ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 2

Síndrome de Fanconi e hepatocarcinoma por tirosinemia tipo 1: relato de caso e revisão de literatura

Fanconi syndrome and hepatocellular carcinoma caused by type 1 tyrosinemia: case report and literature review

RESUMO

INTRODUÇÃO: A tirosinemia tipo 1 é um erro inato do catabolismo da tirosina, ocasionando acúmulo de seus metabólitos no organismo, que por sua vez acabam por desencadear alterações orgânicas, especialmente em fígado, rins e sistema nervoso central.
RELATO DE CASO: Pré-escolar de 4 anos e 4 meses, sexo masculino, encaminhado por suspeita de raquitismo hipofosfatêmico. Identificou-se também acidose metabólica hiperclorêmica com ânion gap normal, proteinúria e glicosúria, caracterizando Síndrome de Fanconi. Ultrassonografia abdominal indicava fígado com dimensões aumentadas e múltiplas imagens nodulares hipoecoicas. A tirosinemia foi colocada como principal hipótese diagnóstica. Mesmo sem conclusão diagnóstica, iniciou-se tratamento com nitisona e dieta com restrição dietética. Depois de pouco tempo, foi a óbito por complicações da doença.
DISCUSSÃO: É expressiva a gravidade dos quadros de tirosinemia - e em especial sua rápida evolução. Deve-se ressaltar, apesar disso, a disponibilidade de métodos diagnósticos efetivos para a doença. Além disso, existem atualmente tratamentos que permitem um desfecho mais favorável.
CONCLUSÃO: Dessa forma, fica evidente a necessidade de disseminar o conhecimento acerca desta patologia entre os profissionais, de maneira que a doença passe a ser considerada como hipótese diagnóstica precocemente.

Palavras-chave: Tirosina, Síndrome de Fanconi, Carcinoma hepatocelular.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Type 1 tyrosinemia is an innate error of tyrosine catabolism, causing an accumulation of its metabolites in the organism, which end up triggering organic changes, especially in the liver, kidneys and central nervous system.
CASE DESCRIPTION: Preschooler aged 4 years and 4 months, male, referred for suspicion of hypophosphatemic rickets. Hyperchloremic metabolic acidosis with normal anion gap, proteinuria and glycosuria was also identified, characterizing Fanconi syndrome. Abdominal ultrasound indicated enlarged liver and multiple hypoechoic nodular images. Tyrosinemia was placed as the main diagnostic hypothesis. Even without diagnostic conclusion, treatment with nitisone and diet with dietary restriction were initiated. After a short time, he died of complications from the disease.
DISCUSSION: The severity of tyrosinemia is significant - and particularly its rapid evolution. However, it should be emphasized, the availability of effective diagnostic methods for the disease. In addition, there are currently treatments that allow a more favorable outcome.
CONCLUSION: Thus, the need to transmit knowledge about this pathology is evident, so that the index of suspicion is high and early.

Keywords: Tyrosine, Fanconi syndrome, Carcinoma, Hepatocellular.


INTRODUÇÃO

A tirosinemia é um erro inato do metabolismo (EIM) da tirosina, sendo a tirosinemia hereditária tipo 1 (HT1) o EIM mais grave relacionado à via catabólica da tirosina. A HT1 é uma doença autossômica recessiva rara — cuja incidência é de 1 caso a cada 100.000 nascidos vivos —, causada pela deficiência da enzima fumarilacetoacetato hidrolase (FAH). Pelo defeito enzimático, o fumarilacetoacetato (FAA) se acumula com metabólitos precursores, o que gera dano progressivo ao tecido hepático, renal e neurológico. A disfunção hepatocitária leva à redução da atividade de outros sistemas enzimáticos, causando aumento sérico de fenilalanina, tirosina e metionina1-6. O acúmulo de succinilacetona (SA) resulta em acréscimo de ácido delta-aminolevulínico (ALA), associado à toxicidade mitocondrial e hepática, câncer de fígado e problemas neuropsiquiátricos3,4. A doença também é capaz de interferir no metabolismo do heme. Dessa forma, a apresentação clínica da doença é variável e pode ser diferente dentro da mesma família1,2,5,6.

O tratamento da doença inclui nitisona (NTBC) e restrição dietética. Apesar do tratamento, alguns pacientes têm risco de desenvolver o carcinoma hepatocelular (HCC)2,5,7.

Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de permitir que o conhecimento acerca da patologia possa ser disseminado e cada vez mais conhecido pelos profissionais da saúde, de maneira que a assistência aos pacientes acometidos seja progressivamente melhorada, com diagnósticos precoces e desfechos positivos.


