ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 2

Cisto de duplicação entérica no período neonatal

A newborn with an enteric duplication cyst

RESUMO

Cistos de duplicação entérica são raras anomalias congênitas do trato gastrointestinal. Podem ser identificados desde o período neonatal ou nos dois primeiros anos de idade. A patogênese ainda é incerta, abrindo possibilidade a várias teorias correlacionadas à sua formação durante a embriogênese. As manifestações clínicas são muito variadas, a depender da localização e tamanho da lesão. O diagnóstico é inicialmente realizado por meio de ultrassonografia abdominal, sendo confirmado pelo exame histopatológico. Nestes pacientes o tratamento é sempre cirúrgico. Este relato de caso, refere-se a um neonato com ultrassonografias no período intrauterino, evidenciando massas císticas abdominais e sua evolução até o diagnóstico definitivo de cisto de duplicação entérica, após tratamento cirúrgico e confirmação por análise histopatológica.

Palavras-chave: cistos, anormalidades congênitas, trato gastrointestinal, recém-nascido.

ABSTRACT

Enteric duplication cysts are rare congenital anomalies of the gastrointestinal tract. They can be identified from the neonatal period or in the first two years. The pathogenesis is still uncertain opening possibility to several theories correlated to its formation during the embryogenesis. The clinical manifestations are very varied depending on the location and size of the lesion. Diagnosis is initially performed by abdominal ultrasonography and confirmed by histopathological examination. In these patients, the treatment is always surgical. This case report refers to a neonate with ultrasounds in intrauterine period showing abdominal cystic masses and its evolution to the definitive diagnosis of enteric duplication cyst, after surgical treatment and confirmed by histopathological analysis.

Keywords: cysts, congenital abnormalities, gastrointestinal tract, newborn, diseases.


INTRODUÇÃO

Os cistos de duplicação entérica são raras anomalias de desenvolvimento embriológico originadas em todo o trato alimentar1. Estão presentes em 0,2% das crianças1, com prevalência semelhante em ambos os sexos e com pequena predominância no masculino2.

O diagnóstico geralmente se dá no pré-natal ou nos primeiros dois anos de vida3. Deve ser precoce e associado ao tratamento cirúrgico imediato, compondo a melhor maneira de prevenir a morbidade4.

Este relato de caso descreve a evolução clínica de um neonato com achados ultrassonográficos de duas massas císticas abdominais durante o pré-natal, cujo diagnóstico final foi de cisto de duplicação entérica.


RELATO DE CASO

Recém-nascido de parto vaginal, sexo feminino, idade gestacional de 38 semanas e 3 dias, apresentação cefálica, bolsa rota no ato com líquido amniótico meconial, pesando 2.096g, perímetro cefálico de 31cm, perímetro torácico de 29cm, perímetro abdominal de 32cm, comprimento de 43cm, Apgar 7/7, sem necessidade de manobras de reanimação em sala de parto. Ao exame físico, observou-se lesão cística em região occipital, desenho de alças em abdome, massa palpável móvel em fossas ilíacas mais evidente à direita e luxação de articulação de joelho direito.

No pré-natal, foi realizada ultrassonografia (US) obstétrica no segundo trimestre, sendo observadas duas imagens císticas intra-abdominal fetal, volumosas e de contornos nítidos e regulares, estendendo dos flancos até a pelve, medindo em seus maiores eixos 5,4cm e 4,6cm. Em US no terceiro trimestre demonstradas formações císticas de paredes finais, conteúdo liquido-homogêneo, que não apresentava fluxo ao color Doppler, se estendendo desde a pelve até os flancos, de aspecto inespecífico.

Uma hora após o nascimento, neonato apresentou desconforto respiratório e taquipneia, com necessidade de internação em unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN) para oxigenoterapia por ventilação mecânica não invasiva. Evoluiu com piora do quadro respiratório, sendo necessária intubação orotraqueal e antibioticoterapia. Radiografia de tórax sem alterações e radiografia de abdome apontava distensão abdominal, com efeito de massa em região de flanco direito, fossa ilíaca direita e fossa ilíaca esquerda. No decorrer da internação, paciente evoluiu com instabilidade hemodinâmica, sendo administrado drogas vasoativas.

