ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Esclerodermia localizada juvenil: além do que nossos olhos podem ver

Juvenile localized scleroderma: beyond our eyes can see

RESUMO

INTRODUÇÃO: Esclerodermia localizada juvenil (ELJ) é a forma mais comum de esclerodermia na infância e representa um grupo de entidades clínicas distintas, com espessamento de epiderme, derme e tecido subcutâneo adjacente. Há poucos dados descritos na população brasileira. A apresentação clínica é variável, havendo cinco subtipos, que podem se manifestar com acometimento extracutâneo. Tratamento imunossupressor está indicado na maioria dos casos, com prognóstico favorável, mas evolução para limitação funcional ocorre em 25% dos pacientes.
OBJETIVOS: Descrever e correlacionar com a literatura dados demográficos, clínicos e terapêuticos de uma amostra portadora de ELJ.
MÉTODOS: Realizado estudo transversal, observacional e descritivo envolvendo pacientes com diagnóstico de ELJ entre 2015 e julho de 2022 em acompanhamento regular em unidade de reumatologia pediátrica de um hospital pediátrico terciário.
RESULTADOS: Foram revisados prontuários de 23 pacientes, sendo 60% do sexo feminino, com idade mediana de início dos sintomas de 6 anos e atraso diagnóstico em dois anos ou mais em 39%. ELJ linear e mista foram os subtipos mais prevalentes. Manifestações cutâneas crônicas estavam presentes ao diagnóstico em 74% dos casos e envolvimento extracutâneo em 78% ao seguimento. Metotrexato e prednisona foram utilizados em 91% dos pacientes e 36% necessitou de outras medicações. Complicações foram descritas em 43% dos casos.
CONCLUSÕES: Houve maior porcentagem de pacientes com atraso diagnóstico em relação à literatura, além de elevada prevalência de manifestações cutâneas crônicas e evolução para complicações. Disseminação de conhecimento sobre a ELJ se faz importante para diagnóstico precoce e redução do impacto funcional relacionado à doença.

Palavras-chave: Esclerodermia localizada, Criança, Adolescente, Diagnóstico precoce, Morbidade, Progressão da doença.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Juvenile localized scleroderma (JLS) is the most common form of scleroderma in childhood and represents a group of distinct clinical entities with thickening of epidermis, dermis and adjacent subcutaneous tissue. There are few data described in the Brazilian population. Clinical presentation is variable, with five subtypes that may manifest with extracutaneous involvement. Immunosuppressive treatment is indicated in most cases, with favorable prognosis, but progression to functional limitation occurs in 25% of patients. OBJECTIVES: To describe and correlate with literature demographic, clinical and therapeutic data of a sample with JLS.
METHODS: A descriptive observational study was conducted involving patients diagnosed with JLS between 2015 and July 2022 under regular follow-up in a pediatric rheumatology unit of a childrens tertiary hospital.
RESULTS: Medical records of 23 patients were reviewed, 60% of them female, with a median age of onset of 6 years and diagnostic delay in of two years or more in 39%. Linear and mixed JLS were the most prevalent subtypes. Chronic skin manifestations were present in 74% cases at diagnosis and extracutaneous involvement in 78% during follow-up. Methotrexate and prednisone were used in 91% of patients and 36% of then required other medications. Disease complications were described in 43% of cases.
CONCLUSIONS: There was higher percentage of patients with diagnostic delay in relation to literature, in addition to high presence of chronic manifestations at diagnosis and progression to complications. Dissemination of knowledge about JLS is important for early diagnosis and reduction in the functional impact related to the disease.

Keywords: Scleroderma localized, Child, Adolescent, Early diagnosis, Morbidity, Disease progression.


INTRODUÇÃO

Esclerodermia representa um conjunto de doenças associadas à produção excessiva de colágeno que leva à fibrose cutânea e de tecidos adjacentes, além de acometimento de outros órgãos. Há duas formas principais: a esclerodermia localizada (EL) e a sistêmica (ES), cada qual com seus diferentes subtipos1. Na ES, há envolvimento multissistêmico com alterações cutâneas difusas; já na EL, há envolvimento cutâneo de localização mais restrita, além de acometimento extracutâneo menos frequente2.

