ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 4

Dor abdominal crônica em pediatria e consumo excessivo de FODMAPS - relato de caso

A child on a high-FODMAP diet with chronic abdominal pain

RESUMO

A dor abdominal afeta até 45% das crianças de 4 a 18 anos. Os distúrbios funcionais são o principal grupo de causas. Não existe consenso sobre uma investigação “mínima” para o manejo de pacientes pediátricos com dor abdominal crônica. Este relato de caso apresenta e discute um caso de dor abdominal crônica de longa evolução em paciente pediátrico com uma ampla investigação complementar prévia, em que uma avaliação clínica detalhada permitiu a detecção de dieta inadequada com alto conteúdo de FODMAP e, assim, foram estabelecidas intervenções dietéticas com remissão dos sintomas. Este relato demonstra como a anamnese completa e o exame físico cuidadoso são essenciais na elucidação da etiologia da dor abdominal.

Palavras-chave: Pediatria. Dor Abdominal. Carboidratos.

ABSTRACT

Abdominal pain affects up to 45% of children aged 4 to 18 years. Functional disorders rank as the main cause. There is no consensus over what constitutes “minimal” investigation for the management of pediatric patients with chronic abdominal pain. This case report presents and discusses a case of long-term chronic abdominal pain involving a child previously submitted to extensive complementary investigation, in which detailed clinical evaluation found the patient was in a high-FODMAP diet. The introduction of dietary interventions led to symptom remission. This report demonstrates how thorough anamnesis and careful physical examination are essential in elucidating the etiology of abdominal pain.

Keywords: Pediatrics. Abdominal Pain. Carbohydrates.


INTRODUÇÃO

Em 1958, Apley definiu a “dor abdominal recorrente” como dor abdominal em crianças com 3 anos ou mais de idade, que apresentaram pelo menos três episódios de dor suficientemente severos para afetar as atividades diárias por um período de pelo menos três meses1. Atualmente, um conceito mais amplo de “dor abdominal crônica” é mais aceito e inclui: dor abdominal intermitente ou constante, funcional ou orgânica, presente por pelo menos dois meses2. Esta entidade afeta até 45% das crianças3. Os distúrbios funcionais são o principal grupo de causas. Entre eles, a constipação funcional e enxaqueca abdominal são os mais frequentes4.

Existe uma ampla gama de diagnósticos diferenciais, incluindo, entre outros: causas funcionais, doença do refluxo gastroesofágico, constipação, distúrbio da motilidade intestinal, alergias alimentares, doença péptica e infecção por H. pylori, doença celíaca, doença inflamatória intestinal, dismenorreia, pancreatite e doenças hepatobiliares.

A fisiopatologia da dor abdominal é complexa: inflamação, infecções e alergias podem atuar como sensibilizadores, alterando a maneira como a dor é processada. A coexistência de diferentes etiologias e mecanismos para a dor deve ser considerada. Os sintomas funcionais também ocorrem em pacientes com doenças gastrointestinais orgânicas: um estudo internacional recente relatou prevalência semelhante de dor abdominal crônica em pacientes pediátricos com doença celíaca em comparação com um grupo controle5.

Dentre as intervenções dietéticas mais estudadas para dor abdominal funcional em crianças, está a dieta com baixo teor de FODMAPs. Este termo é um acrônimo para “Fermentable Oligosaccharides, Disaccharides, Monosaccharides and Polyols” que foi definido por um grupo da Universidade Monash, em Melbourne, na Austrália6, e que se refere a carboidratos não digeríveis com alta osmolaridade e/ou ação como substratos fermentados rapidamente por microrganismos intestinais.


RELATO DE CASO

Criança do sexo feminino, de 7 anos de idade, com dor abdominal havia 4 anos, com acompanhamento prévio de gastroenterologista pediátrico em outro país, onde foi realizada ampla investigação, incluindo endoscopia digestiva alta e avaliação de marcadores sorológicos para doença celíaca, com resultados inconclusivos. A dor era localizada em região periumbilical, sem irradiação, de intensidade moderada, sem relação com o hábito intestinal, e sua frequência variava de 1 a 3 vezes por semana.

A paciente não apresentava história de náusea, vômito, febre, sangue nas fezes, queixas urinárias, perda de peso ou despertar noturno com a dor. Ocasionalmente, apresentava distensão abdominal e fezes amolecidas (tipo 4 na escala de Bristol modificada)7. A história familiar era negativa para doença inflamatória intestinal (DII), mas seu avô materno foi diagnosticado com síndrome do intestino irritável (SII).