RELATO DE CASO

Pré-escolar de 4 anos e 4 meses, sexo masculino, foi admitido no serviço no ano de 2017 por suspeita de raquitismo hipofosfatêmico já com 2 anos de evolução. Apresentava hepatomegalia e espaço de Traube ocupado. Investigação laboratorial evidenciou acidose metabólica hiperclorêmica com ânion gap normal, proteinúria e glicosúria, caracterizando síndrome de Fanconi. Também apresentava hipercalciúria (5,9mg/kg/dia), hiperfosfatúria (58,4mg/kg/dia), plaquetopenia discreta e alfa-fetoproteína de 8.119ng/ml (valor normal até 8,1ng/ml). A SA urinária foi de 62mg/d (valor normal até 1,4mg/g de creatinina). Com base nessas alterações clínicas e laboratoriais, a tirosinemia foi considerada a principal hipótese diagnóstica. Tendo em vista o grave quadro clínico do paciente, o tratamento com nitisona (NTBC) foi iniciado imediatamente diante da suspeita diagnóstica. Contudo, devido à baixa aderência da família ao tratamento proposto, a utilização do medicamento foi realizada de modo irregular.

A ultrassonografia (US) abdominal, realizada 2 meses após início do tratamento, indicava fígado com dimensões aumentadas, ecotextura heterogênea às custas de múltiplas imagens nodulares hipoecoicas e aumento da ecogenicidade periportal, bem como baço aumentado. A análise genética demonstrou tirosinemia tipo 1 — variante chr15:80.460.605 G>T —, com alteração do gene FAH em homozigose.

Após abandono do tratamento e abstenção às consultas médicas por cerca de 1 ano, apesar da busca ativa, o paciente retornou ao serviço. Apresentava dor em membros inferiores, anteversão femoral, torção tibial externa e joelho em aspecto valgo, além de dor abdominal, vômitos, hipoatividade e acidose metabólica, sendo então internado. Ressonância magnética (RM) indicou sinais de cirrose hepática com hipertensão portal, além de inúmeras lesões nodulares displásicas, podendo representar focos de hepatocarcinoma, confirmados em exame histopatológico (Figura 1). A confirmação da existência do hepatocarcinoma contraindicou a possibilidade de transplante ortotópico de fígado. Posteriormente, paciente teve estabilização do quadro e recebeu alta hospitalar.


Figura 1. Ressonância magnética de abdome. Fígado com lesões nodulares, podendo representar focos de hepatocarcinoma.



Após cerca de 8 meses em acompanhamento ambulatorial, que foram seguidos de 6 meses sem comparecer às consultas, procurou atendimento por quadro de dor abdominal associada a náuseas e vômitos diários, com abdome distendido, circulação colateral aparente e hepatomegalia de consistência endurecida, necessitando de internação. Desenvolveu ascite e, posteriormente, anasarca (Figura 2). Apresentava, também, sinais de hepatopatia crônica e hipertensão portal à ultrassonografia. Com uso irregular de NTBC, a dosagem de alfa-fetoproteína (AFP) teve um aumento substancial, notado em novas dosagens realizadas durante acompanhamento: 42.835ng/mL, comparado a 8.119ng/mL. Após regularização da dieta e da medicação, a dosagem de AFP foi de 2.979ng/mL.


Figura 2. Fotografia do estado clínico do paciente. Ascite e edema de genitália.



O quadro de ascite persistiu de forma importante, posteriormente desenvolvendo também icterícia. Foi considerada paracentese de alívio para tratar esforço respiratório secundário à distensão abdominal, porém não foi possível realizar em decorrência de sinais de discrasia durante a indução anestésica.

Em acordo com a equipe assistencial e a família, instituíram-se os cuidados paliativos. O paciente evoluiu com oligoanúria, arritmias e hipotensão, e finalmente, óbito.


DISCUSSÃO

A HT1 é caracterizada por doença hepática progressiva, disfunção tubular renal e raquitismo hipofosfatêmico, além de ser o EIM com maior incidência do HCC4. A forma aguda da doença, na maior parte dos casos, se associa à falência hepática, cirrose, hepatoesplenomegalia, coagulação sanguínea anormal e hipoglicemia, levando ao óbito nos primeiros meses de vida. O subtipo agudo é o de pior prognóstico. A forma crônica é inicialmente menos agressiva. A tubulopatia proximal é proeminente e pode ser a manifestação inicial. A disfunção renal acarreta síndrome de Fanconi, acidose tubular renal, aminoacidúria, raquitismo hipofosfatêmico — apresentação inicial do paciente —, retardo do crescimento e cardiomiopatia hipertrófica. O fígado já pode apresentar cirrose ao diagnóstico, com alto risco de HCC2-5,7. Além disso, os pacientes podem apresentar crises neurológicas, provavelmente pelo efeito tóxico do ALA, manifestadas com parestesia dolorosa, sinais autonômicos e crises convulsivas2,6.

Em alguns países, a HT1 é diagnosticada antes do aparecimento dos sintomas, por meio do rastreamento pré-natal com dosagem de SA no líquido amniótico entre 14 e 16 semanas de gestação, ou ainda por análise molecular de amniocentese ou de biópsia de vilo coriônico2,4,5. No Brasil, o rastreio não é realizado.

