ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Mucopolissacaridose tipo VI (síndrome de Maroteaux-Lamy): 15 anos de seguimento clínico após terapia de reposição enzimática

Mucopolysaccharidosis type VI (Maroteaux-Lamy syndrome): 15 years follow-up after enzyme replacement therapy

RESUMO

A mucopolissacaridose tipo VI, conhecida como síndrome de Maroteaux-Lamy, é uma doença genética autossômica recessiva caracterizada pela deficiência da enzima arilsulfatase B, levando ao acúmulo de glicosaminoglicanos nos lisossomos das células do indivíduo acometido. Este acúmulo pode levar a diversas manifestações clínicas (atraso do crescimento, dismorfismos faciais, alterações motoras, deficiências audiovisuais, deformidades osteoarticulares e problemas cardiorrespiratórios) que diminuem a qualidade de vida do indivíduo. A progressão dessas condições pode levar o paciente a óbito. As únicas possibilidades terapêuticas para a síndrome de Maroteaux-Lamy eram os cuidados da equipe multiprofissional e o transplante de medula óssea que tem alta taxa de morbimortalidade. Recentemente estudos clínicos demonstraram a segurança e o impacto positivo na terapia de reposição enzimática (TRE) com rhASB (galsulfase, Naglazyme®), principalmente quando iniciado precocemente, estabilizando o acometimento de vários sistemas afetados pela doença. Este trabalho tem como objetivo relatar o histórico clínico de paciente com síndrome de Maroteaux-Lamy em tratamento com enzima recombinante, traçando um paralelo com o irmão também afetado por essa enfermidade, mas que faleceu antes de ter acesso à TRE, destacando o impacto da terapia específica no manejo de uma doença genética multissistêmica e os desafios do seguimento clínico.

Palavras-chave: Mucopolissacaridose VI, Glicosaminoglicanos, Terapia de Reposiçao Enzimática, Aconselhamento Genético.

ABSTRACT

Type VI mucopolysaccharidosis, known as Maroteaux-Lamy syndrome, is an autosomal recessive genetic disease caused by deficiency of the lysosomal arylsulfatase B enzyme, leading to the accumulation of glycosaminoglycans in the lysosomes of all cell from an affected patient. This accumulation can lead to several clinical manifestations (growth retardation, dysmorphic facial features, motor impairment, audiovisual deficiencies, osteoarticular contractures and cardiorespiratory problems) that reduce the quality of life of an individual affected by such disorder. Symptom progression can lead to premature death. The only therapeutic possibilities for Maroteaux-Lamy syndrome were multiprofessional team care and bone marrow transplant (that has a high morbidity and mortality rate). Recently, clinical studies have demonstrated the safety and positive impact of enzyme replacement therapy (ERT) with rhASB (galsulfase, Naglazyme®) in MPS VI patients, especially when early initiated, halting the progressive involvement of many systems affected by this disease. Here we report the a Maroteaux-Lamy patient under ERT, drawing a parallel with his elder brother, also affected by the same disorder, who passed away before initiating ERT, pointing out the impact of the specific therapy in the management of multisystemic genetic disease and the challenges in the clinical follow-up of such patients.

Keywords: Mucopolysaccharidosis VI, Glycosaminoglycans, Enzyme Replacement Therapy, Genetic Counseling.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Maroteaux-Lamy, também conhecida como mucopolisacaridose tipo VI (MPS VI) é um distúrbio hereditário de armazenamento lisossômico, no qual há acúmulo de mucopolissacárides não degradados devido à deficiência da enzima arilsulfatase B (ASB)1,2. A origem de seu nome vem de dois médicos franceses, Dr. Marateaux e Dr. Lamy, que foram os pioneiros a descrever a exata deficiência bioquímica desta síndrome em 1965. A MPS VI, embora seja uma síndrome rara no mundo, parece ser frequente no Brasil, por exemplo na cidade de Monte Santo, no estado da Bahia, a prevalência da doença, é estimada em torno de 1:5.000 nascidos vivos3. Sua incidência global está estimada em 1,3-4,5:100.000 nascimentos4. Porém a verdadeira incidência da doença pode ser maior, devido principalmente à ausência de rastreamentos obrigatório da MPS VI em recém-nascidos5.

