ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

O diagnóstico de febre reumática pela apresentação clínica de coreia de Sydenham: relato de caso

The Diagnosis of Rheumatic Fever by the clinical presentation of Sydenham Chorea: Case report

RESUMO

A coreia de Sydenham é caracterizada por movimentos involuntários de região distal de membros e face e acomete principalmente o sexo feminino durante a infância. Ocorre por complicação de faringoamigdalite causada por estreptococo beta hemolítico do grupo A. Esse relato de caso tem por objetivo descrever um caso de febre reumática diagnosticado a partir de um quadro clínico de coreia de Sydenham. Foi feito um estudo descritivo do tipo relato de caso de uma criança do sexo feminino, 12 anos, que procurou pronto-atendimento com queixa de movimentos involuntários em membros inferiores e superiores direitos e face há cinco dias, possuía história prévia de infecção de vias aéreas superiores com evolução autolimitada. Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, com movimentos de extensão e flexão de membros, abertura e fechamento das mãos, movimento dos dedos e careteamento, exames complementares sem alterações, exceto ASLO de 217UI/ml. Iniciou-se tratamento com haloperidol e penicilina benzatina e escolar evoluiu assintomática com melhora dos movimentos coreatetósicos. Este relato demonstra a relação existente entre a coreia de Sydenham e o diagnóstico tardio de febre reumática, além de explicitar o bom prognóstico a partir de um manejo terapêutico adequado e precoce.

Palavras-chave: Febre Reumática, Tonsilite, Discinesias, Coreia.

ABSTRACT

Sydenhams chorea is characterized by involuntary movements of the distal limbs and face region and mainly affects females during their childhood. It occurs by complication of pharyngotonsillitis caused by beta hemolytic streptococcus of the A group. This case report aims to describe a case of rheumatic fever diagnosed from a clinical picture of Sydenhams chorea. A descriptive case study of a female child was carried out, she was twelve years old, she sought the emergency care unit with involuntary movements in lower and upper rights limbs and face for five days, she had a previous history of infection an upper respiratory infection with self-limited evolution. The physical examination found, was in good general condition, with extension and flexion limbs movements, opening and closing hands movements, finger and face movements, complementary exams, they did not demonstrate any alterations, except ASLO of 217IU/ml. It was started a treatment with haloperidol, benzathine penicillin and and school progress evolved asymptomatic with improved choreatotic movements. This report demonstrates the relation between Sydenhams chorea and the late diagnosis of rheumatic fever, in addition to explaining the good prognosis from adequate and early therapeutic management.

Keywords: Dyskinesias, Tonsillitis, Chorea, Rheumatic Fever.


INTRODUÇÃO

A coreia de Sydenham (CS) é caracterizada por movimentos involuntários, bruscos, rápidos, arrítmicos e irregulares, predominantemente na região distal dos membros e face, ocorre principalmente durante a infância e no sexo feminino. Em geral, é uma apresentação extemporânea da febre reumática (FR), deflagrada por complicação de faringoamigdalite causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A (Streptococcus pyogenes). Este relato descreve um caso de febre reumática, diagnosticado a partir de quadro clínico de coreia de Sydenham.


RELATO DE CASO

MCT, 12 anos, sexo feminino, procurou atendimento em serviço de emergência, acompanhada pela mãe devido a movimentos involuntários nos membros superiores e inferiores (MSD e MID) direitos e face iniciados há cinco dias. A mãe relatou que a filha havia apresentado quadro de infecção das vias aéreas superiores há aproximadamente 15 dias, com evolução autolimitada. Informava ainda quadros prévios, recorrentes, de infecção de vias aéreas superiores na infância e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, ativa, colaborativa, lúcida. Ritmo cardíaco irregular com frequência de 108bpm e ausência de sopros. No exame neurológico, apresentava movimentos involuntários de extensão e flexão de MSD e MID, abertura e fechamento das mãos, movimentos dos dedos e careteamento que pioravam ao ocluir os olhos. A sensibilidade dolorosa e tátil estava preservada e o sinal de Babinski era negativo. A marcha apresentava aumento da base de sustentação com discreto movimento de lançar o pé direito, sem desequilíbrio, Romberg negativo. Apresentava ainda dismetria à direita e fracionamento do movimento do MSD no teste índex-nariz. Movimento ocular preservado e pupilas isocóricas e fotorreagentes.

Foi iniciado Haloperidol 2,5mg, aumentando 0,5mg a cada 3 dias até atingir a dose máxima diária de 5mg, para controle do transtorno de movimento e iniciada a investigação etiológica. Os exames laboratoriais colhidos 10 dias após o início do quadro evidenciaram ASLO: 217UI/ml (VR: 214UI/ml), C3: 91,50mg/dL, C4: 16,90mg/dL, FAN: Reagente 1/160 e anti-SM negativo. Não havia alterações nas avaliações cardiológicas, ecocardiograma e eletrocardiograma, assim como na tomografia de crânio. Apesar da melhora do padrão de movimentos após o início do haloepridol, foi proposto o tratamento com penicilina benzatina, 1.200.000UI a cada 21 dias. Após um mês, devido a remissão dos movimentos coreoatetósicos, foi suspenso o uso do haloperidol e mantida a penicilina benzatina. A paciente segue assintomática, cumprindo a proposta terapêutica de profilaxia, sem intercorrências até o momento.


