Relato de Caso
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Ano 2024 -
Volume 14 -
Número
1
Trombocitopenia primária imune com púrpura palpável: um relato de caso.
Primary Immune Thrombocytopenia with palpable purpura: a case report
Marcela Bezerra Marques; Alexia Lavínia Holanda Gama; Hellen Stephane Pita Dantas; Filipe Marinho Pinheiro da Câmara; Tereza Rebecca de Melo e Lima; Maryana Dayhara Costa Erlich
RESUMO
A trombocitopenia imune é um distúrbio hemorrágico relativamente comum caracterizado por destruição isolada de plaquetas por autoanticorpos, com instalação tipicamente aguda, evolução benigna e autolimitada na maioria dos casos. O objetivo deste relato é apresentar um caso raro de trombocitopenia primária imune (TPI) com púrpura palpável, uma manifestação incomum nesta doença e pouco descrita na literatura. Trata-se de uma adolescente de 12 anos do sexo feminino, que apresentou púrpura palpável, equimoses e sangramento de cavidade oral associados à plaquetopenia e anemia. Investigação inicial excluiu doenças autoimunes, vasculites, doenças linfoproliferativas e distúrbios de coagulação, além de o mielograma evidenciar achados típicos de TPI: medula óssea hipercelular com hiperplasia megacariocítica e plaquetogênese diminuída. Pela diversidade de apresentação clínica e pela possibilidade de manifestações atípicas, muitas vezes o diagnóstico é desafiador, como no caso desta paciente em que o principal achado ao exame físico foi a presença de púrpura palpável.
Palavras-chave:
Trombocitopenia, Púrpura, Diagnóstico diferencial, Anticorpos.
ABSTRACT
Immune thrombocytopenia is a relatively common bleeding disorder characterized by isolated destruction of platelets by autoantibodies, with a typically acute onset, benign course and self-limiting in most cases. The aim of this report is to present a rare case of Primary Immune Thrombocytopenia (ITP) with palpable purpura, an uncommon manifestation in this disease and little described in the literature. This is a 12-year-old female adolescent who presented with palpable purpura, ecchymosis and oral cavity bleeding associated with thrombocytopenia and anemia. Initial investigation excluded autoimmune diseases, vasculitis, lymphoproliferative diseases and coagulation disorders, in addition to the myelogram showing typical findings of ITP: hypercellular bone marrow with megakaryocytic hyperplasia and decreased thrombocytogenesis. Due to the diversity of clinical presentation and the possibility of atypical manifestations, the diagnosis is often challenging, as in the case of this patient in which the main finding on physical examination was the presence of palpable purpura.
Keywords:
Thrombocytopenia, Purpura, Diagnosis differential, Antibodies.
INTRODUÇÃO
A trombocitopenia imune é um distúrbio hemorrágico relativamente comum caracterizado por destruição isolada de plaquetas por autoanticorpos1, com instalação tipicamente aguda, evolução benigna e autolimitada na maioria dos casos2. Pode manifestar-se em duas formas: a primária, quando não apresenta uma causa aparente conhecida, sendo denominada de trombocitopenia primária imune (TPI) e a forma secundária, quando é induzida por outras patologias ou terapêuticas, a exemplo das doenças autoimunes/linfoproliferativas, drogas ou agentes infecciosos3.
A forma primária é mais prevalente na faixa etária pediátrica e sua incidência é de 4,1 a 9,5 por 100 mil crianças por ano, com predomínio dos casos na faixa etária de 1 a 5 anos, com leve predominância no sexo masculino4. Ocorre, geralmente, após infecção viral ou vacinação, e caracteriza-se pela formação de anticorpos autorreativos, com opsonização das plaquetas e destruição do complexo plaqueta-anticorpo pelos fagócitos do sistema reticuloendotelial principalmente no baço e no fígado, levando à plaquetopenia, o principal achado desta patologia3,5.