As mucopolissacaridoses foram classificadas nos tipos: I, II III, IV, VI, VII e IX. A do tipo VI é uma doença rara herdada de forma autossômica recessiva, causada pela mutação no gene da enzima N-acetilgalactosamina 4-sulfatase (arilsulfatase B) que leva à deficiência ou à eliminação da função desta enzima6. A arilsulfatase B é importante, pois realiza a quebra dos glicosaminoglicanos (GAGs), no caso o dermatan sulfato. Sua deficiência leva ao acúmulo progressivo desse GAG nos lisossomos, causando alterações osteoarticulares, audiovisuais e cardiovasculares1.

A apresentação clínica da doença varia bastante dependendo da idade do início das manifestações clínicas as formas de progressão da doença são: lentas, moderadas e avançadas7,8. A MPS VI, pode ter um variado espectro de fenótipos clínicos: há um aumento do diâmetro anteroposterior do crânio, fácies grosseiro, sobrancelhas grossas proptose ocular, nariz em sela, hipertrofia dos lábios, palato ogival, displasia dentária, macroglossia, pescoço curto, ombros estreitos, abdome globoso, dedos das mãos e dos pés em posição de semiflexão, prega palmar única, hipertricose generalizada, joelhos em valgo, pés planos e pele espessa e menos elástica.

Essas características nem sempre estão presentes em sua totalidade, pois existem formas graves que aparecem antes dos dois anos de idade e têm progressão rápida e existem também formas intermediárias a leves, nas quais a doença é diagnosticada mais tardiamente na adolescência ou mesmo na vida adulta, tendo um fenótipo mais brando5. Apesar das alterações de aparência, a doença não causa deficiência intelectual, diferentemente dos tipos I, II, III, e VII que podem apresentar deterioração cognitiva9.

Durante muitos anos, a MPS VI possuía um caráter progressivo e, infelizmente, fatal na maioria dos pacientes devido à ausência de tratamento específico. O transplante de medula óssea representou um avanço na terapia dessa doença, porém era associado a um alto risco de morbimortalidade. Recentemente, porém, o advento da terapia de reposição enzimática constituiu avanço significativo no tratamento dessa enfermidade, mudando a história natural dessa doença10.

O objetivo desse trabalho é relatar o histórico clínico de paciente com síndrome de Maroteaux-Lamy tratado há cerca de 15 anos e traçar um paralelo com o irmão também afetado por essa enfermidade, mas que faleceu antes de ter acesso à terapia de reposição enzimática (TRE). Neste relato, os dados foram obtidos através da revisão do prontuário com a autorização do comitê de ética do hospital e do paciente, obtida por assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, além de autorização por escrito para uso de fotos do paciente e seu irmão por parte da família.


RELATO DE CASO

Paciente, sexo masculino, filho de casal jovem e não-consanguíneo, iniciou a investigação para a doença de depósito lisossômico por apresentar características físicas semelhantes ao do irmão mais velho, que já estava em investigação para mucopolissacaridose.

Seu histórico gestacional não revelou intercorrências a genitora realizou os exames pré-natais que não demonstraram anormalidades.

Antecedentes de desenvolvimento neuropsicomotor não revelaram atraso significativo dos marcos motores. Não há relato de outras patologias de cunho hereditário, genitores eram jovens à época da concepção e não consanguíneos. Não houve exposição materna a agentes teratogênicos durante a gestação.

Paciente possuía, à época, poucos achados para a enfermidade (Figura 1), mas, em virtude do irmão mais velho afetado, foram realizados exames radiográficos e coletados exames bioquímicos voltados para a hipótese de síndrome de Maroteaux-Lamy (Tabela 1).


