Relato de Caso
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Ano 2023 -
Volume 13 -
Número
4
Piropoiquilocitose hereditária no período neonatal - relato de caso
Hereditaryl Pyropoikilocytosis in the Neonatal Period - Case Report
Ana Beatriz Teodoro Borges1; Magda Regina Silva Moura2; Larissa Cristina Nascimento3; Adilson Botelho Filho4; Caroline Geraldo1; Jéssica de Oliveira Franco1; Júlia Machado Fernandes1; Ana Paula Cicci de Castro Coutinho2
RESUMO
A Piropoiquilocitose Hereditária é uma forma rara e grave da Eliptocitose, caracterizando-se por uma alteração no esqueleto da membrana dos glóbulos vermelhos. Trata-se de uma condição autossômica dominante com penetrância variável na eliptocitose, podendo estar em homozigose ou dupla heterozigose na Piropoiquilocitose, inicia-se desde o período neonatal, com manifestações clínicas de icterícia persistente. Relata-se aqui caso de uma recém-nascida com icterícia persistente, associada à anemia com necessidade de hemotransfusão. A evolução clínica e os achados laboratoriais foram conclusivos para o diagnóstico de Piropoiquilocitose Hereditária.
Palavras-chave:
Anemia hemolítica, Icterícia neonatal, Eliptocitose hereditária.
ABSTRACT
The Hereditary Pyropoikilocytosis is a rare and severe form of Elliptocytosis, characterized by an alteration in the skeleton of the red blood cell membrane. It is an autosomal dominant condition with variable penetration in elliptocytosis, which may be in homozygosity or double heterozygosity in Pyropoikilocytosis, starting from the neonatal period, with clinical manifestations of persistent jaundice. We report here a case of a newborn with persistent jaundice, associated with anemia requiring blood transfusion. The clinical evolution and laboratory findings were conclusive for the diagnosis of Hereditary Pyropoikilocytosis.
Keywords:
Anemia hemolytic, Jaundice neonatal, Elliptocytosis hereditary.
INTRODUÇÃO
A Piropoiquilocitose hereditária (PH) é uma forma rara e grave da Eliptocitose1, caracterizando-se por uma alteração no esqueleto da membrana dos glóbulos vermelhos. Sua intensidade varia de leve a fatal e, usualmente, inicia-se desde o período neonatal, com manifestações clínicas de icterícia persistente e, em longo prazo, pode levar o paciente à dependência crônica de transfusões sanguíneas2.
A epidemiologia é marcadamente descrita no continente africano1, e embora no Brasil não se tenha registro de dados sobre a sua prevalência, acredita-se que acompanhe a africana devido à origem étnica de nossa população. Sua etiologia reside mais comumente na associação de defeitos eliptocitogênicos graves de determinadas proteínas da membrana, incluindo a alfa-espectrina, ou ainda na homozigose para defeitos unicamente no gene da espectrina3. Trata-se de uma condição autossômica dominante com penetrância variável na eliptocitose, podendo estar em homozigose ou dupla heterozigose na PH1, o que deve despertar para a investigação da história familiar quando um paciente apresenta anemia de origem pouco clara. Com a evolução natural da doença, a hemólise pode desaparecer e a poiquilocitose ser substituída pelos eliptócitos da Eliptocitose Hereditária comum, sendo geneticamente semelhante a uma condição autossômica recessiva heterozigótica composta4.
As manifestações clínicas e laboratoriais da piropoiquilocitose foram primeiro descritas em 1973 e 19755,6, e relataram três pacientes com quadro moderadamente grave de anemia hemolítica congênita, contendo em análise do esfregaço hemácias incomuns e bizarras com anisocitose, poiquilocitose e microesferocitose. As hemácias desses pacientes mostraram extensa fragmentação, brotamento da membrana celular e formação de microesferócitos quando expostas a uma temperatura constante maior ou igual a 45 °C por 15 minutos, o que se mostra em contraste com o habitual, em que fisiologicamente essas alterações apenas a 49 °C ou acima. A condição foi denominada “piropoiquilocitose congênita”.
O cuidado do bebê com PH por equipe interdisciplinar, hematologista e pediatra7 é de grande valia para o manejo clínico. A descrição desse caso firma sua importância em virtude da raridade da condição e da escassez de publicações científicas, especialmente no Brasil, e objetiva contribuir com o diagnóstico precoce e o manejo adequado desses pacientes.
