ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Diagnóstico precoce de doença de Kawasaki durante pandemia de COVID-19: relato de caso

Early diagnosis of Kawasaki disease during COVID-19 pandemic: a case report

RESUMO

OBJETIVO: Relatar o caso de um paciente com diagnóstico precoce de doença de Kawasaki com complicação de aneurisma de coronária em fase inicial. A doença de Kawasaki é uma das vasculites primárias mais comuns e é a principal causa de cardiopatias adquiridas em crianças nos países desenvolvidos. Caracteriza-se por um acometimento multissistêmico de etiologia desconhecida. A febre alta e persistente por mais de cinco dias, associada a exantema polimorfo, alteração da cavidade oral, edema de extremidades, conjuntivite bilateral e linfonodomegalia cervical são características da doença, mas que também foram encontradas em alguns pacientes com COVID-19 e na síndrome inflamatória multissistêmica.
RELATO DE CASO: Paciente masculino de 6 anos e 1 mês de idade com relato de febre persistente há 72 horas, exantema polimorfo, sintomas gastrointestinais, evoluindo com hiperemia conjuntival bilateral sem exsudato, língua em framboesa, piora das lesões cutâneas associada à edema de extremidades. Ecocardiograma com achado de aneurisma coronário. Iniciado tratamento para doença de Kawasaki com resposta terapêutica satisfatória e diminuição da dilatação de coronária.
CONCLUSÃO: Este relato apresenta a importância de considerar a doença de Kawasaki como diagnóstico diferencial em casos de síndromes febris. O diagnóstico precoce permite o tratamento para melhora dos desfechos.

Palavras-chave: síndrome de linfonodos mucocutâneos, vasculite, aneurisma coronário, pediatria, COVID-19.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To report the case of a patient with an early diagnosis of Kawasaki disease with an early-stage coronary aneurysm complication. Kawasaki disease is one of the most common primary vasculitis and is the main cause of acquired heart disease in children in developed countries. It is characterized by a multisystemic involvement of unknown etiology. High fever and persistent for more than five days, associated with polymorphic rash, tongue erythema with papillary prominence, edema of the extremities, bilateral conjunctivitis and cervical lymph node enlargement are characteristics of the disease, but they were also found in some patients with COVID-19 and in multisystem inflammatory syndrome.
CASE REPORT: A 6-year and 1-month-old male patient with a 72-hour persistent fever report, polymorphic rash, gastrointestinal symptoms, evolving with bilateral conjunctival hyperemia without exudate, raspberry tongue, worsening of skin cutaneous and extremity edema. Echocardiogram with finding of coronary aneurysm. Treatment for Kawasaki disease was started with satisfactory therapeutic response and decreased coronary dilation.
CONCLUSION: This report shows the importance of considering Kawasaki disease as a differential diagnosis in cases of febrile syndromes. Early diagnosis allows treatment to improve outcomes.

Keywords: Mucocutaneous Lymph Node Syndrome, Vasculitis, Coronary Aneurysm, Pediatrics, COVID-19.


INTRODUÇÃO

A doença de Kawasaki ou síndrome mucocutânea linfonodal, doença febril aguda descrita pela primeira vez por Tomisaku Kawasaki, em 1967, no Japão1, é uma vasculite aguda e autolimitada, com predomínio de vasos de médio calibre2. Representa uma das vasculites primárias mais comuns da infância. Caracteriza-se por quadro de febre alta e persistente e risco de complicações coronarianas em 25% dos pacientes não tratados e em 4% daqueles tratados. Aproximadamente 85% dos casos ocorrem em crianças menores de 5 anos, com predomínio no sexo masculino. É a principal causa de cardiopatia adquirida em crianças nos países desenvolvidos e cerca de 5% das síndromes coronarianas em adultos3-5.

A patogênese ainda é desconhecida, porém há evidência de desregulação imunológica em resposta a um agente infeccioso em indivíduos geneticamente susceptíveis4.

O diagnóstico se baseia em critérios clínicos: febre alta (de 38° a 40°C) por no mínimo cinco dias, associada a pelo menos quatro de cinco dos seguintes sinais: 1) exantema polimorfo (sem vesículas); 2) hiperemia conjuntival bilateral sem exsudado; 3) alterações em lábios e cavidade oral, como enantema, fissuras, língua em framboesa, edema difuso de mucosa oral e da faringe; 4) linfadenopatia cervical maior que 1,5cm de diâmetro e geralmente unilateral; 5) alterações nas extremidades: inicialmente eritema palmar e plantar, seguido de edema de mãos e pés, e em fase subaguda, evidencia-se descamação lamelar periungueal6.