Figura 1. À esquerda, paciente do relato e, à direita, seu irmão mais velho falecido
Fonte: Os autores.




Exames bioquímicos confirmaram diagnóstico de MPS VI aos 2 anos e 6 meses de idade, em setembro de 1994. Irmão, contudo, foi a óbito por complicações respiratórias associadas à doença em 1995. Paciente continuou em acompanhamento com diversas especialidades e progressivamente foi evidenciando sinais somáticos da enfermidade (Figuras 2 e 3).


Figura 2. Paciente com 6 anos já apresentando traços somáticos da doença.
Fonte: Os autores.


Figura 3. Paciente, aos 14 anos, quando do momento da realização das primeiras infusões com enzima recombinante
Fonte: Os autores.



Com a progressão da doença, paciente evoluiu com déficit pôndero-estatural, contraturas articulares, valvulopatia, perda auditiva condutiva e, em virtude da hipertensão craniana crônica, desenvolveu atrofia óptica bilateral, perdendo a visão irreversivelmente.

Paciente iniciou uso de terapia de reposição enzimáticas (TRE) como parte do estudo clínico de fase 3 (duplo cego com 24 semanas de duração) que foi realizado no Brasil a partir de 20 de outubro de 2003. Após conclusão da fase estudo, paciente prosseguiu com uso de TRE na fase de extensão do estudo e, posteriormente, passou a utilizar de forma regular como parte do seu manejo terapêutico sem participar de estudo clínico.

Em cerca de 15 anos de tratamento com TRE, observou-se estabilidade do quadro clínico, com melhora de alguns parâmetros como perda auditiva, embora outros tenham se mantido com sequelas irreversíveis (como a perda visual).

Seu exame genético-clínico atual, com 28 anos de idade, revelou: estatura abaixo do percentil 3; peso entre os percentis 75 e 90; perímetro cefálico entre os percentis 50 e 97, fácies infiltrado, dorso nasal curto, raiz nasal achatada, lábios grossos, contratura e rigidez das articulações, mãos em garra, cabelo espesso em crânio, hérnia umbilical, reflexos osteotendíneos grau 3 em MMII e grau 3 em MMSS, clônus esgotável em membros inferiores, reflexo cutâneo-plantar em extensão.

No momento, paciente possui trabalho regular, conseguiu concluir curso superior e atualmente voltou a fazer faculdade.

Em relação aos exames complementares, estudo radiográfico evidenciou sinais de disostose multiplex; o ecocardiograma evidenciou valva mitral com folheto anterior espessado em grau acentuado, dupla lesão mitral; a eletroneuromiografia demonstrou a presença de múltiplos sítios de compressão nervosa, compatível com síndrome do túnel do carpo; a audiometria revelou perda auditiva condutiva.


DISCUSSÃO

A síndrome de Maroteaux-Lamy é causada pela deficiência da enzima arisulfatase B levando ao acúmulo de glicosaminoglicanos nos lisossomos das células do indivíduo acometido11. Este acúmulo pode levar a diversas manifestações clínicas (retardo do crescimento, dismorfias faciais, alterações motoras, deficiências audiovisuais, deformidades osteoarticulares e problemas cardiorrespiratórios) que diminuem a qualidade de vida do indivíduo sem alterar sua capacidade intelectual que se encontra preservada nessa enfermidade. As lesões cardiovasculares são frequentes na MPS VI e constituem importante causa de morbimortalidade11,12. Elas são decorrentes do depósito de proteoglicanos, dermatan sulfato e sulfato de condroítina no interstício do miocárdio e nos vasos sanguíneos. Pode haver um acúmulo de glicosaminoglicanos nas válvulas aórtica e/ou mitral, o que leva a uma degeneração valvar progressiva, resultando em uma estenose e/ou insuficiência. Consequentemente, com a progressão da degeneração valvar, pode ocorrer hipertrofia do ventrículo esquerdo, sua dilatação e, posteriormente, levar a uma congestão pulmonar e insuficiência cardíaca12.