A esclerodermia juvenil tem início antes do 16º ano de vida, com padrões de envolvimento que diferem do adulto. A esclerodermia localizada juvenil (ELJ), também chamada de morfeia, é a apresentação mais frequente na faixa etária pediátrica, sendo 6 a 10 vezes mais comum do que a forma sistêmica1. Tem incidência estimada de 0,34 a 2,7 casos a cada 100.000 crianças por ano, é mais frequente em meninas, com média de idade de início entre 6,4 a 10,5 anos3. Há cinco subtipos bem definidos de morfeia: linear, circunscrita (em placas), generalizada, panesclerótica e mista1-3.

A ELJ possui ampla gama de apresentação clínica e suas lesões cutâneas diferem em formato, extensão e localização entre os vários subtipos, geralmente sendo unilaterais3. Na fase inicial, apresentam coloração eritematosa a violácea, mas com textura normal, podendo haver calor e edema4. Com o surgimento da fibrose, desenvolvem superfície elevada e endurecida, com centro ceroso, circundada por margem eritematosa ou violácea (lilac ring)3. Nas fases posteriores, há despigmentação (hiper ou hipopigmentação), atrofia da derme e do tecido subcutâneo adjacente, além de perda de anexos cutâneos3,4.

O tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico da ELJ pode chegar a 13 meses, com 20% das crianças sendo diagnosticadas após dois anos de doença1. O prognóstico é favorável nos casos adequadamente tratados; no entanto, aproximadamente um quarto dos pacientes ainda apresenta limitação funcional5.

Apesar da raridade, o tema é relevante por se tratar da forma mais comum de esclerodermia na infância, aliado à dificuldade de reconhecimento e de encaminhamento em tempo hábil ao especialista. Esta pesquisa objetiva descrever e correlacionar com a literatura as características de uma amostra de crianças e adolescentes portadores de ELJ.


MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal, observacional e descritivo, realizado por meio de análise documental de prontuário médico. A pesquisa foi desenvolvida no ambulatório da unidade de reumatologia pediátrica de um hospital pediátrico terciário. Foram avaliados pacientes menores de 20 anos que tiveram diagnóstico de ELJ entre 2015 e julho de 2022 e que se encontravam em acompanhamento regular há pelo menos seis meses. Foram excluídos os portadores de outras doenças reumatológicas autoimunes em associação à morfeia.

Foi utilizado formulário como instrumento de coleta de dados, no qual foram registradas informações demográficas, clínicas, laboratoriais, histopatológicas, terapêuticas e evolutivas. Os dados foram coletados em janeiro de 2023.

Os dados avaliados incluíram: sexo, idade ao início dos sintomas (em anos), intervalo entre início dos sintomas e diagnóstico (em anos), tempo de seguimento (em anos), subtipos da ELJ (linear, circunscrita, generalizada, panesclerótica e mista), localização das lesões, presença de manifestações cutâneas crônicas (atrofia ou fibrose)3 ao diagnóstico, status atual de doença (atividade, caracterizada como aumento e/ou intensificação do espessamento de lesões prévias, surgimento de novas lesões e/ou presença de edema, rubor e/ou calor; parada de progressão de lesões com ou sem medicações, caracterizadas pela redução de tamanho e/ou do espessamento das lesões e/ou ausência de piora do quadro inicial)3,6, achados histopatológicos na biópsia cutânea, positividade de autoanticorpos [fator antinuclear (FAN), fator reumatoide (FR), anti-DNA hélice simples (anti-DNAss), anti-histona e antitopoisomerase I (anti-SCl 70)], tratamento sistêmico empregado (prednisona, metotrexato, micofenolato de mofetila, azatioprina, ciclofosfamida, tocilizumabe)7,8 e complicações da doença (contratura articular e/ou muscular, hipotrofia muscular, anisomelia, sequelas oftalmológicas, odontológicas, neurológicas, gastrointestinais e pulmonares)9.