A TPI é classificada de acordo com o tempo de duração do seu diagnóstico em: aguda (até 3 meses), persistente (de 3 meses a 12 meses) e crônica (maior que 12 meses)4. Em muitos casos, os pacientes são assintomáticos e o diagnóstico ocorre por achado incidental de plaquetopenia isolada em exames laboratoriais. As manifestações clínicas, quando presentes, incluem predominantemente a presença de sangramentos de pele, como hematomas e petéquias, e de mucosas3,6, sendo incomuns hemorragias graves e púrpura palpável2.
O diagnóstico baseia-se na exclusão de outras causas de plaquetopenia1,7 e geralmente não é necessário nenhum tipo de tratamento específico, já que cerca de 80% vão evoluir com remissão espontânea em um período de 6 meses5.
O objetivo deste relato é apresentar um caso raro de TPI com púrpura palpável, uma manifestação atípica nessa doença e pouco descrita na literatura, bem como apontar a importância de considerar outros sinais clínicos não clássicos para o diagnóstico dessa patologia. A realização deste estudo seguiu a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi iniciada após aaprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) (CAAE: 57896322.9.0000.5201).
RELATO DE CASO
Paciente sexo feminino, 12 anos, parda, procedente de Jaboatão dos Guararapes/PE, com história de púrpuras do tipo petéquias e equimoses de início há 3 dias da admissão, localizadas inicialmente em membros inferiores com disseminação progressiva para todo o corpo, incluindo cavidade oral. Associado a isso, apresentava plaquetopenia (44.000/μL) evidenciada em exame laboratorial de outro serviço. Relato de episódio semelhante há 1 ano, com hematomas em pescoço e membros superiores com resolução espontânea e episódio isolado de epistaxe 3 meses antes da admissão. Negava sangramentos espontâneos e não apresentava antecedentes de infecção ou vacinação recentes. Ao exame físico da admissão, foi observada presença de púrpura palpável disseminada com predominância em membros superiores e inferiores associado a extensos hematomas (Figura 1).
Figura 1. Presença de púrpura palpável, petéquias e hematomas em membros inferiores.
Devido à presença de púrpura palpável e sangramentos anteriores a este episódio, optado por realizar investigação inicial para vasculites e outras doenças autoimunes, além de distúrbios de coagulação, todos descartados. Como observado em exames laboratoriais, a presença de anemia discreta (Hb 10,4), configurando uma bicitopenia, foi indicada a realização de mielograma para exclusão de doenças linfoproliferativas. Paciente evoluiu com queda progressiva do número de plaquetas, chegando a um valor mínimo de 2.000 plaquetas/μL, sem comprometimento importante das outras linhagens hematopoiéticas e levantada hipótese de trombocitopenia primária imune com manifestação clínica atípica. O resultado de mielograma evidenciou medula óssea hipercelular com hiperplasia megacariocítica e plaquetogênese diminuída, com ausência de células com características blásticas na medula, confirmando o diagnóstico de TPI.
Com a queda importante das plaquetas e o início durante o internamento de sangramento de mucosa oral, foi realizado antifibrinolítico e indicado tratamento com corticoterapia, sendo realizado prednisona na dose de 2 mg/kg/dia durante 5 dias com boa resposta. Paciente evoluiu com melhora clínica, sem novos episódios de sangramentos, e aumento da contagem plaquetária, recebendo alta com valor absoluto de 227.000 plaquetas/mm³ para seguimento ambulatorial com hematologia pediátrica.
COMENTÁRIOS
A TPI é uma patologia caracterizada, na maioria dos casos, por trombocitopenia isolada, com variável espectro de apresentação clínica, em uma criança de boa aparência e sem sintomas sistêmicos associados1,8. A paciente deste estudo estava fora da faixa etária de maior incidência e era do sexo feminino, enquanto a literatura mostra que a faixa etária mais acometida é a dos pré-escolares, com predominância do sexo masculino, apesar de que, quando acomete adolescentes, há taxas semelhantes entre meninos e meninas4.
Na maioria dos estudos, a ocorrência da TPI aguda é precedida de uma doença infecciosa, na maioria das vezes de caráter viral, ou precedida de vacinação. Em um estudo retrospectivo realizado em um hospital terciário, com seguimento de pacientes durante 10 anos, observou-se que 35% dos pacientes apresentavam patologia prévia, sendo 18% infecções de vias aéreas superiores, 15% gastroenterite aguda e 3,2% varicela9. Neste caso, a paciente não apresentava histórico de afecção prévia.