Os primeiros sinais do acometimento do sistema osteoarticular são: déficit de estatura e rigidez de articulação. Essas alterações são progressivas e podem limitar os movimentos, devido ao envolvimento metafisário e ao espessamento e fibrose da capsula articular. Quanto maior a progressão da doença pior a mobilidade das articulações, assim, a avaliação da mobilidade do joelho, quadril e cotovelo, podem ser considerados um bom marcador de evolução da MPS VI. A coluna vertebral apresenta alterações nas vértebras e costelas, no qual pode-se evidenciar: cifose toracolombar, corpos vertebrais ovalados com protrusão óssea inferior. Nos punhos e mãos, pode haver alargamento e encurtamento dos metacarpos e falanges. No conjunto, esses achados são chamados genericamente de disostose multiplex, achado apresento pelo paciente do relato. Pode haver também contraturas flexionais de dedos (aspecto de mão em garra), joelhos ou ombros. Outra alteração encontrada é a síndrome do túnel do carpo (também observada em nosso paciente), pois o depósito de GAG leva a compressão do nervo mediano1,12.

Pacientes com MPS VI são mais propensos a apresentarem glaucoma em até 50% dos casos, além de opacificação progressiva da córnea presente em cerca de 95% dos pacientes. As anormalidades no nervo óptico podem ocorrer devido ao acúmulo de glicosaminoglicanos nas células ganglionares, compressão do nervo óptico devido ao espessamento da dura mater e também devido ao aumento da pressão intracraniana. Cerca de metade dos pacientes apresentam alteração no disco óptico com edema leve a moderado7,12. Essa compressão pode acarretar em perda visual definitiva, como o sucedido em nosso paciente.

Normalmente, a forma mais avançada da doença apresenta desde os primeiros anos da infância desaceleração progressiva do crescimento, deformidades esqueléticas, dismorfismo facial, obstrução das vias aéreas superiores e infecções de vias aéreas e otites recorrentes. Com o avançar da doença, os pacientes se tornam restritos à cadeira de rodas ou acamados devido às deformidades esqueléticas articulares, cardiovasculares, cegueira e compressão da medula espinhal. Sem o devido tratamento, os pacientes com doença de progressão rápida podem ter uma expectativa de vida abaixo de 20 anos. Esses pacientes, geralmente, morrem de doença cardiopulmonar, infecção ou complicações cirúrgicas13.

Em termos de terapia específica para a síndrome de Maroteaux-Lamy, duas estratégias foram desenvolvidas: o transplante de células-tronco hematopoéticas (transplante de medula óssea) e, mais modernamente, a terapia de reposição enzimática (TRE).

O transplante de medula óssea tem sido feito em casos raros nos últimos anos para o tratamento de MPS VI em pequenas séries de casos. Embora a enzima ASB dos leucócitos se elevem, as anormalidades esqueléticas continuam sendo difíceis de serem corrigidas e o transplante de medula óssea é considerado um tratamento limitado, devido ao seu alto risco de mortalidade (mortalidade de 30%)7. Recentemente, exames clínicos demonstraram impacto positivo na terapia de reposição enzimática com rhASB (galsulfase, Naglazyme®) que se tornou a primeira linha de tratamento farmacológico para a doença, principalmente quando iniciado precocemente, retardando o acometimento que afeta a função cardiovascular, dimorfismo facial, hepatomegalia e desenvolvimento físico, embora as anormalidades esqueléticas e oftalmológicas continuem progredindo10.

A introdução da reposição enzimática com galsulfatase foi um marco clínico para o tratamento dos pacientes com MPS VI, que previamente não contavam com muitas alternativas a não ser o transplante de medula óssea e o tratamento de suporte. A reposição enzimática demonstrou melhores resultados clínicos quando utilizada a dose de 1.0mg/kg de rhASB, muitos pacientes apresentaram melhora nos testes de resistência (teste de caminhada de 12 minutos e teste de escada de 3 minutos) e também uma redução dos níveis urinários de GAGs10.