Foi avaliada ainda a presença de manifestações extracutâneas: musculoesqueléticas (artralgia, artrite e/ou mialgia), gastrointestinais (pirose, epigastralgia e/ou disfagia), oftalmológicas (hiperemia ocular), odontológicas (disfunção temporomandibular e/ou assimetria de arcada dentária), neurológicas (crises convulsivas e/ou cefaleia), pulmonares (dispneia aos esforços) e vasculares (fenômeno de Raynaud).

A análise estatística consistiu no cálculo de mediana para variáveis contínuas e no de número absoluto e porcentagem para variáveis categóricas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (Parecer nº 5.813.449).


RESULTADOS

Foram avaliados os prontuários de 23 pacientes, cujos dados estão resumidos no Quadro 1. A maioria das crianças foi do sexo feminino (60%). As medianas de idade ao início dos sintomas e ao diagnóstico foram de 6 (2,1–15,9) e 9 (3,1–16,9) anos, respectivamente, com mediana do intervalo até o diagnóstico de 1,4 (0,2–12) anos. Nenhuma criança iniciou sintomas no primeiro ano de vida e três tiveram início ainda no segundo ano. Em três casos, foram relatados possíveis desencadeantes antes do aparecimento do quadro cutâneo (varicela em um e trauma local em dois). Diagnóstico com atraso a partir do segundo ano de doença foi verificado em nove casos (39%), incluindo quatro pacientes com mais de cinco anos de atraso diagnóstico, a maioria com acometimento em face. Cinco (21%) pacientes tinham história familiar positiva para doenças autoimunes (DAI): tireoidite de Hashimoto, lúpus eritematoso sistêmico e ELJ.





Com relação à distribuição por subtipos, 10 (43%) pacientes apresentaram ELJ do subtipo linear, com acometimento de extremidades em 60%. Em quatro crianças, o acometimento linear deu-se em face (Figura 1): três casos com síndrome de Parry-Romberg (SPR) e um caso com lesão en coup de sabre (ECDS). O subtipo misto também ocorreu em 43% das crianças avaliadas, sendo mais comum a associação entre as formas linear e circunscrita. Dois pacientes apresentaram quadro compatível com morfeias circunscrita, linear e panesclerótica, uma delas apresentando ainda acometimento compatível também com SPR (Figura 2). Não foi detectado subtipo panesclerótico de forma isolada. ELJ do subtipo em placas de forma isolada ocorreu em dois casos e o subtipo morfeia generalizada apenas em um (Figura 3).



Figura 1. Esclerodermia localizada juvenil linear de face; A. Adolescente de 17 anos com lesões em coup de sabre: área de espessamento com hiperpigmentação, além de grande placa de espessamento com atrofia e alopecia em região frontal esquerda; B e C. Adolescente de 12 anos com síndrome de Parry-Romberg: hiperpigmentação em hemiface esquerda, sem fibrose cutânea, mas com atrofia de tecido subcutâneo gerando acentuação de suco nasolabial ipsilateral, desvio de rima labial e assimetrias de asas nasais.



Figura 2. Esclerodermia localizada juvenil do tipo misto. Menina de 5 anos com extenso acometimento cutâneo de hemicorpo esquerdo, com lesões lineares em região cervical, tronco, abdome e membro superior esquerdo e lesão panesclerótica em membro inferior esquerdo. Nota-se hipotrofia de membro superior esquerdo, além de contratura articular em terceiro e quinto quirodáctilos. Há importante lesão circunferencial com atrofia e fibrose em toda extensão de membro inferior esquerdo, gerando hipotrofia muscular e anisomelia. Placas de morfeia isolada em hemiabdome e membro inferior direito.