Ao US abdominal, visualizada em regiões anexiais, formações císticas de paredes finas e conteúdo anecoico homogêneo, sem conteúdo sólido, medindo 4,37cm (direito) e 3,48cm (esquerdo). Foi adotada, em conjunto com equipe de cirurgia pediátrica, conduta expectante, enquanto aguardava reavaliação após estabilização do quadro clínico da paciente.

Após estabilização hemodinâmica, foi observado distensão abdominal importante, em progressão, com abdome pouco depressível à palpação, sem alterações das funções de eliminação, associado à radiografia simples de abdome mantendo padrão com aumento distensão abdominal. Em novo US abdominal, foi visto volumosas formações císticas ocupando os flancos/fossas ilíacas, à direita contendo finos septos e medindo cerca de 7,9cm, e à esquerda medindo cerca de 7,1cm. Em virtude do aumento das massas císticas abdominais e das alterações do exame físico, a cirurgia pediátrica optou por abordagem cirúrgica.

Com 27 dias de vida, foi submetida à exérese de duas massas císticas de mesentério, enterectomia com enteroanastomose e apendicectomia (Figura 1). A análise histopatológica de peça cirúrgica revelou achados compatíveis com cisto de duplicação entérica, sem sinais de neoplasia. A paciente permaneceu por mais 24 dias em UTIN, para tratamento de intercorrências pós-operatórias e estimulação ao aleitamento materno, com alta para acompanhamento ambulatorial.


Figura 1. Abordagem cirúrgica ao cisto de duplicação entérica.



COMENTÁRIOS

Os cistos de duplicação entérica (CDE) são encontrados principalmente no íleo (33%), seguido pelo esôfago (20%), cólon (13%), jejuno (10%), estômago (7%) e duodeno (5%)5. As duplicações intestinais são um grupo de lesões que contém uma parede de músculo liso e mucosa entérica que são encontradas somente na borda mesentérica do intestino3.

Acredita-se que os CDE entérica ocorram entre a 4ª e a 8ª semana do desenvolvimento embrionário5, e sua etiopatogenia abrange diferentes teorias, como: teoria de notocorda dividida; teoria que sugere a falha da regressão normal dos divertículos embrionários; teoria da formação de septo mediano; e teoria que sugere a associação de duplicação tubular complexa de cólon e reto com anomalias urogenitais devido a geminação parcial ou abortiva6. São relatadas malformações, principalmente vertebrais, em 50% dos pacientes com CDE2.

O exame abdominal pode não ser digno de nota, mas uma massa móvel pode ser palpável em 50% dos casos2, como apresentado pelo paciente em questão. Quando não evidenciado alterações no exame físico ao nascimento, cerca de 70% dos casos apresentam sinais e sintomas como náusea, vômito, distensão abdominal e massa abdominal palpável no primeiro ano de vida. A dor abdominal recorrente é uma das formas mais frequentes de apresentação e é geralmente atribuída à alta pressão dentro do cisto de duplicação, devido ao acúmulo de secreções5.

A US é o método de imagem mais utilizado para o diagnóstico dos CDE. Ressonância magnética (RM) e tomografia computadorizada (TC) são utilizados para CDE esofágicos e para auxiliar em abordagens cirúrgicas difíceis5. O raio-X simples é pouco específico3, porém costuma ser utilizado em situações de urgência por ser facilmente acessível, como no caso em relato. O paciente apresentou descompensação na primeira hora pós-parto e as radiografias realizadas não evidenciaram alterações pulmonares, mas imagens de distensão abdominal com efeito de massa em flancos e fossa ilíaca, que poderiam justificar a instabilidade hemodinâmica. Posteriormente, confirmou-se pela US que os cistos evidenciados nas US do pré-natal haviam aumentado consideravelmente de tamanho.

A apresentação intrauterina dos CDE está aumentando, principalmente devido à melhora na triagem ultrassonográfica pré-natal e melhor resolução da imagem5. No entanto, o diagnóstico pré-natal é frequentemente difícil, com apenas 20-30% identificados neste período5,7.