Atualmente, muitos relatos de casos vêm demonstrando que o início da terapia de reposição enzimática em pacientes mais novos tem um benefício claro na prevenção da progressão dos aspectos fisiopatológicos da doença14. Em um estudo feito por Horovitz et al. (2015)15, foi feito o acompanhamento de 4 crianças sem parentesco com MPS VI, que iniciaram TRE no primeiro ano de vida (1mg/Kg IV semanalmente de galsulfase/Naglazyme® durante 6 anos) e que possuem irmãos mais velhos afetados com a mesma doença. O estudo demonstra que, mesmo com a terapia de reposição enzimática precoce, muitos aspectos clínicos da doença ainda persistem, porém quando comparamos algumas alterações sistêmicas dos pacientes que utilizaram a TRE por 6 anos, como manifestações do sistema nervoso, cardíacas e ortopédicas em relação aos seus irmãos, observa-se que estas encontram-se em um grau de progressão diferente (mais lenta)15. Assim, o estudo relata que a gravidade da doença pode estar relacionada com a idade de início do tratamento, pois demonstrou-se que os 4 pacientes que iniciaram TRE no primeiro ano de vida tiveram uma progressão da doença mais lenta que a de seus irmãos15.

O início precoce do tratamento de reposição enzimática (TRE) tem demonstrado benefícios clínicos em pacientes com MPS VI. Um estudo feito por Furujo et al. (2011)16 descreve o acompanhamento durante 10 anos de 2 irmãos japoneses, ambos com MPS VI que iniciaram TRE com infusões semanais de 1mg/kg de galsulfase/Naglazyme®. O irmão mais velho iniciou o tratamento com 5.6 anos, chegou a puberdade e embora tenha tido um surto de crescimento, sua altura ficou 3 desvios abaixo do esperado na curva de crescimento16. Ele apresentava as características fenotípicas da doença e, embora sua deformidade esquelética tenha se mantido, exibiu uma melhora significativa na movimentação articular do ombro e praticamente não houve perda da função cardíaca e da audição. Em contraste, o irmão mais novo que iniciou o tratamento com 6 semanas de idade praticamente não apresentou os sintomas típicos da MPS VI como dismorfismo facial, hepatoesplenomegalia e prejuízo auditivo. Sua mobilidade articular foi preservada, porém alterações esqueléticas como a mão em garra foram observadas. Ambos os irmãos apresentaram uma progressiva opacidade da córnea. O acompanhamento desses 2 irmãos demonstra que o início do TRE em recém-nascidos pode ser bem tolerado e contribuir para a prevenção ou o possível retardo da progressão da doença, alguns dos sintomas clínicos podem ser mais brandos ou praticamente inexistentes, porém as alterações esqueléticas e oftalmológicas mantiveram-se presentes16.

Mesmo que nosso paciente tenha sido um dos primeiros pacientes a iniciar a terapia de reposição enzimática no Brasil em 2003, o paciente não pode se beneficiar totalmente do tratamento, devido à sua idade na época (13 anos) e a progressão de algumas manifestações da doença que são consideradas irreversíveis como o seu déficit pôndero-estatural, as contraturas articulares e a atrofia óptica bilateral bem como a opacidade de córnea. Mesmo assim, a qualidade de vida do paciente mudou muito após o início o TRE, e uma das mudanças clínicas mais significativas do tratamento foi a recuperação de grande parte de sua audição. Com o tratamento adequado, o paciente concluiu um curso superior e atualmente voltou a fazer faculdade. Ainda que tenha algumas manifestações sistêmicas da doença presentes, vive uma vida relativamente normal com sua família.

