ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2023 - Volume 13 - Número 3

Diagnóstico tardio de síndrome de deleção 22q11.2 em criança com hipocalcemia sintomática: relato de caso

Delayed diagnosis of 22q11.2 deletion syndrome in a child with symptomatic hypocalcemia: case report

RESUMO

A deleção de 22q11.2 é a microdeleção mais frequente em humanos e apresenta grande espectro de manifestações clínicas, como dismorfias craniofaciais, malformações de vias aéreas, cardiopatias, mal-formações renais, hipoparatireoidismo, alterações neurológicas e comportamentais, imunodeficiências e anomalias do timo. A ampla variabilidade fenotípica faz dessa síndrome um desafio diagnóstico, e a identificação no início da vida é importante por permitir não só a avaliação das comorbidades e inter-venções como também aconselhamento familiar adequado. Uma das apresentações clínicas da sín-drome de deleção 22q11.2 é o hipoparatireoidismo, podendo ser manifestado por hipocalcemia sintomá-tica. O presente caso mostra o diagnóstico de síndrome de deleção 22q11.2 realizado em uma criança de 11 anos com hipocalcemia sintomática e chama a atenção para a possibilidade desse diagnóstico diante de um paciente com hipocalcemia, ainda que tardia.

Palavras-chave: Síndrome da deleção 22q11, Hipocalcemia, Hipoparatireoidismo.

ABSTRACT

22q11.2 Deletion Syndrome is the commonest microdeletion syndrome in humans and has a wide spec-trum of clinical manifestations, such as craniofacial dysmorphism, airway malformations, heart disease, renal malformations, hypoparathyroidism, neurological and behavioral disorders, immunodeficiencies and anomalies of the thymus. The broad phenotype spectrum makes the diagnosis more challenging, and an early identification allows not only the evaluation of comorbidities and interventions, but also adequate genetic counseling. Hypoparathyroidism manifested by symptomatic hypocalcemia is one of the clinical presentations of 22q11.2 Deletion Syndrome. This clinical case shows the diagnosis of 22q11.2 Deletion Syndrome in an 11-year-old child with symptomatic hypocalcemia and emphasizes the possibility of a late diagnosis of 22q11.2 Deletion Syndrome.

Keywords: 22q11 Deletion syndrome, Hypocalcemia, Hypoparathyroidism.


INTRODUÇÃO

A microdeleção na região 11.2 no braço longo do cromossomo 22, denominada 22q11.2, é a mutação por deleção gênica mais comum, com incidência estimada em 1 a cada 4.000 nascidos vivos1-3. É causada, em 90% das vezes, por mutações espontâneas, e em apenas 6 a 10% há documentação de herança familiar4,5. Cerca de 30 a 50 genes são representados na área mais comumente afetada pela deleção 22q11.2 e há mais de 180 manifestações clínicas distintas descritas, incluindo anormalidades físicas e comportamentais6,7. A ampla variabilidade fenotípica faz com que essa deleção seja responsável por várias apresentações, como síndrome de DiGeorge, síndrome velocardiofacial (síndrome de Shprintzen), síndrome cardiofacial de Cayler e síndrome de Opitz G/BBB8,9.

A síndrome de DiGeorge foi descrita pela primeira vez em 1965, através do relato de três crianças com imunodeficiência grave, aplasia de timo e hipocalcemia neonatal. Com o avanço da investigação genética, descobriu-se que, em 90% dos casos, essa síndrome é causada pela deleção 22q11.24,10. Sua apresentação clínica pode ser desde oligossintomática e de difícil identificação até acometimento de múltiplos órgãos, com anomalias cardíacas, palatinas, endócrinas, genitourinárias, gastrointestinais, neurológicas e psiquiátricas4,8.