O reconhecimento pré-natal de uma duplicação entérica permite o planejamento da investigação pós-natal apropriada para estabelecer o diagnóstico e rastrear as malformações associadas4. A confirmação de CDE ocorre após a excisão cirúrgica pela histopatologia, que revela a mucosa de alguma parte do trato gastrointestinal8.

Os CDE tendem a aumentar gradualmente de tamanho e podem causar sintomas e complicações possivelmente fatais, como obstrução – volvo ou intussuscepção –, sangramento maciço ou até mesmo um risco potencial de transformação maligna na idade adulta5,7. Dessa forma, a conduta expectante em um caso de duplicação assintomática não é recomendável9. Neste relato, foi necessária uma abordagem expectante inicialmente, devido ao quadro de instabilidade apresentado pela paciente, que foi submetida ao tratamento cirúrgico o mais precocemente possível.

As técnicas operatórias são diversas e pode-se considerar somente a excisão do cisto5. O habitual é a ressecção do segmento intestinal que contém a duplicação, seguida de anastomose término-terminal. Abordagens mais radicais como colectomia segmentar ou total podem ser necessárias se houver vascularização comum entre o intestino e a sua duplicação3. É importante garantir que o cisto seja totalmente ressecado pela chance de recorrência ou alterações malignas. Atualmente, a cirurgia minimamente invasiva é utilizada, e a maioria dos cistos podem ser ressecados com sucesso tanto por via toracoscópica como laparoscópica5.


REFERÊNCIAS

1. Sharma S, Yadav AK, Mandal AHK, Zaheer S, Yadav DK, Samie A. Enteric duplication cysts in children: a clinicopathological dilemma. J Clin Diag Res. 2015 Ago;9(8):EC08-EC11.

2. Tiwari C, Shah H, Waghmare M, Makhija D, Khedkar K. Cysts of gastrointestinal origin in children: varied presentation. Pediatr Gastroenterol Hepatol Nutr. 2017 Jun;20(2):94-9.

3. Netto ICS, Costa RM, Duarte MS, Tavares CP, Lourenço DSP, Lopes TA. Cisto de duplicação intestinal associado com má rotação. Resid Pediatr. 2013;3(3):76-9.

4. Correia-Pinto J, Tavares ML, Monteiro J, Moura N, Guimarães H, Estevão-Costa J. Prenatal diagnosis of abdominal enteric duplications. Prenat Diagn. 2000 Fev;20(2):163-7.

5. Nebot CS, Salvador RL, Palacios EC, Aliaga SP, Pradas VI. Enteric duplication cysts in children: varied presentations, varied imaging findings. Insights Imaging. 2018 Out;9:1097-106.

6. Praveen C, Hota PK, Kumar CVP, Babu KM. Intestinal duplication cyst presenting as volvulus: a rare case report. Bali Med J. 2014;3(2):53-5.

7. Arias MP, Lorenzo FG, Sánchez MM, Vellibre RM. Enteric duplication cyst resembling umbilical cord cyst. J Perinatol. 2006 Jun;26(6):368-70.

8. Ramakrishna HK. Intestinal duplication. Indian J Surg. 2008 Dez;70(6):270-3.

9. Gabriel E, Caris JJM, Martinelli HM, Oliveira CA, Lima RMB, Lima CSC. Duplicações do aparelho digestivo. Rev Col Bras Cir. 2004 Dez;31(6):359-63.










1. Hospital Infantil Nossa Senhora da Gloria, Programa de Residência Médica em Medicina Intensiva Pediátrica - Vitória - ES - Brasil
2. Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Programa de Residência Médica em Neonatologia - Vitória - ES - Brasil
3. Hospital Ana Nery, Programa de Residência Médica em Cardiologia Pediátrica - Salvador - BA - Brasil
4. Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Pediatria - Vitória - Espírito Santo - Brasil
5. Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Scientific Writing Office, Pediatria - Vitória - ES - Brasil

Endereço para correspondência:

Rafael Silva Sampaio
Hospital Infantil Nossa Senhora da Gloria
Rua Alameda Mari Ubirajara, nº 205, Santa Lucia
Vitória, ES, Brasil. CEP: 29056-030
E-mail: rafaelsampaio_@hotmail.com

Data de Submissão: 29/05/2020
Data de Aprovação: 23/06/2020