Foi feito um estudo por Harmatz et al. (2005)13 com 10 pacientes com idades entre 6 e 22 anos, sendo que 7 deles tinham a forma de evolução rápida da doença foi realizado para avaliar o endurance (resistência à atividade física), mobilidade das articulações e alguns parâmetros bioquímicos. Após 24 semanas de tratamento, os pacientes obtiveram em média uma melhoria de 155-m (98%) no teste de caminhada por 12 minutos, apresentaram também uma melhora de 64-m (62%) no sexto minuto da caminhada de 12 minutos e apresentaram melhora de 110% no teste de subir escada em 3 minutos. Foram observadas melhorias adicionais após 48 semanas de tratamento incluindo valores médios de 221-m (138%) no teste de caminhada por 12 minutos e 75-m (80%) no sexto minuto do teste de caminhada de 12 minutos e uma melhora de 147% no teste de subir escada em 3 minutos. No questionário de dor articular e rigidez a pontuação melhorou em ao menos 50% na semana 24 e se manteve na semana 48, no entanto, houve pequenas melhoras na amplitude de movimento da articulação do ombro (<10 graus) e no tempo necessário para ficar em pé, andar e virar (expanded timed get up and go test)13.

Nosso paciente também apresentou melhoras no endurance. Antes de iniciar o tratamento ele não possuía forças para se manter em pé, utilizando assim uma cadeira de rodas, após a TRE, o paciente abandonou a cadeira de rodas e agora possui capacidade de deambulação independente. Entretanto, pela idade tardia de início do tratamento, a amplitude de movimento das articulações não obteve melhora significativa.

A TRE trouxe muitos benefícios e aumento da sobrevida para os pacientes, o que implica em uma mudança do perfil de morbimortalidade. Porém, ainda existem muitas limitações, uma delas é a mielopatia da compressão medular que ocorre com ou sem terapia. Com o acesso ao tratamento, os pacientes estão tendo uma maior expectativa de vida e muitos necessitarão da cirurgia para a correção da compressão medular. Antes da TRE, os pacientes morriam de problemas cardiorrespiratórios, mas hoje com o tratamento eles tem mais problemas relacionados a compressão medular11.

A compressão medular é uma complicação grave da MPS VI e normalmente surge da estenose do canal vertebral secundária a malformações do canal vertebral, da base do crânio e/ou acúmulo de GAG nos tecidos ao redor da medula espinhal. A compressão é causada por espessamento difuso da dura-máter e de tecidos moles extra durais na região cervical. Instabilidade atlantoaxial é outra causa importante de compressão da medula cervical especialmente em pacientes com MPS VI17.

A compressão geralmente ocorre na região cervical e pode envolver múltiplos níveis e pode também levar a mielopatia ou mielomalacia compressiva. A compressão da medula cervical é potencialmente debilitante e com risco de vida17. A ressonância magnética é considerada o exame padrão ouro para o diagnóstico de compressão da medula cervical. Sinais precoces de mielopatia podem ser detectados por exame clínico neurológico. As intervenções cirúrgicas geralmente envolvem descompressão, no entanto, o manejo das vias aéreas e a anestesia durante a cirurgia são desafios18.

Não é possível se obter o dado preciso da faixa etária do início da compressão da medula cervical, porque a maioria dos pacientes descobrem a compressão medular no primeiro exame de ressonância magnética. Entretanto, como mostrado no estudo de Solanki et al. (2016)18, a compressão da medula cervical pode se desenvolver precocemente, em uma amostra de 4 crianças menores de 2 anos de idade foram relatados ter compressão já na primeira ressonância magnética. Aproximadamente 75% dos indivíduos avaliados por ressonância magnética tiveram a compressão medular cervical documentada, indicando a frequência da compressão cervical18. Mesmo entre os indivíduos sem sinais de compressão na ressonância magnética quase todos (93,9%) apresentavam anormalidades da coluna cervical, como estenose e vertebras dismórficas. Em conjunto, esses achados sugerem que todos os pacientes com MPS VI têm risco significativo de desenvolver compressão da coluna cervical em idade jovem e ressaltam a importância da ressonância magnética de rotina no momento do diagnóstico da síndrome de Maroteaux-Lamy18.