Figura 3. Morfeia generalizada. Adolescente de 11 anos com múltiplas lesões (>4) em placa, algumas maiores que 3 cm, em região cervical, tronco, abdome, pelve, dorso, membros superiores e inferiores, com áreas de confluências, despigmentação e perda de anexos cutâneos.



Dezessete (74%) casos já apresentavam manifestações cutâneas crônicas (atrofia ou fibrose) ao diagnóstico. Tais pacientes tiveram atraso diagnóstico com mediana de 1,7 (0,2–12) ano, enquanto nos pacientes sem cronicidade à avaliação inicial, o tempo foi de 0,6 (0,5–1,4) ano.

Manifestações extracutâneas estavam presentes em 17 (74%) crianças ao diagnóstico, das quais 65% tinham sintomas articulares (artralgia e/ou artrite), a maioria em topografias próximas às lesões cutâneas. Houve mialgia em 9% dos pacientes. Sintomas gastrointestinais (pirose, epigastralgia e/ou disfagia) foram relatados em 47% dos casos, embora poucos destes tenham sido documentados através de exames complementares, como endoscopia digestiva alta, esofagograma e/ou manometria esofágica. Três pacientes tinham quadro de crises convulsivas e um adolescente trazia queixa de hiperemia ocular, no entanto sem avaliação oftalmológica, além de disfunção temporomandibular (DTM) e assimetria em arcada dentária. Duas crianças apresentavam queixa de fenômeno de Raynaud ao diagnóstico, uma delas apresentando capilaroscopia com microangiopatia inespecífica.

Durante o seguimento, manifestações extracutâneas foram documentadas em 18 casos, com acometimento principalmente musculoesquelético, seguido pelo gastrointestinal e neurológico. Uma adolescente portadora de ELJ linear de extremidades evoluiu com queixa de dispneia aos esforços, com presença de distúrbio ventilatório restritivo na espirometria e presença de discreto espessamento difuso de paredes brônquicas difusamente e raras estrias atelectásicas no pulmão direito na tomografia de tórax, sem positividade de autoanticorpos ou alterações em capilaroscopia. Todos os pacientes com alterações neurológicas, odontológicas e/ou oftalmológicas apresentavam lesões em face, sendo mais comum em pacientes com SPR do que com acometimento en coup de sabre.

Biopsia cutânea foi realizada em 16 casos, com achados de infiltrado inflamatório em 62%, alterações do colágeno em 56% e alterações de anexos cutâneos em 50%. Autoanticorpos foram dosados em todos e detectados em 10 (43%) pacientes, com positividade de FAN em nove casos, FR em três, anti-DNAss em três e anti-SCl 70 em um (portadora de SPR). Três crianças apresentaram mais de um anticorpo positivo.

Com relação à terapia empregada, a associação de prednisona e metotrexato (MTX) foi utilizada como primeira escolha em 21 (91%) casos, sendo que em três casos foram necessários mais de três anos de uso. Parada de progressão das lesões ocorreu em 66% dos casos e em 24% houve resposta parcial com a terapia combinada.

Outros fármacos foram indicados em oito pacientes, sendo o micofenolato de mofetila (MMF) o mais utilizado, quer seja por refratariedade ao tratamento padrão ou por evento adverso ao MTX. Seis crianças fizeram uso de MMF, com parada de progressão em cinco e resposta parcial em um. Quatro pacientes fizeram uso de ciclofosfamida em pulsoterapia mensal: dois pacientes com indicação por acometimento neurológico (um portador de SPR e outro com associação de SPR e ECDS) e outros dois pela gravidade de doença cutânea. Houve parada de progressão em dois casos e resposta parcial em um, enquanto a quarta paciente encontra-se ainda em curso da medicação. Um paciente está atualmente em uso de azatioprina devido ao retorno das lesões após uso da ciclofosfamida (CFM), além da ausência de resposta a MTX e evento adverso ao MMF. Uso mensal de tocilizumabe foi empregado em dois casos: um portador de morfeia mista, cuja indicação foi gravidade de doença e refratariedade aos tratamentos prévios, com parada de progressão do quadro; e uma portadora de morfeia mista, com indicação por gravidade de doença, mas que evoluiu com má resposta.