Neste artigo, relata-se um paciente com diagnóstico tardio de síndrome de deleção 22q11.2 que apresentou, aos 11 anos, hipocalcemia sintomática, sem associação com outras anomalias.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 11 anos de idade, admitida em hospital de nível terciário no sul do Brasil, com relato de vômitos e crise convulsiva. Buscou o pronto atendimento por evento paroxístico de 30 segundos com tremor palpebral e rigidez de mãos bilateralmente, em garra, sem perda de consciência ou liberação de esfíncteres. Durante o atendimento, a paciente manteve queixa de rigidez nas mãos (Figuras 1A e 1B). Quando questionada sobre comorbidades, a mãe refere que, aos 10 anos, a paciente apresentou um primeiro episódio de evento paroxístico classificado como tônico-clônico por neurologista, que inicialmente prescreveu clonazepam e, há 2 meses, carbamazepina. Não realizava acompanhamento com outras especialidades e negava histórico de infecções de repetição.



Figura 1. A: Mãos da paciente apresentando rigidez.



Figura 1. B: Mão direita da paciente apresentando rigidez.



Na história gestacional e obstétrica, mãe informa um parto vaginal a termo sem quaisquer intercorrências, exceto por vacinação tríplice viral no primeiro trimestre gestacional.

Em relação ao desenvolvimento neuropsicomotor, mãe relata desenvolvimento motor limítrofe e desenvolvimento da linguagem adequado de acordo com a escala Denver II11, tendo sentado sem apoio aos 8 meses, andando sem apoio aos 15 meses, falado as primeiras palavras aos 12 meses e combinado duas palavras aos 24 meses. Contudo a mãe informa que logo no período pré-escolar começou a apresentar dificuldade de aprendizagem, com alfabetização apenas aos 10 anos. Atualmente cursa 3º ano de escola regular.

Ao exame físico, evidenciada face arredondada, lábios grossos com lábio superior evertido, olhos amendoados. Apresentava-se comunicativa e orientada, com leve desconforto à palpação de hipogástrio, sem irritação peritoneal. Exame neurológico com força simétrica e preservada, pares cranianos sem alterações, paciente com as mãos fletidas e com dedos em extensão, com mobilidade preservada e força preservada. Sinais de Chvostek e Trousseau presentes.

Realizados na admissão exames laboratoriais, sendo evidenciado hipocalcemia, assim como hipomagnesemia, hiperfosfatemia, PTH abaixo do valor de referência e vitamina D limítrofe (Tabela 1). Demais exames complementares realizados, como ecografia de abdome total, ecografia de rins e vias urinárias, ecocardiograma, radiografia de tórax, ecografia de tireoide e paratireoides, foram normais.





Através de achados clínicos e laboratoriais, realizou-se a hipótese diagnóstica de síndrome de deleção 22q11.2 devido à associação de déficit intelectual, dismorfias craniofaciais sutis, assim como hipocalcemia sintomática levando a quadro de tetania.

Iniciado tratamento com carbonato de cálcio, magnésio e calcitriol, com melhora do quadro clínico apresentado, sem novos episódios de rigidez e tremores. Exames laboratoriais coletados no sexto dia e no vigésimo terceiro dia de tratamento evidenciaram aumento dos níveis séricos de cálcio e magnésio, assim como diminuição do fósforo (Tabela 1). Realizado teste de Hibridização Genômica Comparativa (Comparative Genomic Hybridization, CGH), que identificou uma microdeleção intersticial de cerca de 2,8 Mb da banda 22q11.2, da região de Chr22:18.142.191 à Chr22:21.109.441, confirmando o diagnóstico de síndrome de deleção 22q11.2. Paciente recebeu alta hospitalar assintomática, mantendo uso das medicações e encaminhada para seguimento com endocrinologia, neurologia e genética. A paciente também foi encaminhada para investigação de imunodeficiência de forma ambulatorial.


DISCUSSÃO

A síndrome de deleção 22q11.2 é responsável pela manifestação de vários achados clínicos, o que reflete a complexidade da sua variabilidade fenotípica6,8. O amplo espectro clínico dessa síndrome reflete sua extensa possibilidade de denominações, como síndrome de DiGeorge e síndrome velocardiofacial, dando uma impressão errônea de que existem diferentes doenças relacionadas à deleção 22q11.2, porém são todas representações fenotípicas diferentes de uma mesma condição9. Dos mais de 180 achados clínicos descritos, nenhum deles é patognomônico ou obrigatório, o que dificulta seu diagnóstico3,7. As manifestações clínicas mais comuns incluem dismorfias craniofaciais, cardiopatias, hipoparatireoidismo, alterações neurológicas, além de imunodeficiências8,12. Sua apresentação inclui desde formas leves e oligossintomáticas, até as mais graves, que podem ser facilmente reconhecidas ao nascimento4,7.