A avaliação neurológica detalhada deve ser realizada em pacientes tratados com TRE especialmente no período de melhora do quadro osteoarticular. A TRE não teve êxito em prevenir a mielopatia cervical e é necessária a descompressão cirúrgica a fim de alcançar um resultado satisfatório e pode ser crucial realizar a cirurgia em idade precoce17.

A presença de anormalidades neurológicas como quadriparesia e/ou espasticidade, retenção urinária secundária à bexiga neurogênica, hiperreflexia com ou sem clônus, ou uma história de diminuição da tolerância ao exercício ou dificuldade em levantar-se deve alertar o médico para possível necessidade de cirurgia cervical descompressiva, pois esta possibilita uma melhora neurológica significativa17.

As decisões e abordagens terapêuticas variam e dependem do quadro clínico, testes funcionais e achados radiológicos. Fatores como recursos institucionais e experiência do médico desempenham um papel significativo na determinação de quando realizar a cirurgia. A mortalidade da cirurgia está relacionada à anestesia e pode ocorrer durante ou após o procedimento de descompressão cervical. Em um caso envolvendo um paciente de 12 anos houve episódios de dessaturação seguida de parada cardíaca que ocorreu 36 horas após a cirurgia. Em outro caso a falha na intubação resultou em hipóxia e morte em um paciente de 13 anos. Ambos os casos ilustram o alto risco anestésico de indivíduos com MPS VI. Vias aéreas obstruídas, DPOC, problemas cardíacos, instabilidade cervical e mielopatia contribuem para o aumento do risco de complicações ligadas à anestesia. O pré-operatório cuidadoso, antecipação de problemas e o envolvimento de anestesistas com o médico que acompanha o caso podem ser fundamentais para minimizar o risco de mortalidade perioperatória18.

Portanto, a TRE modificou positivamente o curso da doença, porém ainda não representa uma cura. Embora tenha melhorado significativamente a qualidade de vida dos pacientes com MPS VI, como exposto no caso do paciente, evitando complicações fatais, ainda há várias questões em aberto. Entre elas, o fato de que a mielopatia vem se tornando uma realidade para vários pacientes devido à atual longevidade deles11. Há a necessidade de capacitação de mais neurocirurgiões e ortopedistas de coluna para poder fazer a intervenções cirúrgicas adequadas, pois muitos pacientes estão falecendo durante ou após as cirurgias de descompressão medular visto que muitas das complicações apresentadas por esses pacientes não têm sua fisiopatologia completamente esclarecida, além do próprio desafio de complicações associadas ao procedimento anestésico17,18.


REFERÊNCIAS

1. Turtelli CM. Manifestações radiológicas da mucopolissacaridose tipo VI. Radiol Bras. 2002 Out;35(5):311-4.

2. Borges MF, Tavares FS, Silva PCL, Oliveira ZAR, Ballarin MAS, Gomes RA, et al. Mucopolissacaridose tipo VI (síndrome de Maroteaux-Lamy): avaliação endócrina de três casos. Arq Bras Endocrinol Metab. 2003 Fev;47(1):87-94.

3. Costa-Motta FM, Bender F, Acosta AX, Abe-Sandes K, Machado T, Bomfim T, et al. A community-based study of mucopolysaccharidosis type VI in Brazil: the influence of founder effect, endogamy and consanguinity. Hum Heredity. 2014 Jul;77(1-4):189-96.

4. Cardoso-Santos A, Azevedo ACMM, Fagondes S, Burin MG, Giugliani R, Schwartz IVD. Mucopolysaccharidosis type VI (Maroteaux-Lamy syndrome): assessment of joint mobility and grip and pinch strength. J Pediatr (Rio J). 2008 Abr;84(2):130-5.

5. Harmatz P, Shediac R. Mucopolysaccharidosis VI: pathophysiology, diagnosis and treatment. Front Biosci (Landmark Ed). 2017 Jan;22(3):385-406.

6. Neufeld EF, Muenzer J. The mucopolysaccharidoses. In: Scriver CR, Beaudet AL, Sly WS, Valle D (eds.). The metabolic and molecular bases of inherited disease. New York: McGraw-Hill; 2001. p. 3421-52.