A mediana do tempo de seguimento da amostra foi de três (0,5–7,2) anos. Cinco crianças se encontram atualmente com doença em atividade. Por sua vez, 61% dos pacientes evoluíram com parada de progressão na vigência do uso de medicações, e 18% estão com doença estável mesmo após a suspensão da terapia, sendo 75% destes portadores de esclerodermia localizada linear e 25%, da forma circunscrita. Dentre os pacientes com lesões ativas, quatro apresentam subtipo misto, sendo um deles portador de SPR e ECDS, e um apresenta lesão em golpe de sabre. Atualmente 14 (61%) crianças estão em uso de imunossupressor.

Complicações foram descritas em 10 casos, sendo 70% relacionadas a alterações musculoesqueléticas (contratura articular e muscular, hipotrofia muscular e anisomelia). Duas crianças apresentaram sequelas odontológicas com DTM e desvio de rima labial. Outras duas evoluíram com alterações neurológicas (deficiência intelectual e déficit de aprendizado e de memória). O subtipo com maior índice de comorbidades foi a ELJ mista (60%).


DISCUSSÃO

A ELJ é uma doença rara, com poucos dados descritos na população brasileira, o que, associado a uma apresentação clínica variável, pode justificar a dificuldade na realização do diagnóstico precoce. Reportamos elevados índices de atraso diagnóstico na nossa amostra, com porcentagem de pacientes que tiveram reconhecimento clínico após o segundo ano de doença próxima ao dobro da descrita em literatura1.

A etiologia da ELJ permanece pouco clara. Seu caráter autoimune é sugerido eminentemente pela presença de autoanticorpos e pela história familiar ou pessoal de outras DAIs10,11. Estudos prévios mostraram casos de morfeia após infecção pelo Epstein-Barr vírus, por Borrelia burgdorfrei e pelo vírus da varicela10. Eventos mecânicos, como traumas, vacinas e procedimentos cirúrgicos foram reportados como potenciais gatilhos em 10 a 15% de pacientes com EL3. Em nossa casuística, 21% dos pacientes apresentaram história familiar positiva para DAI, enquanto 13% relataram histórico de possíveis desencadeantes do quadro cutâneo.

As elevadas taxas de alterações cutâneas crônicas reportadas em nosso estudo refletem maior atraso diagnóstico e o consequente retardo no início do tratamento. A diferença da mediana de intervalo diagnóstico entre pacientes da amostra com alterações crônicas à avaliação inicial e os sem cronicidade foi de 1,1 ano. Indo ao encontro dos dados da literatura1, crianças com lesões em face representaram a maioria dos pacientes com atraso diagnóstico (75%). No entanto, o maior intervalo descrito na amostra foi de uma paciente portadora de ELJ linear de extremidade com 12 anos de sintomas prévios.

O subtipo mais comum de ELJ descrito na literatura é o linear, reportado em 50-65% dos casos3. Destacamos em nossa amostra uma alta prevalência de subtipo misto, que apresentou igual proporção à ELJ linear, com 10 casos cada. No entanto, dentre os pacientes com subtipo misto, todos apresentavam lesões lineares em associação a outros subtipos. Morfeia linear se apresenta como placas lineares enduradas que podem seguir as linhas de Blaschko. Podem se estender ao tecido muscular e ósseo causando atrofia, afilamento e encurtamento do membro afetado6.

Esclerodermia linear que afeta a face pode se apresentar em duas formas: en coup de sabre e síndrome de Parry-Romberg6. Associação de ambas é descrita em 28–42% dos pacientes adultos12, enquanto em nossa amostra foi detectada em apenas um adolescente. ECDS se manifesta como uma faixa de espessamento cutâneo com extensão vertical sobre a testa e/ou couro cabeludo, podendo gerar alopecia e afilamento ou depressão do crânio3. Já a SPR caracteriza-se por hemiatrofia facial progressiva, com atrofia de tecido subcutâneo, músculos e osso, mas com pele sobrejacente sem alterações significativas13.