RELATO DE CASO
Trata-se de um recém-nascido (RN) do sexo feminino, filha de mãe de 27 anos, primípara, portadora de CIA e hipertensão arterial, e evoluiu com quadro de diabetes gestacional com bom controle, sem demais intercorrências. Nasceu com idade gestacional de 36 semanas e 4 dias, em regulares condições, porém sem necessidade de manobras de reanimação neonatal, peso de 2710g. Evoluiu com icterícia precoce, com 15 horas de vida, sendo necessária fototerapia. Não necessitou de exsanguineotransfusão, porém manteve hiperbilirrubinemia indireta persistente. Não foram observadas visceromegalias. Apresentava aos exames laboratoriais hiperbilirrubinemia indireta (BT 7,9 mg/dL; BI 7,49 mg/dl, BD 0,41 mg/dL), anemia (Hb 9,5 g/dL) microcítica (VCM 74,3 fL), CHCM de 36,1 g/dL e RDW 28,9%, sem reticulocitose (0,6%), mas aumento da enzima desidrogenase láctica (563 U/L); evidenciado à hematoscopia presença de anisopoiquilocitose acentuada, eliptócitos, esquizócitos e esferócitos (Figura 1), sugerindo o diagnóstico. A avaliação complementar evidenciou mãe e RN com tipo sanguíneo O positivo, RN com Coombs Direto negativo, Coombs Indireto materno negativo, urocultura negativa, dosagem de G6PD normal e função tireoidiana normal. Eletroforese de hemoglobinas revelou padrão FA e mielograma normocelularidade global, hipercelularidade da série eritrocítica e ausência de alterações displásicas. Apresentava ausência de história familiar para anemia, esplenomegalia e icterícia. Hemogramas materno e paterno normais, inclusive hematoscopias. Manteve em fototerapia até 8 dias de vida, necessitou de hemotransfusão por piora da anemia (Hb 7,4g/dL) com 20 dias de vida. Recebeu alta com 25 dias, em uso de ácido fólico. Segue estável em acompanhamento ambulatorial, sem intercorrências, não necessitou de novas transfusões até o momento e, em avaliação de hemograma seriados, mantinha as formas encontradas à hematoscopia inicial, aos 7 meses apresentou ao hemograma Hb 10 g/dL, VCM 71,9 fL e presença apenas de ovalócitos (Figura 2), mostrando uma evolução em melhora conforme esperado. A evolução clínica e os achados laboratoriais foram assim conclusivos para o diagnóstico de Piropoiquilocitose Hereditária.
Figura 1. Hematoscopia no período neonatal evidenciando presença de anisopoiquilocitose acentuada, eliptócitos, esquizócitos e esferócitos.
Figura 2. Hematoscopia aos 7 meses de vida evidenciando presença apenas de ovalócitos.
DISCUSSÃO
A fisiopatologia da Piropoiquilocitose decorre de um defeito na tetramerização da proteína espectrina ou no complexo juncional, levando à fraqueza no esqueleto da membrana dos glóbulos vermelhos e sua consequente fragmentação extravascular, semelhante ao observado em queimados após destruição das interações do citoesqueleto pelo calor1. No período neonatal, a hemólise é marcadamente pior. Hipotetiza-se que seja em função das altas concentrações de hemoglobina fetal (HbF) nas hemácias. A HbF não se liga ao composto hemático 2,3-difosfoglicerato (DPG) e, como resultado, grandes quantidades de 2,3-DPG livre estão disponíveis para interagir e desestabilizar o citoesqueleto de hemácias, produzindo poiquilocitose e anemia hemolítica. À medida que os níveis de HbF declinam nos primeiros meses de vida, a contribuição do 2,3-DPG para o processo hemolítico diminui, a hemólise desaparece e os poiquilócitos são substituídos pelos eliptócitos característicos da Eliptocitose1, conforme evidenciado à análise seriada da hematoscopia da paciente.
Em casos mais raros e graves, pode haver acometimento ainda durante a gestação, evoluindo com hidropsia fetal7, provavelmente devido a defeitos mais amplos na espectrina. No período neonatal, a piropoiquilocitose manifesta-se por anemia hemolítica grave, levando à anisopoiquilocitose importante. As crianças comumente nascem a termo com um nível de hemoglobina dentro dos parâmetros normais quando coletado no sangue do cordão umbilical8. Porém, nos primeiros dias de vida, o nível de hemoglobina diminui rapidamente, o que pode exigir inclusive transfusões, como descrito neste caso. A icterícia é o sinal mais importante nos neonatos, sendo o que despertou a investigação no caso principalmente pelo aspecto de tempo prolongado, na maioria das vezes necessita de fototerapia, e alguns casos de exsanguineotransfusão.
