ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Síndrome de hiperferritinemia e catarata hereditária: relato de caso

Hereditary hyperferritinemia-cataract syndrome: a case report

RESUMO

INTRODUÇÃO: O aumento do nível sérico da ferritina é um achado frequente na prática clínica, podendo ter diversas causas, como doenças inflamatórias, neoplásicas e hepatopatias. Além disso, a ferritina representa os estoques de ferro do organismo. A síndrome da hiperferritinemia e catarata hereditária (SHCH) é uma patologia rara, que faz parte do diagnóstico diferencial das causas de aumento do nível sérico de ferritina, cujo diagnóstico tem um grande impacto para o paciente, pois evita intervenções terapêuticas desnecessárias, como as sangrias.
DESCRIÇÃO: No presente trabalho, é relatado um caso SHCH em um pré-escolar hígido, no qual o achado de elevação do nível sérico da ferritina foi obtido em um exame ao acaso. A criança foi submetida a uma extensa propedêutica diagnóstica, realizada para afastar outras causas.
DISCUSSÃO: A prevalência da SHCH é desconhecida no Brasil, e a sua penetrância variável pode dificultar a percepção do caráter hereditário. Assim, esse relato de caso e revisão da literatura tem a importância de alertar sobre a existência da patologia, para que pediatras e demais profissionais sejam capazes de realizar esse diagnóstico.

Palavras-chave: Ferritinas Catarata, Doenças raras.

ABSTRACT

INTRODUCTION: The increase in ferritin is a common finding in clinical practice, and may have several causes, such as inflammatory, neoplastic and liver diseases. In addition, ferritin represents the bodys iron stores. The syndrome of hereditary hyperferritinemia and cataract (SHHC) is a rare pathology, which is part of the differential diagnosis of the causes of increased ferritin. The diagnosis of SHHC has a great impact for the patient, as it avoids unnecessary therapeutic interventions, such as bleeding.
DESCRIPTION: In the present study, a case of SHHC in a healthy preschooler is reported, in which the finding of elevated ferritin was obtained in an occasional test. The child was submitted to an extensive diagnostic procedure, performed to rule out other causes.
DISCUSSION: The prevalence of SHHC is unknown in Brazil, and its variable penetrance can make it difficult to perceive the hereditary character. Thus, this case report and literature review has the importance of alerting about the existence of the pathology, so that pediatricians and other health professionals can make this diagnosis.

Keywords: Ferritins, Cataract, Rare diseases.


INTRODUÇÃO

O aumento do nível sérico de ferritina é um achado frequente em pacientes examinados por diferentes motivos, visto que a ferritina se comporta como proteína de fase aguda, elevando-se em doenças inflamatórias, neoplásicas e em diversas hepatopatias. Fisiologicamente, a ferritina é responsável pelo armazenamento do ferro no espaço intracelular, sendo que apenas quantidades pequenas de ferritina circulam no plasma, resultando em uma ferritinemia que normalmente oscila entre 50 e 350μg/l. Na ausência de situações clínicas que levem a um aumento reacional dos níveis de ferritina, ela é um marcador confiável dos depósitos orgânicos de ferro. No entanto, em algumas condições genéticas, o aumento dos níveis séricos de ferritina não se acompanha de aumento dos estoques de ferro nos tecidos1,2.