DISCUSSÃO

A febre reumática (FR) é uma complicação tardia de faringoamigdalite causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A de Lancefield ou Streptococcus pyogenes, que ocorre prioritariamente em países subdesenvolvidos com condições precárias de higiene. Estima-se que cerca de 0,3% a 3,0% dos indivíduos infectados por cepas de Streptococcus sabidamente reumatogênicas vão efetivamente desenvolver FR1,2. Os pacientes podem desenvolver cardite (50-78%), artrites (35-88%), coreia (2-19%), eritema marginatum (<6%) e nódulos subcutâneos (<1-13%)3. No Brasil, dos 10 milhões de casos anuais de faringoamigdalite, 30 mil são diagnosticados com FR, e 5 a 36% recebem o diagnóstico de CS4.

A coreia de Sydenham foi descrita por Thomas Sydenham, em 1686, e tem sido associada à febre reumática desde 19565. É uma manifestação neurológica importante, de acordo com a última modificação dos critérios de Jones, em 20156, um critério suficiente por si só para o diagnóstico da doença. A coreia geralmente se desenvolve 4-8 semanas após o quadro de faringoamigdalite, diferente da cardite e da artrite que apresenta início mais recente entre 2 a 3 semanas pós infecção7,8. Dados sobre a incidência da coreia de Sydenham no Brasil são escassos na literatura, mas a frequência de tal patologia, de acordo com uma análise retrospectiva da Universidade de São Paulo, é semelhante a episódios de epidemia em países desenvolvidos8. Em um estudo realizado em 7 centros no Estado de São Paulo (Brasil) com 786 pacientes, a coreia esteve presente em 38% dos pacientes com febre reumática (299 pacientes)8, o pico de incidência ocorre entre os 5 aos 15 anos, sendo o sexo feminino o mais acometido7.

O surto de coreia é tardio, insidioso e inespecífico. O paciente pode apresentar labilidade emocional e fraqueza muscular que posteriormente evoluem para movimentos rápidos, involuntários, incoordenados de membros e face, os quais pioram com a descarga adrenérgica e tendem a desaparecer durante o sono. Também podem apresentar disartria, dificuldade na escrita, transtorno obsessivo compulsivo, ansiedade, agressividade, irritabilidade, alterações de personalidades. Geralmente tem a duração média de dois a três meses, mas pode prolongar-se por mais de um ano4.

A fisiopatologia da doença é multifatorial e hoje com estudos populacionais foi possível observar que existe um padrão de suscetibilidade para febre reumática. A doença é considerada autoimune e tem início a partir de uma reação cruzada, onde anticorpos atacam o próprio tecido devido ao mimetismo celular feito pelas cepas reumatogênicas.

A partir de então o padrão de resposta imune do indivíduo direciona o quadro clínico, no caso de uma resposta celular Th1 o quadro clínico é de cardite, enquanto a resposta humoral Th2 evolui principalmente com quadro de coreia e artrite4.

O diagnóstico do primeiro surto é realizado a partir dos critérios de Jones, confirmado pela presença de dois critérios maiores ou um critério maior e dois menores, associados à infecção estreptocócica prévia. A utilização de 3 critérios menores pode ser feita para diagnóstico de FR recorrente ou recidiva (Tabela 1)9,10.




O tratamento consiste em controlar o processo inflamatório e erradicação do estreptococo com penicilina benzatina. Nos casos de coreia, o tratamento varia quanto ao quadro clínico que pode ser autolimitado ou com sintomas de moderado a grave que indicam tratamento farmacológico com benzodiazepínicos, fenobarbital ou antipscóticos. Após o tratamento do quadro agudo é indicado a profilaxia primária que, corresponde a administração de antibioticoterapia até 9 dias depois do início dos sintomas. Posteriormente, deve-se manter a profilaxia secundária, ambas com penicilina como antibiótico de escolha, sendo que a duração desta depende da idade do paciente, do intervalo do último surto, da presença de cardite no surto inicial, do número de recidivas, da condição social e da gravidade da cardiopatia reumática residual11. Ambas as medidas visam diminuir as recidivas da doença ou evolução para sequela cardíaca. Na maioria dos casos o episódio de CS melhora em 6 meses. Foi realizado um estudo retrospectivo com 90 pacientes em um hospital terciário onde observou que 85% destes tiveram remissão completa dos sintomas motores em 6 meses e outros 5% apresentaram após 1 ano12.


CONCLUSÃO

Este relato demonstra a relação existente entre a coreia de Sydenham e o diagnóstico tardio de febre reumática, após uma faringoamigdalite, causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A; além de discutir sobre critérios diagnósticos, tratamento, profilaxia e explicitar o bom prognóstico a partir de um manejo terapêutico adequado e precoce.


REFERÊNCIAS

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1. Universidade de Uberaba, Pediatria - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
2. Universidade de Uberaba, Acadêmica de Medicina - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
3. UFTM, Pediatria - Uberaba - Minas Gerais - Brasil

Autor correspondente:

Mariana Castro Loureiro Curi
Universidade de Uberaba
Av. Nenê Sabino, nº 1801 - Universitário, Uberaba, MG, Brasil
CEP: 38055-500
E-mail: mariana.ped@hotmail.com

Data de Submissão: 16/03/2020
Data de Aprovación: 25/03/2020