Um estudo publicado em 2009, após análise de casos de TPI em uma instituição brasileira durante 12 anos, evidenciou que as manifestações hemorrágicas foram descritas em 94,7% dos pacientes, dentre elas manifestações cutâneas (petéquias e equimoses) e em menor número as hemorragias de mucosas (epistaxe e gengivorragia), além de trato gastrointestinal e do trato genitourinário8,10.
Ademais, Despotovic e Grimes (2018)11 citam a coorte Intercontinental Childhood ITP Study Group no qual os sintomas hemorrágicos foram relatados em 91% das crianças no momento do diagnóstico. No caso relatado, a paciente apresentava trombocitopenia e alterações mucocutâneas como petéquias e hematomas. Porém, além desses sinais clássicos, atentou-se à presença de púrpura palpável em membros inferiores, que é incomum nesse tipo de patologia, aventando-se a possibilidade de outros possíveis diagnósticos.
A púrpura é uma lesão elementar de coloração vermelho- purpúrica, podendo ser macular ou elevada, que não desaparece à digitopressão. Quando palpável, é decorrente de alteração vascular (lesões das paredes dos vasos ou aumento da permeabilidade capilar), que pode ser causada por trauma, infecção, vasculite ou distúrbio do colágeno12. Na TPI, por sua vez, ocorre destruição plaquetária imunomediada, levando à opsonização e destruição das plaquetas, com manifestação clínica cutânea na forma de petéquias e equimose (púrpura não palpável)13.
Pela diversidade de apresentação clínica e pela possibilidade de manifestações atípicas, muitas vezes o diagnóstico é desafiador, como no caso desta paciente em que o principal achado ao exame físico foi a presença de púrpura palpável. Além disso, Arnold et al. (2017)14 enfatizam a falta de critérios específicos como um fator que predispõe a erros no diagnóstico e a tratamentos inadequados, sendo observado no seu estudo que 1 em cada 7 pacientes foi diagnosticado de forma errônea em algum momento durante o curso da doença.
De acordo com as diretrizes atualizadas da Sociedade Americana de Hematologia, o exame de medula óssea não é indicado de forma rotineira para pacientes que apresentam alterações clínicas e laboratoriais compatíveis com TPI típica. Entretanto, em caso de dúvida diagnóstica, é aconselhada sua realização6,15. Neste caso clínico, como a paciente apresentava manifestação incomum, além de anemia concomitante à plaquetopenia, optou-se pela ampliação da investigação em busca de um diagnóstico mais preciso e o resultado do mielograma evidenciou achados típicos de TPI.
Diretrizes recomendam conduta expectante para pacientes assintomáticos ou com sangramentos apenas cutâneos, baseando-se no controle do número de plaquetas e vigilância clínica, visto que 80% dos pacientes apresentam melhora espontânea em até 6 meses13. O objetivo do tratamento é prevenir hemorragias com risco de vida, sendo indicado para crianças com sangramentos de mucosas ou de outros sítios, com a realização de corticoide como tratamento de 1ª linha6,15. Guiado pelos sintomas clínicos, este foi o tratamento indicado para esta paciente, evoluindo com boa resposta e alta com valor normal de plaquetas.
A raridade da descrição da associação da TPI com a presença de púrpura palpável na literatura médica e toda a investigação empreendida para essa paciente, inclusive com a definição diagnóstica, mostra a importância do relato de doenças típicas da pediatria se manifestando de forma atípica e sendo um desafio na prática médica.
REFERÊNCIAS
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Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, Pediatria - Recife - Pernambuco - Brasil
Faculdade Pernambucana de Saúde, - Recife - Pernambuco - Brasil
Endereço para correspondência:
Marcela Bezerra Marques
Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira
R. dos Coelhos, 300 - Boa Vista, Recife - PE, 50070-902
E-mail: marcelamarques995@gmail.com
Data de Submissão: 19/05/2022
Data de Aprovação: 22/07/2022