Descrevemos baixa prevalência de ELJ circunscrita em nosso estudo, com apenas 9% dos pacientes apresentando o subtipo de forma isolada. A morfeia em placa é responsável por 25-40% dos casos descritos na literatura, apresentando-se como lesões ovaladas ou arredondadas, acometendo preferencialmente o tronco, sendo únicas ou múltiplas e de acometimento superficial ou profundo3. Na presença de quatro ou mais placas, maiores do que 3 cm cada, envolvendo dois ou mais sítios anatômicos, classifica-se esta apresentação como morfeia generalizada, pouco comum na pediatria2,3, representando apenas 5% dos nossos pacientes avaliados.

Morfeia panesclerótica é a forma de maior gravidade e a mais rara. Tem rápida progressão e é caracterizada por envolvimento circunferencial de um ou mais membros, afetando pele e tecidos profundos13. Pode evoluir para carcinoma de células escamosas, complicação rara e potencialmente fatal3. Apresentamos dois pacientes com subtipo misto incluindo envolvimento panesclerótico, ambos com doença grave e necessidade de múltiplos esquemos terapêuticos. Até o presente momento, não houve evolução para doença neoplásica.

O envolvimento extracutâneo é relatado em 22-75% dos pacientes na literatura4, compatível com os números relatados em nossa amostra (74%), sendo o musculoesquelético o mais comum. ELJ linear é o subtipo com descrição de maior acometimento de outros órgãos com associação à artrite, contraturas musculares, miosite, atrofia muscular e anisomelia. Cerca de 25% do acometimento articular ocorre em áreas distantes da lesão cutânea1,4. Em nossa casuística, tendo em vista uma elevada prevalência de morfeia mista, reportamos acometimento extracutâneo em igual proporção nos subtipos linear e misto.

ECDS e SPR podem estar associadas a sintomas neurológicos, oftalmológicos e odontológicos. Até 10% dos pacientes podem apresentar sintomas como crises convulsivas, cefaleia, vasculite de sistema nervoso central e alterações em neuroimagem, podendo anteceder ou ocorrer anos após as lesões3,14. Uma paciente com SPR em nosso estudo iniciou quadro de crises convulsiva um ano antes do acometimento cutâneo, enquanto outros dois iniciaram quadro neurológico no segundo e décimo ano de doença cutânea.

Estudos reportaram baixas taxas de acometimento de outros sistemas: sintomas vasculares, como fenômeno de Raynaud, ocorreram em menos de 10% dos avaliados, alterações gastrointestinais em menos de 5% e pulmonares em menos de 4%14,15. Nossos números revelaram altas taxas de acometimento gastrointestinal, sendo o segundo sistema mais afetado após o musculoesquelético, responsável por quase a metade dos sintomas extracutâneos. Vale ressaltar um caso isolado com envolvimento pulmonar (sem associação com fenômeno de Raynaud) e dois com fenômeno de Raynaud (sem associação com manifestações pulmonares) na presente amostra, alterações bem mais descritas na esclerodermia sistêmica2. Apenas um dos pacientes com acometimento vascular apresentou positividade de autoanticorpo (FAN).

O diagnóstico da ELJ é clínico, podendo-se embasar na avaliação histopatológica em casos duvidosos, a qual deve ser feita da borda de uma lesão ativa. Não há achados laboratoriais específicos16. No que diz respeito às alterações laboratoriais, 39% dos nossos pacientes apresentaram FAN positivo, compatível com a descrição de positividade da literatura em até 50% dos casos6. Apesar de estudos descreverem associação de anti-histona e anti-DNAss com atividade de doença17, apenas três dos nossos pacientes apresentaram positividade de anti-DNAss e nenhum de anti-histona. Anti-SCl 70 está presente em menos de 5% dos casos, sem relação com evolução para a forma sistêmica3, com positividade em apenas um dos nossos pacientes.