Laboratorialmente, o exame do esfregaço de sangue quanto à morfologia dos eritrócitos tem sido um método de diagnóstico prático e produtivo para avaliar neonatos com hiperbilirrubinemia9. Na Piropoiquilocitose, evidencia-se anisocitose grave, fragmentos celulares, micropoiquilocitose, microesferócitos e eritrócitos em desenvolvimento. Esse dado mostrou-se de grande esclarecimento na elucidação do caso aqui relatado, reforçando a efetividade dessa análise. Um baixo VCM (30 a 75 fL), devido a glóbulos vermelhos fragmentados é característico, porém, em alguns casos, pode se apresentar no limite superior, como na paciente aqui descrita e em um relato da literatura de um recém-nascido de 17 dias10, que se apresentou com icterícia, decorrente de anemia severa (Hb 6,9 g/dl), cujo VCM foi de 87,5 fL, com diagnóstico de piropoiquilocitose sugerida pelo esfregaço. A fragilidade osmótica geralmente é normal nos indivíduos sem hemólise, mas podem demonstrar aumento de fragilidade nas formas graves, porém não se trata de um exame indispensável para o diagnóstico1,10.
Em um relato de acompanhamento de oito recém-nascidos e lactentes com Piropoiquilocitose, realizado no Children’s National Med National, em Washington5, a hiperbilirrubinemia neonatal estava presente em todos os casos, inclusive com necessidade de intervenção médica de fototerapia ou exsanguineotransfusão, o que se mostra concordante com o caso e a literatura. Nesses pacientes, foram descartadas as hipóteses de doença hemolítica do recém-nascido, sepse, deficiência de G6PD, anemia hemolítica autoimune e esferocitose, conforme ocorrido na investigação do caso em questão, por se tratar de diagnósticos diferenciais importantes e prevalentes no período neonatal. Ao se avaliar os esfregaços de sangue periférico ao nascimento dos oito pacientes, a presença de microcitose, fragmentos de glóbulos vermelhos e acentuados poiquilocitos foi determinante no diagnóstico, assim como no paciente descrito.
Nas crianças mais velhas, infecções ou doenças intercorrentes podem deflagrar graus de hemólise, inclusive com anemia, com necessidade de transfusões ocasionais. Como exemplo, as infecções pelo parvovírus B19, em que há piora da anemia, cursando com palidez, astenia, dispneia, febre e erupção cutânea clássica, sendo necessária a internação por vezes para compensação e manejo da anemia7. Geralmente, orienta-se o uso do ácido fólico suplementar a indivíduos com mais de um grau mínimo de hemólise, a fim de prevenir a deficiência de folato, conforme utilizado pela paciente relatada, embora essa prática não tenha sido estudada em profundidade para casos de eliptocitose2. Quando há anemia crônica, que requer transfusões periódicas, outras terapêuticas são consideradas, como a esplenectomia total ou subtotal11, devidamente efetivas, ou o uso da eritropoietina, ainda sem estudos com evidência suficiente2 em pacientes com piropoiquilocitose.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A piropoiquilocitose é uma forma rara e potencialmente grave da eliptocitose, que deve ser reconhecida pelos pediatras, devido a sua manifestação de icterícia no período neonatal. O acompanhamento dessas crianças mostra a estabilização dos valores da hemoglobina variando de um paciente para outro e, na ausência de outros sintomas, uma visita anual ao especialista é indicada. Os pais devem ser alertados sobre o risco de piora da anemia, o que pode ocorrer principalmente na vigência de infecções virais, quando devem procurar atendimento médico para melhor monitoramento e cuidado. O diagnóstico permite ainda a exploração familiar e o aconselhamento genético aos pais, visto que é uma condição hereditária.
REFERÊNCIAS
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1. Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), Residente de Pediatria - Uberlândia - Minas Gerais - Brasil
2. Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), Serviço de Neonatologia - Uberlândia - Minas Gerais - Brasil
3. Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), Serviço de Hematologia Pediátrica - Uberlândia - Minas Gerais - Brasil
4. Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), Serviço de Hematologia - Uberlândia - Minas Gerais - Brasil
Endereço para correspondência:
Ana Beatriz Teodoro Borges
Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU)
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Uberlândia - MG, 38405-320
E-mail: anabeatrizteodoroborges@gmail.com
Data de Submissão: 09/09/2021
Data de Aprovação: 18/09/2021