A ferritina é formada pelas subunidades H e L, que são reunidas para formar uma concha de 24 unidades ao redor de um núcleo de ferro. Ambas as unidades têm um papel importante no armazenamento, na distribuição intracelular e no metabolismo do ferro. A subunidade H parece ser essencial para a incorporação do ferro dentro da concha proteica, enquanto a subunidade L facilita a formação do núcleo de ferro. Embora sejam codificadas por genes diferentes, a síntese de ambas as subunidades é controlada por uma mesma proteína citoplasmática, a proteína regulatória de ferro (iron regulatory protein, IRP), que se liga ao elemento responsivo a ferro (iron-responsive element, IRE) presente nas subunidades3. Estudos in vitro demostraram que sequências de nucleotídeos do IRE são essenciais para a interação IRE-IRP, e que a deleção ou substituição de uma única base nitrogenada do IRE leva a uma redução substancial da afinidade entre essas moléculas. Na síndrome da hiperferritinemia e catarata hereditária (SHCH), mutações pontuais no IRE da subunidade L da ferritina, codificada pelo gene FLT, resultam numa perda de afinidade entre IRE e IRP, levando a um aumento de produção da subunidade L3,4. O excesso de cadeias L forma agregados moleculares de ferritina incapazes de transportar ferro. Essas moléculas se depositam no cristalino, que alcança valores de 10 a 15 vezes acima dos normais, e leva à formação de cataratas precoces1,4. Não ocorre deposição em outros órgãos e tecidos2.

O excesso de cadeias L no cristalino leva à precipitação de outras proteínas dessa estrutura, e as próprias cadeias L floculam, originando a catarata, que é frequentemente precoce, porém não congênita1. A morfologia da catarata tem gravidade variável, porém é consistente e distinta de outros tipos de catarata: aspecto em girassol, predominantemente subcapsular posterior, iniciando-se na periferia e progredindo em direção ao centro do cristalino1,4. Embora a doença tenha um padrão de herança autossômico dominante, já foram relatados casos de apresentação esporádica, sugerindo a presença de uma mutação de novo4. A penetrância da síndrome é muito variável, tanto em relação aos níveis de ferritina quanto à idade de formação das cataratas, que podem estar presentes na primeira infância ou não surgir até a quinta década de vida1.

Os primeiros relatos de caso dessa síndrome foram publicados em 1995, por dois grupos distintos, na Itália e França. Desde então, várias mutações foram identificadas em famílias de diferentes países, mas o conhecimento sobre a doença ainda é bastante limitado5. Assim, o objetivo deste trabalho é relatar um caso de SHCH, e realizar revisão da literatura disponível. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob a CAAE número 28556820.8.0000.5133.


RELATO DE CASO

Um pré-escolar de 4 anos foi encaminhado ao serviço de Hematologia do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU-UFJF) devido à ferritinemia de 1056ng/ml, em um exame laboratorial realizado sem indicação específica. A elevação dos níveis séricos de ferritina foi confirmada em outro laboratório. O paciente não apresentava queixas ou sintomas, e seu exame físico estava sem alterações. Não havia história pregressa nem familiar de talassemia, transfusão de hemocomponentes ou uso de medicamentos que contenham ferro.

A avaliação laboratorial revelou: hemograma e reticulócitos sem alterações, eletroforese de hemoglobina normal, enzimas e função hepática normais, sorologias para HIV e hepatite B e C negativas, função renal normal. A saturação de transferrina era de 21%. Uma ressonância magnética (RM) de abdômen superior com pesquisa para impregnação de ferro hepático não revelou alterações. A biópsia hepática não mostrou alterações, sendo negativa para a presença de depósitos hepáticos de ferro pela coloração de Pearls.

Uma avaliação oftalmológica mostrou presença de vacúolos subcapsulares anteriores e posteriores em eixo óptico de cristalino bilateralmente, sendo levantada a hipótese de SHCH (Figura 1). A acuidade visual foi de 20/20 no olho direito e 20/40 no olho esquerdo, com fundo de olho sem alterações. Os familiares de primeiro grau (pais e irmã) foram triados para a presença de hiperferritinemia, mas os resultados foram normais. Não havia história de catarata em familiares com menos de 60 anos de idade.


Figura 1. Presença de vacúolos subcapsulares (seta) anteriores e posteriores em eixo óptico de cristalino.



A pesquisa genética para mutações em genes de hemocromatose (HFE, HFE2/HJV, HAMP, TFR2) foi negativa, e foi encontrada uma mutação variante sem significado clínico para o gene SLC40A1. Não foi possível realizar a pesquisa de mutação do gene FLT.

