ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 3

Metemoglobinemia secundária à intoxicação exógena intencional por fenazopiridina em adolescente: um relato de caso

Methemoglobinemia induced by intentional phenazopyridine intoxication in an adolescent: a case report

RESUMO

A metemoglobinemia é uma causa rara, frequentemente negligenciada e potencialmente grave de cianose na população pediátrica. Pode ocorrer como resultado de defeito congênito ou ad-quirido, por exposição a substâncias que oxidam a hemoglobina. Dentre essas substâncias encontra-se a fenazopiridina, analgésico urinário amplamente disponível. Seu diagnóstico é um desafio clínico, e deve ser aventado em pacientes que apresentem cianose central e baixa satu-ração ao oxímetro de pulso refratários à oxigenoterapia. Em situações com manifestações clíni-cas significativas, o tratamento inclui administração de azul de metileno, além da remoção do agente indutor e administração de oxigênio em alto fluxo. O presente caso demonstra o diag-nóstico clínico de metemoglobinemia secundária à intoxicação intencional por fenazopiridina, com tratamento adequado em tempo hábil e desfecho satisfatório.

Palavras-chave: Metemoglobinemia, Cianose, Fenazopiridina, Pediatria.

ABSTRACT

Methemoglobinemia is a rare and often neglected cause of cyanosis in pediatric population. It can result from either congenital conditions or acquired processes from exposure to sub-stances that oxidizes hemoglobin. Phenazopyridine, a pain reliever for urinary tract symptoms, widely used, is one of those substances. The methemoglobinemia diagnosis can be a clinical challenge, and this hypothesis must be considered in patients with central cyanosis and persis-tent low saturation despite oxygen administration. Severe cases should be treated with meth-ylene blue, removal of the causal factor and aggressive oxygen therapy. This present case re-ports the diagnosis of a pediatric patient with methemoglobinemia induced by intentional in-toxication with phenazopyridine, that received fast and appropriate treatment, with satisfacto-ry outcome.

Keywords: Methemoglobinemia, Cyanosis, Phenazopyridine, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A Metemoglobinemia é incomum e potencialmente grave na população pediátrica, sendo seu diagnóstico um desafio clínico1. Pode ocorrer como resultado do defeito congênito ou como distúrbio adquirido, por exposição a substâncias que oxidam a hemoglobina2. Esse processo leva à anemia funcional e fornecimento deficiente de oxigênio aos tecidos, manifestado clinicamente por cianose e hipóxia refratárias à oxigenoterapia1-4.

A fenazopiridina é um medicamento de venda livre usado para tratar disúria. Sua ingestão pode causar metemoglobinemia adquirida. A epidemiologia dessa condição é pouco conhecida, com poucos casos descritos na literatura3. Em um indivíduo saudável, há uma cascata de enzimas redutoras que converte a metemoglobina de volta à hemoglobina. Sugere-se que a toxicidade da fenazopiridina resulte em superprodução de hemoglobina oxidada ou interrupção da cascata redutora3,5.

Apesar da potencial gravidade, a metemoglobinemia é possivelmente reversível com o diagnóstico correto e manejo adequado, destacando-se a importância do reconhecimento precoce dessa doença. Neste artigo, relata-se um paciente adolescente que apresentou metemoglobinemia após intoxicação exógena intencional por fenazopiridina, cujo tratamento adequado e em tempo hábil colaborou para um desfecho satisfatório.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 13 anos de idade, foi admitida em pronto atendimento de um hospital terciário no Sul do Brasil, apresentando cianose e insaturação. Conforme relato materno, a paciente acordou com cianose de lábios e extremidades, e apresentou episódio de vertigem, com duração de 10 minutos e resolução espontânea. Durante o período escolar, a cianose e a insaturação à oximetria de pulso pioraram. Então, a mãe a levou para atendimento médico.

Na admissão, paciente apresentava-se acordada, consciente, orientada em tempo e espaço, dispneica, com cianose central e de extremidades. Sua frequência cardíaca era 120bpm, respiratória 36ipm, pressão arterial 140x100mmHg, temperatura 36,7 ºC, glicemia capilar 146mg/dL, saturação 88% em ar ambiente, e mantida menor que 90% mesmo com fonte de oxigênio sob máscara não reinalante a 10L/min. Exame físico segmentar não apresentava particularidades. Observaram-se apenas nos membros superiores escoriações provocadas em ambos os antebraços, em diferentes fases de cicatrização.

Negou quaisquer outros sintomas e relatou hábitos intestinais e urinários sem alterações. Apresentava história pregressa de refluxo vesicoureteral grau V, realizado reimplante ureteral esquerdo aos 5 anos de idade, sem intercorrências, em acompanhamento regular com nefrologia. Negou história familiar relevante para o caso.

