ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Puberdade precoce central familiar por inativação do gene MKRN3: relato de caso

Familial central precocious puberty due to inactivation of the MKRN3 gene: case report

RESUMO

A puberdade precoce central resulta de uma ativação prematura do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal. Alguns fatores envolvidos na puberdade precoce central ainda são pouco compreendidos. Recentemente, mutações no gene makorin ring finger protein 3 (MKRN3) foram identificadas em casos familiares de puberdade precoce central. Relatamos o caso de duas irmãs com puberdade precoce central. O diagnóstico, realizado por análise molecular, evidenciou uma mutação inativadora do gene MKRN3.

Palavras-chave: puberdade precoce, genética, mutação.

ABSTRACT

Central precocious puberty results from premature activation of the hypothalamic-pituitary-gonadal axis. The factors involved in central early puberty are still poorly understood. Recently, mutations in the makorin ring finger protein 3 (MKRN3) gene have been identified in familial cases. We report the case of two sisters with central precocious puberty. The diagnosis, carried out by molecular analysis, showed an inactivating mutation of the MKRN3 gene.

Keywords: Puberty, Precocious, Genetics, Mutation.


INTRODUÇÃO

A puberdade precoce central (PPC) é definida pelo surgimento dos caracteres sexuais secundários por uma maturação no eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, antes dos 8 anos de idade nas meninas e 9 anos nos meninos, ou pela menarca antes dos 9 anos nas meninas1. A puberdade rapidamente progressiva, embora iniciada na idade normal, apresenta uma rápida evolução, havendo rápida mudança de estágio puberal em período inferior a 3 meses e aceleração da maturação óssea implicando na perda da estatura final. A PPC familiar é definida pela ocorrência desta em dois ou mais membros da família2.

Na PPC ocorre um aumento da secreção pulsátil do hormônio estimulador de gonadotrofinas (GnRH) na circulação porta-hipofisária, o qual atua na hipófise anterior, estimulando a secreção das gonadotrofinas, hormônio luteinizante (LH) e hormônio folículo estimulante (FSH), na circulação periférica.

A secreção de GnRH é coordenada por uma rede neuronal complexa, constituída de neurônios secretores com ações inibitórias ou estimulatórias, estando envolvidos fatores genéticos, ambientais, metabólicos, nutricionais e alterações neurológicas. Existem ainda formas idiopáticas, quando são excluídas lesões congênitas ou adquiridas no sistema nervoso central (SNC) e defeitos monogênicos2. Muitos desses fatores ainda são pouco compreendidos. A incidência da PPC verificada em um estudo populacional na Dinamarca é de 20 casos para cada 10.000 meninas e de 5 casos para cada 10.000 meninos3,4. As formas idiopáticas representam 90% em meninas. Em contrapartida, em 50-70% nos meninos a origem é orgânica, como tumores do SNC, doenças inflamatórias ou infecções o SNC1,4.

Em 2013, foi descrita pela primeira vez por Abreu et al.5, o papel do gene makorin ring finger protein 3 (MKRN3) na patogênese da PPC, representando 46% dos casos familiares e 5% dos casos esporádicos. Até então apenas as mutações ativadoras do sistema kisspeptin-kisspeptin receptor 1 (KISS1 e KISS1R) haviam sido descritas como causa genética de PPC. O MKRN3 é um gene de um único éxon, localizado no cromossomo 15. Sofre um imprinting materno, sendo expresso apenas pelo alelo paterno. Acredita-se que o MKRN3 codifique um fator de transcrição com efeito inibitório na secreção de GnRH e quando inativo, desencadeia uma ativação prematura do eixo HHG, levando a uma PPC. Novos genes estão sendo descobertos nessa patogênese. Em 2013, descrito por Abreu et al.5, uma mutação no gene DKL1, apresentando, de forma semelhante ao MKRN3, uma mutação inativadora com expressão no alelo paterno.

Essas descobertas recentes fazem com que os dados epidemiológicos descritos anteriormente da PPC, de origem idiopática, estejam sendo reavaliados.


RELATO DE CASO

Paciente n° 1


MCGB, feminina, cor branca, encaminhada ao serviço de endocrinologia pediátrica de referência aos 8 anos e 8 meses, natural do Rio de Janeiro, nascida de parto cesáreo, adequada para idade gestacional (AIG). Relato de história de telarca e pubarca com início aos 6 anos de idade e aceleração da velocidade de crescimento.

Nesta primeira consulta ao serviço trouxe os seguintes exames, realizados aos 7 anos de idade: LH 7,4UI/L (VR<0,2UI/L), FSH 10,1UI/L (VR: até 3,3UI/L); ultrassonografia (USG) pélvica com descrição de “volume uterino 23,3cc, ovário direito 5,9cc, ovário esquerdo 3,2cc e presença de folículos”; ressonância magnética (RM) de sela túrcica sem alterações. Trouxe ainda a radiografia de mão e punho esquerdos que avaliada pelo método de Greulich e Pyle (1959)⁶ apresentava idade óssea (IO) de 11 6/12 anos com idade cronológica (IC) de 8 2/12 anos.

