduos com MPS I forma Hurler têm atraso de desenvolvimento progressivo e problemas físicos mais graves. Apresentam frequentemente outros problemas médicos que necessitam de um acompanhamento multidisciplinar, tais como infecções crônicas de ouvido, problemas de visão e de audição, rigidez de articulações, cardiopatia (tanto cardiopatia hipertrófica quanto valvulopatia envolvendo a válvulas aórtica e mitral), hérnias inguinal e umbilical, síndrome de túnel do carpo, hidrocefalia comunicante e apneia do sono (parada momentânea da respiração durante o sono)4,11,13.

Opacificação da córnea é um achado comum em pacientes com MPS I, o que pode levar a dificuldades visuais, sendo importante a avaliação periódica com o oftalmologista. Otites médias de repetição são comuns e contribuem para a perda auditiva que esses pacientes podem apresentar11,13.

Sintomas apresentados pela paciente de grave apneia obstrutiva do sono, levando a paradas respiratórias constantes, contribuem também para piora da função cardíaca. A disfunção cardiorrespiratória em pacientes com mucopolissacaridose são sinais de gravidade da enfermidade, sendo, no caso da paciente, importante fator de risco para morte súbita, em particular durante o próprio sono pelas apneias de repetição e pelo risco aumentado de parada cardiorrespiratória nesses episódios4,9,11.

A demora no diagnóstico pode comprometer ainda mais o quadro da paciente, o que reitera a importância do clínico em reconhecer os sintomas precoces dessa enfermidade10,15,17.

A terapia de reposição enzimática para MPS tipo I (enzima Laronidase, Aldurazyme®) constitui uma modalidade terapêutica eficaz para combater o acúmulo de GAGs e, consequentemente, controlar as implicações adversas do depósito dessa substância nos diferentes tecidos humanos, no entanto é incapaz de passar a barreira hematoencefália, portanto não previne o acometimento do SNC nessa doença10,11,16,17.

O transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) se mostra eficaz no sentido de preservar a função mental e cognitiva dos pacientes, porém está associado a maior risco de mortalidade, tendo sua indicação de uso para pacientes com a forma Hurler da doença. Preferencialmente, deve ser realizado antes dos dois anos de idade, o que muitas vezes é impossível, visto que o atraso diagnóstico nessa doença é comum. Em virtude isso, coloca-se a necessidade de inclusão da MPS I em programas de triagem neonatal, a fim de se obter diagnóstico precoce da enfermidade e possibilitar a realização do TCTH em tempo hábil3,11-13,16,17.

Independentemente de qual terapia realizada, é fundamental o acompanhamento multidisciplinar periódico da paciente a longo prazo para auxiliar a detecção precoce e resolução de problemas associados à doença (principalmente no manejo da síndrome do túnel do carpo, sinais de hidrocefalia e tratamento da apneia do sono). Ademais, por se tratar de uma afecção genética autossômica recessiva, há risco de 25% de recorrência em futura prole do casal, sendo importante a realização do aconselhamento genético dos genitores da paciente1,14,15.

A paciente em questão começará o tratamento com TRE, o qual também necessita ser realizado o mais rápido possível, visto que diversas complicações associadas ao depósito de GAGs pode ter seu impacto diminuído com o uso da enzima recombinante, em particular melhora do quadro respiratório da paciente, da organomegalia e da apneia obstrutiva do sono. Infelizmente, o diagnóstico da paciente requereu uma jornada de 22 meses, desde os primeiros sintomas respiratórios com um mês de vida até o surgimento de complicações como a apneia obstrutiva do sono e contraturas articulares, atraso esse que não é incomum para pacientes com MPS I, mesmo em países considerados “desenvolvidos”1,2,4,14,16.

Assim, o precoce diagnóstico da doença é determinante para a qualidade de vida do paciente e consequente aumento da sobrevida, além de diminuir o impacto de sequelas irreversíveis da doença9,11,16,17.


CONCLUSÃO

Dessa forma, a urgência para o diagnóstico dessa doença requer reconhecimento dos sinais e sintomas iniciais da doença que, embora inespecíficos a princípio, podem, em seu conjunto, apontar para uma doença de armazenamento lisossômico como causa do quadro do paciente. Enquanto a triagem neonatal para MPS I não for implantada, somente a avaliação clínica e observação atenta de sinais incomuns em crianças (como grave apneia obstrutiva) levará o profissional de saúde a fazer a suspeita da doença e possibilitará o diagnóstico precoce15,17.


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Data de Submissão: 25/09/2019
Data de Aprovação: 07/09/2019