Cerca de 20% a 30% dos pacientes não preenchem os critérios diagnósticos, sendo denominados de “formas incompletas ou atípicas” de doença de Kawasaki2-4.

Esse relato de caso objetiva demonstrar a importância da descoberta precoce da doença de Kawasaki e assim melhores desfechos do quadro tendo em vista a gravidade das possíveis complicações que estão relacionadas à doença. Também destaca a necessidade de diferenciação com os quadros de COVID-19 e a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica, especialmente durante o atual momento pandêmico.

O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da instituição de origem das pesquisadoras (Universidade Federal de Santa Catarina), sob Parecer Consubstanciado no 5.228.906, de 08/02/2022 (CAAE: 52629321.1.0000.0121). As pesquisadoras seguiram as diretrizes de pesquisa que envolvem os seres humanos (466/2012 do Conselho Nacional de Saúde), mantendo o sigilo e a confidencialidade das informações identificáveis.


RELATO DE CASO

Paciente masculino, branco, 6 anos e 1 mês de idade, deu entrada na emergência pediátrica no dia 15/07/21, acompanhado pela mãe. A informante relatou início dos sintomas há 72 horas, referiu quadro de febre persistente, temperatura axilar máxima 38,9°C, de difícil controle. No primeiro dia de doença, apresentou dor abdominal difusa e episódios de vômitos que persistiram por 24 horas. No segundo dia, cursou com alteração em mucosa oral e língua, além de rash cutâneo com início em pés, mãos e membros superiores, que após se espalhou para genitália, tronco e rosto. Procurou atendimento em emergência pediátrica, onde foi avaliado e liberado com anti-histamínico. No terceiro dia, evoluiu com piora das lesões de pele associadas a prurido e edema de mãos e pés. Nesse dia, buscou atendimento em outro serviço de emergência pediátrica de Florianópolis, onde foi internado. Negou contato com caso confirmado ou suspeito de COVID-19. História prévia de asma.

Na admissão, apresentava boa impressão geral e com sinais vitais estáveis. Foi observado na oroscopia hiperemia em lábios, proeminência das papilas linguais (Figura 1) e petéquias em palato. Na pele havia rash cutâneo em tronco, membros superiores e inferiores, e placa em mãos e pés. Presença de edema em mãos e pés.


Figura 1. Hipertrofia das papilas linguais (língua em framboesa).



Optou-se por iniciar investigação do paciente com exames laboratoriais e de imagem (Quadro 1).




Frente aos dados clínicos e exames (Quadro 1, Figuras 2 e 3), considerou-se o diagnóstico de doença de Kawasaki. Foi iniciado imunoglobulina humana (IVIG) 2g/kg (infusão em 12 horas) e mantido com ácido acetilsalicílico (AAS) 80mg/kg/dia até completar 72 horas afebril, sendo então reduzido para 4mg/kg/dia.


Figura 2. Presença de derrame pericárdico em ecocardiografia de admissão.


Figura 3. Presença de dilatação de coronária esquerda em ecocardiografia de admissão.
Fonte: Elaborado pelas autoras, com dados do paciente, 2021.



Paciente evoluiu com melhora clínica e discreta descamação cutânea, em aspecto laminar, especialmente em extremidades (Figura 4). Recebeu alta hospitalar em uso de AAS 4mg/kg/dia após 4 dias de internação com orientação de seguimento ambulatorial com cardiologista pediátrica. Em retorno ambulatorial no dia 13/08/21, ecocardiograma demonstrou diminuição do derrame pericárdico, medindo 0,7cm (Figura 5) e redução da dilatação da artéria coronária esquerda, medindo 0,3cm (Figura 6). Optou-se por manter o uso de AAS 4mg/kg/dia e o seguimento com especialista semestralmente.


Figura 4. Descamação de extremidades.


Figura 5. Redução do derrame pericárdico em ecocardiografia de seguimento.


Figura 6. Redução de dilatação de coronária esquerda em ecocardiografia de seguimento.



DISCUSSÃO

A doença de Kawasaki é uma entidade clínica cujo diagnóstico deve ser feito o mais precocemente possível para a instituição pronta do tratamento e prevenção das complicações7,8.