As dosagens de ferritina sérica do paciente oscilam entre aproximadamente 1000 e 1800ng/ml, sempre com os demais exames normais, e sem qualquer sintoma clínico. O paciente realiza avaliações oftalmológicas frequentes, no momento sem indicação de intervenção.


DISCUSSÃO

A maioria dos pacientes com SHCH é diagnosticada após uma investigação para hiperferritinemia4,5. Não é infrequente que pacientes com SHCH sejam inicialmente diagnosticados, de forma errônea, como portadores de hemocromatose, sendo submetidos a intervenções propedêuticas e terapêuticas desnecessárias4. Isso se torna mais problemático se considerarmos que é possível ter uma mutação concomitante no gene HFE, que é o gene mais frequentemente afetado na hemocromatose5.

Assim, considera-se que a SHCH deve ser considerada como possibilidade diagnóstica em todo paciente com elevação inexplicada dos níveis séricos de ferritina na ausência de sinais de acúmulo de ferro tecidual6.

A catarata precoce, que ocorre antes dos 40 anos de idade, é o sinal mais frequentemente observado na SHCH6,7. O sintoma mais frequente da catarata precoce é um ofuscamento visual, que pode variar de um desconforto leve até uma fotofobia intensa, geralmente se iniciando na segunda década de vida4. Na primeira década de vida, os sintomas oculares, quando presentes, são vagos, de apresentação gradual e frequentemente não notados até que uma catarata óbvia esteja instalada4,7.

No caso apresentado, por se tratar de criança ainda na primeira década de vida, não havia queixa ocular ou relacionada à acuidade visual, mas o exame oftalmológico revelou alterações que sugeriram o diagnóstico. Em crianças que se apresentam com catarata, impõe-se um amplo diagnóstico diferencial que inclui infecções congênitas, doenças metabólicas, anormalidades anatômicas oculares ou em sistema nervoso central, dentre outras8. Entretanto, no caso em questão, o pré-escolar foi encaminhado ao oftalmologista já com a evidência laboratorial de hiperferritinemia, o que abreviou essa investigação.

Os valores de ferritina e a gravidade da catarata não parecem ter correlação direta, e, além disso, podem variar entre as diferentes mutações já descritas no gene FLT1,4,6. Além disso, mesmo em famílias nas quais os indivíduos apresentam uma mesma mutação, existe variabilidade na apresentação clínica2,6. Assim, no caso relatado, a ausência de história de catarata e hiperferritinemia em familiares de primeiro grau pode representar tanto uma maior penetrância no indivíduo afetado quanto uma mutação de novo.

A tríade laboratorial de hiperferritinemia, ferro sérico normal e saturação de transferrina normal é indicativa de SHCH depois da exclusão de causas como processo inflamatório, malignidades e doença hepática alcoólica9. Pacientes com esse quadro clínico devem ser imediatamente encaminhados ao oftalmologista, ainda que não apresentem queixas9.

Relatos de caso como este são necessários, visto que a SHCH é uma doença rara, com prevalência desconhecida em nosso país, cujo diagnóstico correto é fundamental para evitar intervenções propedêuticas e terapêuticas desnecessárias.


REFERÊNCIAS

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1. Universidade Federal de Juiz de Fora, Hospital Universitário - Juiz de Fora - Minas Gerais - Brasil
2. Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Clínica Médica - Juiz de Fora - Minas Gerais - Brasil
3. Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento Materno Infantil - Juiz de Fora - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência:

Sabrine Teixeira Ferraz Grünewald
Universidade Federal de Juiz de Fora
Rua José Lourenço Kelmer, s/n - São Pedro
Juiz de Fora - MG, Brasil. CEP: 36036-900
E-mail: sabrine.pediatria@gmail.com.

Data de Submissão: 08/01/2021
Data de Aprovação: 30/03/2021