Na investigação pós-natal, a dosagem sérica elevada de aminoácidos — como tirosina, metionina, prolina e alanina —, bem como excreção urinária de tirosina e seus metabólitos são fortemente sugestivos2. Apesar de os níveis plasmáticos de tirosina e α-fetoproteína indicarem HT1, o marcador bioquímico mais valorizado é a SA na urina, no sangue ou no líquido amniótico2-5. O paciente, nesse caso, teve o diagnóstico confirmado a partir da dosagem da SA urinária, somada ao quadro de raquitismo hipofosfatêmico e síndrome de Fanconi.

Um estudo que mede a atividade da FAH também pode ser usado para diagnóstico, mas alguns casos apresentam expressão em mosaico da FAH. Além disso, testes genéticos podem ser realizados4,5. A mutação mais comum é a c.1062+5G>A (IVS12+5G→A), seguida por c.554-1G>T (IVS6-1G>T) e c.786G>A (p.W262X)4,6. A mutação apresentada pelo paciente em questão é a segunda mais frequentemente observada entre os pacientes com tirosinemia tipo 1.

As alterações hepáticas levam à cirrose e ao HCC. A neoplasia foi relatada em cerca de 37% dos pacientes com HT1 e mais de 2 anos de idade. Os portadores de HT1 costumam desenvolver o HCC antes dos 5 anos de idade. Um dos estudos mostram o HCC como causa da morte em 57-66% das crianças com HT14,8,9.

Os exames de imagem em pacientes com tirosinemia têm como objetivo o rastreio e a caracterização das lesões. A US é o método de escolha para a vigilância, mas as características do HCC são inespecíficas. É difícil a distinção entre tumores pequenos e o padrão nodular do fígado cirrótico. A RM possui alta sensibilidade na detecção do HCC, sendo usada no estadiamento de lesões suspeitas. Após a infusão de gadolínio, existe enchimento arterial do tumor com wash-out na fase porta. A TC com contraste mostra o mesmo padrão da RM. As recomendações atuais para o rastreio incluem a realização de US para visualização do fígado e medições dos níveis da AFP periodicamente. Na presença de nódulos, a RM é recomendada3,5,8. O nível sérico de AFP pode estar elevado entre os pacientes com HT1 mesmo na ausência de malignidade, apresentando limitações7.

O HCC pode causar anemia, dor abdominal e até mesmo sangramento. Na maior parte dos casos, o HCC é detectado antes do aparecimento de sintomas, diferentemente do que ocorreu no caso apresentado. Seu risco é diminuído com o transplante hepático, que tem sido menos empregado devido à disponibilidade da nitisona1,3. Em 1990, não havia outro tratamento disponível para a HT1 senão o transplante hepático, além da dieta restritiva com baixos níveis de tirosina e fenilalanina4,7.

O NTBC, lançado em 1992, age bloqueando a via de degradação da tirosina. Ele não evita o aumento da concentração plasmática de tirosina e fenilalanina. O medicamento associado à dieta previne o surgimento de manifestações clínicas hepáticas, renais, neurológicas e até mesmo a incidência de neoplasia — principalmente quando a terapia farmacológica é iniciada antes dos 2 anos de idade. Os pacientes que iniciam o uso da medicação tardiamente não possuem redução significativa no risco de HCC3,4,7.

Após o início do tratamento adequado com NTBC, associado à restrição na dieta, os metabólitos hepatotóxicos deixam de se acumular e os níveis de AFP devem diminuir dentro de 1 ano3. O uso irregular do medicamento e da restrição dietética no caso podem ter contribuído para o desfecho, além do diagnóstico tardio e acompanhamento descontínuo.

O transplante hepático ortotópico é empregado nos casos mais graves e é considerado essencialmente curativo, mas não corrige completamente as alterações metabólicas da HT1. O tamanho e a arquitetura renal persistem alterados1,3,4,7. No relato de caso apresentado, devido à presença de inúmeros nódulos hepáticos e devido à deterioração acelerada do quadro, não havia indicação de transplante hepático.

O pico de incidência para o desenvolvimento do tumor na HT1 é entre 4 e 5 anos de idade3. O prognóstico nos casos de HCC é desfavorável, devido à baixa responsividade à quimioterapia e radioterapia. Dessa forma, casos em estágio avançado ou com presença de metástases têm taxa de sobrevida em 5 anos de 0-9%7.

Tendo em vista a gravidade predominante dos quadros de HT1, é de grande importância que o conhecimento a respeito de métodos diagnósticos e manifestações clínicas da doença seja aprofundado, de forma a reduzir suas repercussões.


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1. Universidade Positivo, Medicina - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Hospital Pequeno Príncipe, Pediatria - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Maria Eduarda Turczyn De Lucca
Universidade Positivo. Cidade Industrial de Curitiba
Curitiba - PR, Brasil. CEP: 81290-000
E-mail: mariatdelucca@gmail.com

Data de Submissão: 04/02/2021
Data de Aprovação: 04/02/2022