No primeiro momento, paciente negou ingestão de quaisquer medicamentos. Porém, após extensiva conversa, criança admitiu ter ingerido 18 comprimidos de cloridrato de fenazopiridina 200mg (totalizando 75mg/kg) de forma intencional, com objetivo de autoextermínio.

A paciente foi monitorizada na admissão e mantida em oxigenoterapia, com saturação em oximetria de pulso (SpO2) refratária à abordagem terapêutica, mantendo-se em 88% a 90% mesmo com máscara não reinalante a 10L/min. Após suspeita de intoxicação exógena, foram coletados exames laboratoriais. Durante coleta arterial, repetida e confirmada, foi observado sangue de coloração muito escura (Tabela 1).




Durante observação, paciente evoluiu com piora da dispneia e taquicardia, referindo palpitação e tontura. Realizado eletrocardiograma, evidenciado taquicardia sinusal (frequência cardíaca 136bpm). Devido à hipótese diagnóstica de metemoglobinemia secundária à ingestão de fenazopiridina, e à piora clínica evidente da paciente, optou-se pela realização de azul de metileno como prova diagnóstica e terapêutica. Essa decisão foi tomada em função da indisponibilidade dos resultados dos exames em curto período. Foi coletado nível sérico de metemoglobina antes da medicação e enviado a laboratório de apoio, externo ao hospital. O azul de metileno foi administrado intravenoso na dose de 2mg/kg, diluído em 100ml de soro glicosado 5%, em 5 minutos. Observou-se melhora significativa e imediata da cianose e da SpO2, confirmando-se a hipótese de metemoglobinemia. A paciente foi encaminhada à Unidade de Terapia Intensiva para observação por 24 horas, não foi necessária nova dose do azul de metileno.

Recebeu alta da Unidade de Terapia Intensiva e seguiu em acompanhamento com serviço social, psicologia e psiquiatria na enfermaria, com SpO2 98% em ar ambiente, sem queixas, e demais sinais vitais normais. A boa evolução clínica culminou em alta hospitalar no 4º dia de internação, com seguimento ambulatorial com equipe da psicologia e psiquiatria. O resultado da determinação sérica da metemoglobina por espectrofotometria UV/UVIS foi obtido no dia seguinte após alta ambulatorial da paciente, e o resultado foi 0,68% (valor de referência menor que 1,5%). Apesar do resultado negativo, possivelmente adulterado pelo tempo e distância até o processamento do exame, o diagnóstico de metemoglobinemia foi corroborado. A necessidade de fotoproteção adequada e difícil fiscalização no trajeto complicaram o exame. A prova terapêutica positiva com melhora clínica imediata após azul de metileno confirmou o diagnóstico.


DISCUSSÃO

A metemoglobinemia é um distúrbio raro, frequentemente negligenciado, potencialmente fatal, porém possivelmente reversível quando prontamente diagnosticado. É caracterizado por alteração no estado da hemoglobina, tornando-a disfuncional4-6. Na hemoglobina normal, o ferro encontra-se em seu estado ferroso (Fe²+), permitindo a ligação do oxigênio nos pulmões e sua liberação nos tecidos4,6. A metemoglobina ocorre quando o átomo de ferro perde um elétron para um oxidante, sendo o Fe2+ então convertido em estado férrico (Fe3+).1 O Fe3+ é incapaz de se ligar ao oxigênio, e, além disso, provoca mudança alostérica na porção heme da hemoglobina parcialmente oxidada, desviando à esquerda a curva de dissociação do oxigênio. Esse processo resulta em anemia funcional, hipóxia e fornecimento deficiente de oxigênio aos tecidos1,4.

Diariamente, em condições fisiológicas normais, a hemoglobina sofre oxidação à metemoglobina. Entretanto, os sistemas redutores naturais mantêm os níveis de metemoglobina abaixo de 2%4,6. A metemoglobinemia pode ocorrer tanto como resultado de um defeito congênito nas vias de redução da metemoglobina quanto como um distúrbio adquirido, por exposição a substâncias que oxidam a hemoglobina2. Não se dispõe ainda de prevalências exatas, porém casos adquiridos parecem ser mais frequentes em relação aos de origem congênita4,5.

Nos casos adquiridos, exposição a drogas oxidantes exógenas e seus metabólitos podem acelerar a taxa de formação de metemoglobina em até 1.000 vezes. Isso sobrecarrega os sistemas enzimáticos protetores e aumenta agudamente os níveis de metemoglobina7. O primeiro caso pediátrico de metemoglobinemia induzida por fenazopiridina foi publicado em 1951, por Crawford et al. (1951)8, e desde então há pequeno número amostral na literatura, e nenhuma série de casos descrita.