Quando questionado sobre sua dieta típica, foi relatado que sua rotina alimentar era pouco variada e que seus alimentos de maior preferência incluíam principalmente feijões, lentilhas, maçãs e produtos à base de soja. Ela havia cessado o consumo de leite e reduzido o consumo de glúten porque estes eram, embora não consistentemente, desencadeadores de sua dor. Quando questionado especificamente sobre o consumo de sucos e ingestão de líquidos, foi relatada a ingestão de mais de 1 litro de suco artificial pordia. Ao examefísico,apresentava-sebemnutrida, com distensão abdominal e aumento dos ruídos hidroaéreos, além de timpanismo aumentado, porém sem sensibilidade. Foi recomendada uma dieta pobre em FODMAP, com redução consumo de suco. No seguimento observou-se inicialmente melhora significativa dos sintomase normalizaçãodo exame físico abdominal, com adesão parcial às recomendações.

Posteriormente, houve resolução completa da dor e melhora da consistência das fezes, que se tornaram bem formadas e macias (tipo 3 na escala de Bristol modificada)7.


DISCUSSÃO

Apesar da importância da dor abdominal na pediatria, atualmente não há consenso sobre uma investigação “mínima” ou qualquer algoritmo validado sobre como investigá-la e/ ou administrá-la. A necessidade da dosagem de anticorpos IgA e anti-transglutaminase para descartar a doença celíaca e uma radiografia abdominal para avaliar a presença de fezes/ sinais de retenção fecal, quando uma causa provável não é identificada, permanece controversa. O teste de calprotectina fecal, amplamente utilizado para avaliação de pacientes com DII, foi recentemente estudado como uma ferramenta potencial para distinguir distúrbios gastrointestinais funcionais e doenças gastrointestinais como esofagite eosinofílica, doença do refluxo gastroesofágico, alergias alimentares e DII8.

Houve um debate sobre o tema da ingestão de suco após 2017. A Academia Americana de Pediatria lançou recomendações contraindicando o consumo de suco de frutas antes de 1 ano de idade e limitando-o a 120 ml para crianças entre 1 e 3 anos, 175 ml para crianças entre 4 e 6 anos e 240 ml para crianças e adolescentes entre 7 e 18 anos. Este documento também afirma que é obrigatório que o pediatra caracterize a ingestão de suco de frutas em crianças com desnutrição, sobrepeso ou obesidade, diarreia crônica, flatulência excessiva, dor abdominal ou desconforto gástrico9,10.

O consumo excessivo de carboidratos pode estar relacionado à dor abdominal crônica em pediatria e embora o termo FODMAP inclua diversos tipos de alimentos, cada carboidrato mal absorvido tem um efeito diferente no intestino.

Os principais mecanismos propostos são: aumento do volume de água no intestino delgado, produção colônica de gases e alteração da motilidade intestinal6,11. Alimentos como sucos de frutas, feijão, lentilha, maçã e soja, presentes em grande quantidade na dieta da paciente do caso apresentado, possuem conteúdo FODMAP moderado a alto, conforme mostrado na Tabela 1.




A dieta pobre em FODMAP é estudada principalmente em adultos com SII, cuja eficácia na melhora dos sintomas é relatada em até 75% dos pacientes, reduzindo pelo menos metade de suas queixas12. Este tipo de dieta deve ser recomendada por um profissional de saúde, em casos selecionados, e idealmente supervisionada por um nutricionista. Se não houver melhora dos sintomas com restrição inicial de 6 a 8 semanas, a dieta deve ser interrompida, pois os sintomas devem ter outra etiologia13.Se houver resposta, os alimentos excluídos devem ser reintroduzidos em pequenas quantidades e de maneira gradativa.

A dieta com baixo teor de FODMAP tem algumas ressalvas e limitações: não há classificação padronizada do conteúdo de FODMAPs nos alimentos; muitos alimentos não estão listados; as restrições alimentares extensas e prolongadas na dieta podem levar à ingestão insuficiente de fibras, carboidratos, cálcio, ferro, zinco, folato, vitaminas B e D, antioxidantes naturais. Por fim, as consequências deste tipo de dieta sobre o microbioma e o metabolismo colônico são pouco compreendidas e a ausência de marcadores sorológicos para doenças funcionais e a impossibilidade de avaliar o efeito placebo dificultam a avalição objetiva do seu resultado14.

O papel da dieta com baixo teor de FODMAP na dor abdominal crônica pediátrica é amplamente discutido e vários fatores devem ser considerados, como ingestão de carboidratos, esvaziamento gástrico e motilidade intestinal, fatores relacionados ao microbioma e ao hospedeiro, entre outros. Muitos aspectos devem ser considerados para a orientação desta dieta para essa população específica, incluindo aspectos psicológicos, comportamentais, sociais, familiares e aspectos biológicos associados ao crescimento e desenvolvimento15.