O diagnóstico diferencial deve ser feito com todas as doenças febris agudas que cursam com exantema, linfadenite e alterações de mucosas como as infecções bacterianas, virais, farmacodermias e outras vasculites de vasos de médio calibre2-4 e na atualidade não se pode afastar a possibilidade de infeção pelo novo coronavírus.

O diagnóstico de formas graves de COVID-19 nessa faixa etária é menos comum, podendo, no entanto, apresentar manifestações semelhantes, normalmente associado a comorbidades prévias9. Feldstein et al. (2021)9 demonstraram que a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) pode acontecer até cerca de 4 semanas após a infecção aguda pelo novo coronavírus. Sperotto et al. (2021)10 enfatizaram que a SIM-P possui semelhanças com a doença de Kawasaki, como febre persistente, marcadores inflamatórios elevados e envolvimento cardíaco. O envolvimento cardíaco pode incluir disfunção miocárdica, arritmias, miocardite, aneurismas coronários9-11. O diagnóstico diferencial consiste na realização do teste de reação em cadeia da polimerase (PCR) e o teste rápido para SARS-CoV-2 diante da suspeita de SIM-P, os quais o paciente realizou, com resultado negativo12-15.

McCrindle et al. (2017)2 destacaram que a Doença de Kawasaki é considerada na vigência de febre por pelo menos 5 dias junto com pelo menos 4 dos 5 principais sintomas: 1) eritema e fissura de lábios, língua em framboesa e/ou eritema da mucosa oral ou faríngea; 2) Hiperemia conjuntival bilateral sem exsudato; 3) Exantema polimórfico; 4) Eritema e edema de mãos e pés na fase aguda e/ou descamação periungueal na fase subaguda; 5) Linfadenopatia cervical (≥1,5cm de diâmetro), geralmente unilateral. Referem que na presença 4 ou mais características clínicas principais, especialmente quando há hiperemia e edema das mãos e pés, o diagnóstico pode ser feito com 4 dias de febre. Inferiram também, que médicos que já trataram muitos pacientes com Kawasaki, podem estabelecer o diagnóstico com 3 dias de febre em casos raros.

No caso relatado, o paciente apresentou febre por um período menor que o critério obrigatório de 5 dias. Entretanto, o restante da condição clínica, junto às alterações laboratoriais e ao ecocardiograma com sinais de coronariopatia, levaram ao diagnóstico precoce de Kawasaki.

Apesar de não fazer parte dos critérios diagnósticos, a alta incidência de aneurisma de artéria coronária em pacientes não tratados (complicação relacionada à maior morbimortalidade), justifica a necessidade de diagnóstico e tratamento até o décimo dia da doença14. A incidência de complicações cardiovasculares, como o aneurisma, diminui de 15% a 20% para 5%, quando os pacientes são tratados com imunoglobulina humana antes do décimo dia de evolução da doença4.

Portanto, diante de um quadro típico ou de alta suspeição, McCrindle et al. (2017)2 consideraram que o tratamento deve ser prontamente iniciado com imunoglobulina humana em dose única de 2g/kg, até o décimo dia de febre, associado ao AAS em doses moderadas (30 a 50mg/kg/dia) ou altas (50 a 80mg/kg/dia). Quando o paciente estiver afebril por dois dias, a dose do AAS deve ser reduzida (3 a 5mg/kg/dia) e ser mantida por 6 a 8 semanas. Nos casos de anormalidades coronarianas mantém-se o AAS indefinidamente2,8.

No paciente em questão, foi observada melhora do quadro com resolução da febre, bem como do exantema e diminuição do edema em extremidades 24 horas após iniciado a medicação.

Orienta-se que o ecocardiograma com Doppler seja realizado no momento da suspeita diagnóstica e repetido em 1 a 2 semanas e posteriormente, em 6 a 8 semanas de evolução. Nos casos em que houver aneurismas coronarianos, recomenda-se sua realização duas vezes por semana1-3.

Conclui-se com esse relato de caso, a importância de incluir a doença de Kawasaki como diagnóstico diferencial da doença febril, mesmo quando esta apresenta período de evolução inferior ao observado tradicionalmente. Além disso, é importante a exclusão de COVID-19 e SIM-P, visto o atual momento de pandemia. Sendo assim, o diagnóstico precoce da doença de Kawasaki contribui para a diminuição de suas sérias complicações.


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Data de Submissão: 08/02/2022
Data de Aprovação: 13/02/2022