A combinação de metotrexato e corticoide é a escolha como terapia de primeira linha para pacientes com doença ativa18, tendo sido utilizada em 91% das crianças avaliadas nesta análise. Cerca de 30% dos pacientes necessitam de medicações alternativas, que incluem outras drogas antirreumáticas modificadoras de doença (DMARDs) sintéticas, além de biológicas19. Indo ao encontro desses dados, 36% dos nossos pacientes não apresentaram resposta eficaz à terapia padrão, utilizando medicações que variaram entre micofenolato de mofetila, azatioprina, ciclofosfamida e tocilizumabe.

A duração média da doença varia entre três e cinco anos, podendo ser mais longa no subtipo linear9. Há recorrência em torno de 25% dos pacientes, ocorrendo até dois anos e meio após cessação do tratamento20. Apenas quatro pacientes avaliados nesta casuística encontravam-se em parada de progressão sem medicação, todos com cinco ou mais anos de sintomas e uso prévio de imunossupressor por mais de dois anos. O escore LoSCAT (ferramenta de avaliação cutânea de esclerodermia localizada), instrumento de avaliação de atividade e dano, não foi incluso nos dados avaliados nesta amostra, dada a variabilidade de resultados devido a diferentes examinadores dos pacientes em questão, bem como ao fato dele não avaliar manifestações extracutâneas e acometimentos mais profundos21.

A morbidade geralmente está associada ao envolvimento extracutâneo e inclui contraturas articulares, anisomelia, convulsões e deficiência visual5. Complicações foram detectadas em 43% dos nossos casos, os quais apresentaram cerca de cinco meses a mais na mediana de tempo do início dos sintomas até o diagnóstico do que os pacientes sem complicações.

As limitações do estudo em questão envolveram uma pequena amostra de pacientes, apesar de tratar-se de uma doença rara, a ausência de um grupo-controle, a ausência de uso de parâmetros objetivos para a caracterização e quantificação das manifestações extracutâneas, principalmente as do trato gastrointestinal, bem como a não utilização da ferramenta de avaliação de atividade e dano cutâneo (LoSCAT).

É imprescindível que o pediatra geral e o dermatologista estejam atentos para o diagnóstico de ELJ diante da presença de lesões cutâneas persistentes, em qualquer topografia, com espessamento cutâneo, associadas ou não à despigmentação e perda de anexos cutâneos. Como conduta inicial, ainda em avaliação com pediatra geral, é importante que sejam excluídas infecções latentes (através de prova tuberculínica, radiografia de tórax, sorologias para hepatites e vírus da imunodeficiência humana) e que seja prescrito antiparasitário, uma vez que o paciente possivelmente será submetido à imunossupressão.

Concluímos que a porcentagem de pacientes com atraso diagnóstico a partir do segundo ano de doença foi maior do que os dados reportados na literatura mundial, alertando sobre a maior necessidade de conhecimento sobre a doença. Tal dado foi condizente com altas taxas de manifestações cutâneas crônicas ao diagnóstico e de complicações relacionadas a ELJ, principalmente musculoesqueléticas. A terapia de escolha de primeira linha se mostrou eficaz e segura na maioria das crianças avaliadas. Apesar de rara, a ELJ pode cursar com complicações e deformidades, implicando limitações funcionais e estéticas significativas.


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Hospital Infantil Albert Sabin, Departamento de Reumatologia Pediátrica - Fortaleza - Ceará - Brasil

Endereço para correspondência:
Amália Mapurunga Almeida
Hospital Infantil Albert Sabin, Departamento de reumatologia pediátrica
Rua Tertuliano Sales, 544, Vila União
Fortaleza, CE, Brasil. CEP:60410-794
E-mail: amlimapurunga@gmail.com

Data de Submissão: 03/03/2023
Data de Aprovação: 02/04/2023