7. Valayannopoulos V, Nicely H, Harmatz P, Turbeville S. Disease name with synonyms. Orphanet J Rare Dis. 2010 Abr;5:5.

8. Swiedler SJ, Beck M, Bajbouj M, Giugliani R, Schwartz I, Harmatz P, et al. Threshold effect of urinary glycosaminoglycans and the walk test as indicators of disease progression in a survey of subjects with mucopolysaccharidosis VI (Maroteaux-Lamy syndrome). Am J Med Genet A. 2005 Abr;134(2):144-50.

9. Walkley SU, Thrall MA, Haskins ME, Mitchell TW, Wenger DA, Brown DE, et al. Abnormal neuronal metabolism and storage in mucopolysaccharidosis type VI (Maroteaux-Lamy) disease. Neuropathol Appl Neurobiol. 2005 Out;31(5):536-44.

10. Lourenço CM, Giugliani R. Evaluation of galsulfase for the treatment of mucopolysaccharidosis VI (Maroteaux-Lamy syndrome). Expert Opin Orphan Drugs. 2014;2(4):407–17.

11. Mitchell, John, et al. “Unique medical issues in adult patients with mucopolysaccharidoses.” European journal of internal medicine 34 (2016): 2-10.

12. Mizuno CA, Figueiredo JB, Tavares I, Teza V, Tai- LGN. Aspectos clínicos da mucopolissacaridose tipo VI * Clinical aspects of mucopolysaccharidosis type VI. Rev Bras Clin Med. 2010;8(4):356–61.

13. Harmatz, Paul, et al. “Direct comparison of measures of endurance, mobility, and joint function during enzyme-replacement therapy of mucopolysaccharidosis VI (Maroteaux-Lamy syndrome): results after 48 weeks in a phase 2 open-label clinical study of recombinant human N-acetylgalactosamine 4-sulfatase.” Pediatrics 115.6 (2005): e681-e689.

14. J.J. McGill, A.C. Inwood, D.J. Coman, M.L. Lipke, D. de Lore, S.J. Swiedler, J.J. Hopwood, Enzyme replacement therapy for mucopolysaccharidosis VI from 8 weeks of age–a sibling control study, Clin. Genet. 77 (2010) 492–498, http://dx.doi.org/10.1111/j.1399-0004.2009.01324.x.

15. Horovitz DDG, Acosta AX, De Rosso Giuliani L, Ribeiro EM. Mucopolysaccharidosis type VI on enzyme replacement therapy since infancy: Six years follow-up of four children. Mol Genet Metab Reports [Internet]. 2015;5:19–25. Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.ymgmr.2015.09.002

14. Furujo, Mahoko, et al. “Enzyme replacement therapy attenuates disease progression in two Japanese siblings with mucopolysaccharidosis type VI.” Molecular genetics and metabolism 104.4 (2011): 597-602.

17. Jurecka, Agnieszka, et al. “Spinal cord compression in Maroteaux-Lamy syndrome: case report and review of the literature with effects of enzyme replacement therapy.”Pediatric neurosurgery 48.3 (2012): 191-198.

18. Solanki, Guirish A., et al. “Cervical cord compression in mucopolysaccharidosis VI (MPS VI): Findings from the MPS VI Clinical Surveillance Program (CSP).” Molecular genetics and metabolism 118.4 (2016): 310-318.










1. Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto, Faculdade de Medicina - Ribeirão Preto - SP - Brasil
2. Universidade Católica de Brasília (UCB), Faculdade de Medicina - Brasília - DF - Brasil.

Endereço para correspondência:

Charles Marques Lourenco
Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto
Rua Abrahão Issa Halach, nº 980, Ribeirânia
Ribeirão Preto, SP, Brasil. CEP: 14096-160
E-mail: charlesgenetica@gmail.com

Data de Submissão: 21/02/2020
Data de Aprovação: 10/09/2020