A paciente estava em uso de análogo de GnRH na dose de 7,5mg, iniciado aos 7 anos e 9 meses.

História familiar: pai com 35 anos, medindo 160cm. Mãe com 38 anos, medindo 158cm, início de puberdade aos 10 anos, menarca aos 12 anos. Tia paterna teve menarca aos 7 anos. Cálculo da estatura alvo, pela fórmula (menina = [altura materna + altura paterna - 13] ÷ 2) proposta por Tanner (1986)⁷: 152,5cm.

Ao exame físico: fácies atípica, tireoide normal à ectoscopia e à palpação, ausência de linfonodomegalias. Desenvolvimento puberal segundo Marshall e Tanner (1969)8, 3 para mamas e 2 para pelos pubianos. Estatura: 136cm (escore z: +0,92), proporcional; peso: 37kg (escore Z:+1,7); índice de massa corporal (IMC): 20kg/m2 (escore Z: +1,7).

Paciente n° 2

MGB, feminina, cor branca, encaminhada ao serviço de endocrinologia pediátrica de referência aos 6 anos e oito meses, natural do Rio de Janeiro, parto cesáreo, AIG. Relato materno de telarca aos 5 anos, ausência de pubarca, apresentando aceleração da velocidade de crescimento. Irmã da paciente 1.

Trazendo nesta primeira consulta exames complementares que foram realizados aos 6 anos de idade: LH 3,1UI/L e FSH 9,2UI/L. USG pélvica com descrição de “volume uterino: 1,6cc, ovário direito 2,4cc e ovário esquerdo 1,4cc”. A radiografia de mão e punho esquerdos avaliada pelo método de Greulich e Pyle (1959)⁶ apresentava IO de 7 10/12 anos com IC de 6 4/12 anos. RM de sela túrcica sem alterações.

Ao exame físico: fácies atípica, tireoide normal à ectoscopia e à palpação, ausência de linfonodomegalias. Desenvolvimento puberal segundo Marshall e Tanner (1969)8, 2 para mamas e 1 para pelos pubianos. Estatura: 124cm (escore Z:+0,95) proporcional, peso: 27,9kg (escore Z:+1,6) IMC: 18kg/m2 (escore Z:+1,4).

Também já encaminhada ao serviço de referência em uso de análogo de GnRH na dose de 7,5mg, com início aos 5 anos e 9 meses.

Foi realizado nas duas irmãs e no pai, o sequenciamento do gene MKRN3, pelo método de Sanger5, sendo observado uma mutação inativadora (mutação: c.1172_1173insA p.Tyr391fs (rs879255239), confirmando a forma familiar de PPC de herança paterna.


DISCUSSÃO

A PPC é definida como surgimento dos caracteres sexuais secundários antes dos 8 anos nas meninas e 9 anos nos meninos, no entanto, estudos epidemiológicos recentes demonstraram que nos Estados Unidos da América, o início da puberdade nas meninas tem acontecido mais cedo. Foi observado o surgimento da telarca e pubarca em média 1 ano antes em meninas brancas e 2 anos antes em meninas afroamericanas. Esta antecipação pode estar associada ao sobrepeso e obesidade, origem étnica e disruptores endócrinos1,9.

O diagnóstico preciso da PPC e a indicação adequada de tratamento com análogos de GnRH são desafiadores. Uma história cuidadosa, exame físico, exclusão de lesão SNC, avaliação da maturação óssea e velocidade de crescimento, são de suma importância. As dosagens séricas com aumento de LH e FSH correspondem a ativação do eixo HHG, sendo o exame padrão ouro para avaliação da ativação do eixo HHG, o LH sérico basal e após estímulo com análogo de GnRH4.

O tratamento tem como objetivo interromper a maturação sexual até que a criança alcance a idade fisiológica para o desenvolvimento, podendo reverter ou estabilizar a evolução e retardar a maturação esquelética, visando preservar a altura final dentro do alvo genético da criança. As questões psicossociais envolvidas também são levadas em conta10. É realizado com análogo de GnRh, com dose inicial 3,7mg a cada 28 dias, sendo avaliado regularmente, de acordo com evolução clínica, laboratorial e radiológica.

Acredita-se que grande parte das meninas avaliadas nesta idade limítrofe (6-8 anos) não necessita de tratamento, visto que não foi observado benefício na estatura final e em até 50% dos casos ocorre uma regressão espontânea4. Porém, é necessário excluir a PP rapidamente progressiva e avaliar os fatores psicossociais que podem justificar o tratamento.

Nos casos acima descritos, havia uma história familiar importante de PP pois, segundo relato, tia paterna apresentara menarca aos 7 anos e pai apresentava baixa estatura, possivelmente por PP. Neste contexto, foi solicitado avaliação com sequenciamento genético do MKRN3 para as pacientes e seu pai, visto que, segundo observado por Abreu et al. (2013)5, este gene sofre um imprinting materno, sendo expresso apenas pelo alelo paterno, conforme sugeria a história familiar dos casos em questão. Foi documentado uma mutação inativadora do gene MKRN3 nas duas pacientes e no pai.