O hipoparatireoidismo, devido à agenesia ou hipoplasia das paratireoides na síndrome de deleção 22q11.2, tem frequência estimada em 49-80% e normalmente se torna aparente no período neonatal, sendo achado raro no paciente adulto, apesar de possível de aparecer em qualquer idade5,13. Uma explicação plausível para a hipocalcemia sintomática de início tardio é a reserva inadequada da paratireoide, na qual a secreção de PTH pode ser suficiente para manter normocalcemia em condições habituais, mas incapaz de criar resposta adequada em situações de estresse, como cirurgia, infecção ou gestação1,13.

O diagnóstico tardio da síndrome através de hipocalcemia em idade adulta, como o caso clínico relatado, é evento incomum, além de pouco descrito na literatura. No caso relatado, a paciente não apresentava cardiopatias nem dismorfias clássicas da síndrome de DiGeorge, como face longa, hipertelorismo, retrognatia ou micrognatia, fissuras palpebrais estreitas, boca pequena com lábio superior evertido, orelhas dismórficas e de implantação baixa8. O diagnóstico de síndrome de deleção 22q11.2 foi realizado em vigência de quadro agudo de hipocalcemia sintomática aos 11 anos de idade.

Em revisão de 12 casos de pacientes com síndrome de DiGeorge diagnosticados tardiamente, observou-se que 8 deles procuraram o hospital por hipocalcemia sintomática, e apenas 2 deles apresentaram história documentada de eventos hipocalcêmicos neonatais. Além disso, metade (6 de 12) não apresentava anormalidades cardíacas, sugerindo que o diagnóstico pode ser atrasado se o paciente não manifestar nem hipocalcemia sintomática no período neonatal nem anormalidades cardíacas14.

Em 2005, um estudo com 100 crianças com síndrome de deleção 22q11.2 na Suécia evidenciou a frequência desse diagnóstico tardio, que, de acordo com os grupos etários, foram: 26% no período neonatal; 17% entre 2-5 anos; 41% entre 6-12 anos; e 16% na adolescência. A idade média do diagnóstico foi 6,7 anos15. Esse estudo demonstrou ainda que as características mais comuns que levaram ao diagnóstico em crianças menores de 2 anos de idade foram defeitos cardíacos, timo ausente ou hipoplásico, hipocalcemia e dismorfias. Enquanto isso, em crianças com mais de 2 anos de idade, as características que mais sugeriram a síndrome foram defeitos cardíacos, infecções recorrentes, atraso no desenvolvimento da fala e dismorfias, sendo a hipocalcemia achado secundário e incomum como determinante do diagnóstico nessa faixa etária15.

Diante da suspeita da síndrome de deleção 22q11.2, o diagnóstico é geralmente realizado por hibridização fluorescente in situ (FISH), sendo o método de eleição para a detecção da deleção cromossômica. Esse teste é altamente preciso e confiável, além de poder ser utilizado para o diagnóstico antenatal2. Atualmente, outras técnicas de análise molecular são utilizadas para detectar as microdeleções, como o ensaio pela CGH-Array,3 como realizado na paciente deste relato.

Devido à ampla variabilidade fenotípica, a síndrome de deleção 22q11.2 deve ser suspeitada mesmo em casos oligossintomáticos ou com manifestações de hipopatireoidismo predominantes, como no presente caso. A identificação da deleção 22q11.2 no início da vida, o mais precocemente possível, é importante, tendo em vista as variadas apresentações em múltiplos sistemas e risco de distúrbios do neurodesenvolvimento. O diagnóstico precoce permite não só avaliação das comorbidades e intervenções, como também aconselhamento familiar adequado.


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Data de Submissão: 29/04/2021
Data de Aprovação: 04/05/2023