CONCLUSÃO

O papel dos FODMAPs na dor abdominal crônica na população pediátrica ainda não é bem estabelecido, sendo necessários mais estudos sobre o tema, porém existem evidências de que o consumo excessivo deste grupo de carboidratos pode estar associado à dor abdominal em uma parte destes pacientes. As abordagens diagnósticas e terapêuticas devem ser individualizadas. A prescrição da dieta com baixo teor de FODMAP deve ser avaliada por equipe multidisciplinar, considerando de forma ampla todos os aspectos do paciente, e, uma vez instituída, deve ser reavaliada conforme a evolução do paciente.


REFERÊNCIAS

1. Apley J, Naish N. Recurrent abdominal pains: a field survey of 1,000 school children. Arch Dis Child. 1958 Apr;33(168):165-70.

2. American Academy of Pediatrics Subcommittee on Chronic Abdominal Pain. Chronic abdominal pain in children. Pediatrics. 2005;115(3):812-5.

3. Boey CC, Yap SB. An epidemiological survey of recurrent abdominal pain in a rural Malay school. J Paediatr Child Health. 1999;35(3):303-5.

4.Lewis ML, Palsson OS, Whitehead WE, van Tilburg MAL. Prevalence of Functional Gastrointestinal Disorders in Children and Adolescents. J Pediatr. 2016;177:39-43.e3.

5. Saps M, Sansotta N, Bingham S, Magazzu G, Grosso C, Romano S, et al. Abdominal Pain-Associated Functional Gastrointestinal Disorder Prevalence in Children and Adolescents with Celiac Disease on Gluten-Free Diet: A Multinational Study. J Pediatr. 2017;182:150-4.

6. Gibson PR, Shepherd SJ. Personal view: food for thought--western lifestyle and susceptibility to Crohn’s disease. The FODMAP hypothesis. Aliment Pharmacol Ther. 2005;21(12):1399-409.

7. Lane MM, Czyzewski DI, Chumpitazi BP, Shulman RJ. Reliability and validity of a modified Bristol Stool Form Scale for children. J Pediatr. 2011 Sep;159(3):437-41.e1. DOI: 10.1016/j.jpeds.2011.03.002.

8. Pieczarkowski S, Kowalska-Duplaga K, Kwinta P, Tomasik P, Wędrychowicz A, Fyderek K. Diagnostic Value of Fecal Calprotectin (S100 A8/A9) Test in Children with Chronic Abdominal Pain. Gastroenterol Res Pract. 2016;2016:8089217.

9. Harrisson P. AAP Guideline: No Fruit Juice for infants. Medscape; 2017. Disponível em: https://www.medscape.com/viewarticle/880492

10. Heyman MB, Abrams SA; SECTION ON GASTROENTEROLOGY, HEPATOLOGY, AND NUTRITION; COMMITTEE ON NUTRITION. Fruit Juice in Infants, Children, and Adolescents: Current Recommendations. Pediatrics. 2017;139(6):e20170967.

11. Spiller R. How do FODMAPs work? J Gastroenterol Hepatol. 2017;32(Suppl. 1):36-9.

12. O’Keeffe M, Lomer MC. Who should deliver the low FODMAP diet and what educational methods are optimal: a review. J Gastroenterol Hepatol. 2017;32(Suppl 1):23-6.

13. Federação Brasileira de Gastroenterologia. Dieta com baixo teor de
fodmaps. [Internet]. São Paulo: FBG; 2017. Disponível em: http://www.fbg.org.br/Publicacoes/noticia/detalhe/5

14. Catassi G, Lionetti E, Gatti S, Catassi C. The Low FODMAP Diet: Many Question Marks for a Catchy Acronym. Nutrients. 2017;9(3):292.

15. Iacovou M. Adapting the low FODMAP diet to special populations: infants and children. J Gastroenterol Hepatol. 2017;32(Suppl. 1):43-5.










1. Hospital de Clínicas - UNICAMP, Gastroenterologia Pediátrica - Campinas - São Paulo - Brasil
2. Hospital for Sick Children, Pediatric Gastroenterology - Toronto - Ontario - Canadá

Endereço para correspondência:
Maria Angela Bellomo Brandão.
Hospital de Clínicas - UNICAMP
Rua Vital Brasil, nº 251, Cidade Universitária
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E-mail: angbell@unicamp.br

Data de Submissão: 17/08/2020
Data de Aprovação: 30/08/2020