As características clínicas da PPC causadas por mutações inativadoras do MKRN3 são indistinguíveis de outras PPC idiopáticas. Até o momento, não foram identificadas características clínicas ou hormonais notáveis que diferenciassem pacientes com PPC causada por mutações no MKRN35. Foi observado, inclusive, que pacientes com causas genéticas de PPC apresentam respostas clínicas e laboratoriais adequadas aos análogos de GnRH, semelhantes aos pacientes com PPC idiopática2.

O caso 1 havia iniciado tratamento aos 7 anos e 9 meses. Observamos (Gráfico 1.1) que o início do tratamento já apresentava uma idade óssea avançada em relação à idade cronológica, pelo provável retardo no diagnóstico de PPC e início do tratamento, com uma previsão da estatura final discretamente abaixo do alvo genético.


Gráfico 1. Estatura x idade. À esquerda: paciente n° 1; gráfico à direita: paciente n° 2. Sete vermelha: alvo genético 152,5cm. Triângulo preto: idade óssea. Previsão da estatura final: caso 1, 152cm; caso 2, 163cm.



O caso 2 havia iniciado tratamento aos 5 anos e 9 meses. Observamos (no Gráfico 1.2), uma melhor evolução por ter iniciado o tratamento precocemente, sem que houvesse uma aceleração da maturação óssea e uma perda estatural importante.

Apesar do grande avanço com novas descobertas, o diagnóstico e tratamento da puberdade precoce central ainda representa um grande desafio.

A análise genética do MKRN3, na presença de uma história familiar importante, deve ser incluída na investigação, visto que sua incidência nos casos de PPC familiar é expressiva, segundo descrito por Abreu et al. (2013)5. E quanto mais precoce for o diagnóstico da PPC, melhor será o prognóstico nos casos em que necessite de tratamento.


REFERÊNCIAS

1. Latronico AC, Brito VN, Carel JC. Causes, diagnosis, and treatment of central precocious puberty. Lancet Diabetes Endocrinol. 2016 Mar;4(3):265-74.

2. Canton AP, Seraphim CE, Brito VN, Latronico AP. Pioneering studies on monogenic central precocious puberty. Arch Endocrinol Metab. 2019 Ago;63(4):438-44.

3. Abreu AP, Dauber A, Macedo DB, Noel SD, Brito VN, Gill JC, et al. Central precocious puberty caused by mutations in the imprinted gene MKRN3. N Engl J Med. 2013 Jun;368(26):2467-75.

4. Teilmann G, Pedersen CB, Jensen TK, Skakkebaek NE, Juul A. Prevalence and incidence of precocious pubertal development in Denmark: an epidemiologic study based on national registries. Pediatrics. 2005 Dez;116(6):1323-8.

5. Marshall WA, Tanner JM. Variations in pattern of pubertal changes in girls. Arch Dis Child. 1969 Jun;44(235):291-303.

6. Greulich WW, Pyle SI. Radiographic atlas of skeletal development of the hand and wrist. 2nd ed. Stanford: Stanford University Press; 1959.

7. Tanner JM. The use and abuse of growth standards. In: Falkner F, Tanner JM, eds. Human growth. 2nd ed. New York: Plenum; 1986. vol. 3. p. 95-112.

8. Kaplowitz P. Update on precocious puberty: girls are showing signs of puberty earlier, but most do not require treatment. Adv Pediatr. 2011;58(1):243-58.

9. Carel JC, Léger J. Clinical practice. Precocious puberty. N Engl J Med. 2008 Mai;358(22):2366-77.

10. Brito VN, Spinola-Castro AM, Kochi C, Silva PCA, Guerra-Júnior G. Central precocious puberty: revisiting the diagnosis and therapeutic management. Arch Endocrinol Metab. 2016 Abr;60(2):163-72.










1. Universidade do Estado do Rio de Janeiro- Hospital Universitário Pedro Ernesto, Médico Residente em Endocrinologia Pediátrica - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
2. Universidade de São Paulo (USP). Faculdade de Medicina (FM), Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento, Laboratório de Hormônios e Genética Molecular/LIM42 - São Paulo - SP - Brasil
3. Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor Adjunto da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia e Metabologia do Departamento de Medicina Interna da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Médico do Setor de Endocrinologia Pediátrica da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
4. Hospital Universitário Pedro Ernesto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Médico do Setor de Endocrinologia Pediátrica da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia do HUPE-UERJ. Preceptor do Programa de Residência Médica em Endocrinologia Pediátrica do Hospital Universitário Pedro Ernesto - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
5. Hospital Universitário Pedro Ernesto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professora associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, coordenadora do Setor de Endocrinologia Pediátrica da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia do HUPE-UERJ. Supervisora do Programa de Residência Médica - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Endereço para correspondência:

Carolina de Oliveira Cavalcanti Assumpção
Hospital Universitário Pedro Ernesto
Boulevard 28 de Setembro, 77 - Vila Isabel, Rio de Janeiro - RJ. Brasil
CEP: 20551-030
E-mail: cocassumpcao@gmail.com

Data de Submissão: 09/03/2020
Data de Aprovação: 27/03/2020