A fenazopiridina é um analgésico urinário comumente utilizado para alívio sintomático de urgência e desconforto associados a infecções do trato urinário inferior9. Dentre seus efeitos colaterais, metemoglobinemia é observada em <1% dos pacientes, com risco aumentado diretamente proporcional à dosagem e duração do tratamento9. Nesses casos, a literatura sugere que seja consequência da superprodução de hemoglobina oxidada ou interrupção da cascata redutora induzida pela toxicidade da fenazopiridina10.

A apresentação clínica da metemoglobinemia é consequência direta do transporte inadequado de oxigênio. A variação dos sintomas depende da porcentagem de metemoglobina, do nível normal de hemoglobina e das comorbidades associadas. Essas comorbidades podem incluir doenças cardiovasculares ou pulmonares2,6,7. Pacientes saudáveis e sem anemia geralmente apresentam poucos sintomas com níveis de metemoglobina inferiores a 15%. Níveis de 20% a 30% podem causar alterações do estado mental, cefaleia, fadiga, intolerância ao exercício e síncope. Níveis superiores a 50% podem resultar em arritmias, convulsões, coma, e acima de 70% costuma ser fatal4,7.

O diagnóstico deve ser aventado em pacientes que apresentem cianose central e baixa leitura de saturação ao oxímetro de pulso (SpO2) refratários à oxigenoterapia4. Durante coleta de gasometria arterial, é frequentemente observado sangue cor de chocolate, e seu resultado revela discrepância entre SpO2 e a saturação arterial de oxigênio calculada (SaO2). Essa diferença pode ser indicador precoce da metemoglobinemia6. Na gasometria, a saturação da hemoglobina não é aferida, mas estimada, em função da PaO2, do pH e da curva de dissociação da hemoglobina padronizada, por isso em pacientes com metemoglobinemia tem-se resultados de SaO2 imprecisos e grosseiramente errados. O método mais eficaz de detecção de metemoglobina é através do uso da CO-oximetria, cujo equipamento é capaz de medir as concentrações dos diferentes tipos de hemoglobina no sangue, utilizando diferentes comprimentos de onda2,4,6. Contudo, a decisão terapêutica deve ser orientada primariamente pela gravidade do quadro clínico, tendo o nível sanguíneo da metemoglobina importância secundária na definição da conduta4.

Em geral, nos casos leves, o tratamento consiste na remoção do agente indutor. Também inclui a administração de oxigênio em alto fluxo, observação clínica e análise CO-oximétrica evolutiva4. Nas situações com manifestações clínicas significativas, como tontura, cefaleia, ansiedade, dispneia, baixo débito cardíaco, sonolência e crise convulsiva, além da conduta básica relatada, orienta-se a administração do azul de metileno4. Essa medicação atua como cofator para NADPH metemoglobina redutase. Isso acelera sua atividade e aumenta a taxa de conversão da metemoglobina em hemoglobina7. A dose inicial usual é de 1 a 2mg/kg, infundida por via intravenosa durante 3 a 5 minutos. Pode-se repetir a dose em 1mg/kg se não houver redução significativa da metemoglobina em 30 a 60 minutos5.

Outros tratamentos incluem ácido ascórbico, exsanguineotransfusão e oxigenoterapia hiperbárica. Porém, há relatos de pouca resposta ao ácido ascórbico nos casos adquiridos. Isso ocorre porque a capacidade de redução da metemoglobina pelo ácido ascórbico é muito inferior à dos sistemas enzimáticos endógenos1,4.

No caso descrito, a clínica e a probabilidade de metemoglobinemia associada ao risco relativamente baixo do tratamento empírico com azul de metileno guiaram a recomendação do tratamento como prova diagnóstica e terapêutica. O resultado do nível sérico da metemoglobina, obtido dias após o evento agudo, pode ter se apresentado falsamente negativo pelas condições inadequadas da coleta, armazenamento e transporte do material. A metemoglobinemia é um desafio clínico, e sua hipótese diagnóstica e seu tratamento em tempo hábil devem ser reforçados e embasados pela clínica, tendo em vista sua potencial gravidade, possivelmente reversível com a terapêutica adequada.


REFERÊNCIAS

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1. Hospital Pequeno Príncipe, Departamento de Medicina Intensiva Pediátrica - Curitiba - Paraná - Brasil
2. Hospital Pequeno Príncipe, Departamento de Pediatria - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Camila Dalle Rocha.
Hospital Pequeno Príncipe, Departamento de Medicina Intensiva Pediátrica - Curitiba - Paraná - Brasil
Rua Desembargador Motta, 1070
Água Verde, Curitiba - PR, CEP: 80250-060
E-mail: camiladalle.r@gmail.com / comite-eticapesquisa@hpp.org.br

Data de Submissão: 25/04/2023
Data de Aprovação: 10/07/2023