ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2019 - Volume 9 - Número 1

Deficiência seletiva de IgA: série de casos

Selective deficiency of IgA: case series

RESUMO

INTRODUÇÃO: A deficiência seletiva de IgA é a imunodeficiência primária mais comum, com uma prevalência de 1/600 em caucasianos. Embora, a maioria dos indivíduos afetados sejam assintomáticos, pacientes sintomáticos podem apresentar infecções recorrentes, doenças alérgicas, autoimunes e neoplasias.
OBJETIVO: Relatar série de casos de pacientes com deficiência de IgA.
MÉTODOS: Revisão de prontuários de crianças e adolescentes com diagnóstico confirmado de deficiência seletiva de IgA, atendidas em centro de referência em asma, em hospital pediátrico no Rio de Janeiro, nos últimos 3 anos.
RESULTADOS: Foram avaliados quatro pacientes com deficiência seletiva de IgA. A idade média foi de 12 anos, sendo dois do gênero masculino. Todos apresentavam rinite/asma. Além de história familiar positiva para atopia, IgE total alta, eosinofilia no sangue periférico, com níveis séricos de IgA < 7 mg/dL, IgG e IgM normais e EPF negativo. Nenhum paciente apresentava doenças autoimunes, neoplasias, história de imunodeficiência familiar nem consanguinidade entre os pais. Dois pacientes relataram história de doenças autoimunes, um de neoplasia na família. Infecções recorrentes foram encontradas em dois pacientes. No momento, todos estão em uso de corticosteroide nasal, um paciente em uso de corticoestedóide inalatório oral e um, usando broncodilatador associado com corticosteroide inalatório oral com controle dos sintomas respiratórios e infecciosos.
CONCLUSÃO: Apesar da evolução da deficiência de IgA ser geralmente benigna, os pacientes devem ser acompanhados regularmente, pois podem apresentar quadros infecciosos recorrentes e alérgicos graves como foram observados nos pacientes estudados.

Palavras-chave: Deficiência de IgA, Asma, Rinite.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Selective IgA deficiency is the most common primary immunodeficiency, with a prevalence of 1/600 in Caucasians. Although most affected individuals are asymptomatic, symptomatic patients may present with recurrent infections, allergic diseases, autoimmune diseases and neoplasias.
OBJECTIVE: To report a case series of patients with IgA deficiency.
METHODS: Revision of medical records of children and adolescents with confirmed diagnosis of selective IgA deficiency, attended at the Reference center for asthma, at a pediatric hospital in Rio de Janeiro, during the last 3 years.
RESULTS: Four patients with selective IgA deficiency were evaluated. The mean age was 12 years, with two males. All had rhinitis/asthma. In addition to positive family history for atopy, high total IgE, peripheral blood eosinophilia, with serum levels of IgA <7mg/dL, normal IgG and IgM, and EPF negative. No patient had autoimmune diseases, neoplasms, family immunodeficiency history or consanguinity between parents. Two patients reported a history of autoimmune diseases, one of neoplasia in the family. Recurrent infections were found in two patients. At the moment, all are in use of nasal corticosteroid, one patient using oral inhaled corticosteroid and one, using bronchodilator associated with oral inhaled corticosteroid with control of respiratory and infectious symptoms.
CONCLUSION: Although the evolution of IgA deficiency is benign, patients should be regularly followed for recurrent and allergic infectious conditions as observed in the patients studied.

Keywords: IgA Deficiency, Asthma, Rhinitis.


INTRODUÇÃO

Imunodeficiências primárias (IDP) são resultantes de anormalidades geneticamente determinadas do sistema imune levando primariamente ao aumento de incidência de infecções. A deficiência primária de anticorpos é a mais comum no grupo das imunodeficiências primárias, com amplo espectro de características clínicas, podendo variar de infecções recorrentes e graves até quadros assintomáticos1. A deficiência seletiva de imunoglobulina A (IgA) é a mais frequente, com prevalência variável entre 1:143 a 1:18.500 (em caucasianos 1:600)2, sendo estimada em 1:200 em pacientes com quadros alérgicos graves. A IgA é importante na imunidade das mucosas3.

O diagnóstico definitivo pode ser feito em indivíduos maiores de 4 anos de idade e com níveis séricos de IgA < 7 mg/dL na presença de concentrações séricas de imunoglobulina G (IgG) e imunoglobulina M (IgM) normais, quando outras causas de hipogamaglobulinemia foram excluídas e uma função intacta de células T4,5.

A deficiência parcial de IgA é definida em pacientes maiores de 4 anos com concentrações séricas abaixo de dois desvios-padrões da concentração normal para sua idade6-8.


OBJETIVO

Relatar série de casos de pacientes com deficiência seletiva de IgA.


MÉTODOS

Série de casos de crianças e adolescentes atendidas em centro de referência em asma na cidade do Rio de Janeiro, no período de junho/2013 a agosto/2016.

Foram analisados, retrospectivamente, os prontuários de pacientes com diagnóstico de deficiência seletiva de IgA primária (por meio de duas ou mais dosagens séricas de imunoglobulinas em todos os pacientes com quadros respiratórios graves e/ou infecções recorrentes). Por ser um centro de referência em asma, com pacientes mais graves, fazemos rotineiramente a dosagem de imunoglobulinas (IgA, IgM, IgG e IgE total) para todos os pacientes.

Critérios de exclusão:

Ø Outras IDP;

Ø Causas secundárias de deficiência de IgA (uso de medicamentos, infecções virais, doenças sistêmicas e malignidades).

O diagnóstico foi feito por alergistas e imunologistas do centro de referência em asma.

Os dados avaliados foram:


• Idade/gênero;

• História pessoal e familiar de atopia, autoimunidade e neoplasias;

• História familiar de imunodeficiências primárias e consanguinidade entre os pais;

• Infecções recorrentes;

• Eosinofilia (eosinófilos > 4%) no sangue periférico, IgE total sérica, sensibilização aos ácaros domésticos e exame parasitológico de fezes (EPF).


RESULTADOS

Foram avaliados quatro pacientes com deficiência seletiva de IgA. A idade média foi de 12 anos (e idade média do diagnóstico: 10 anos), sendo dois do gênero masculino. Todos apresentavam rinite alérgica persistente moderada/grave e asma controlada, com sensibilização alta (> 3,5 KU/L - valor de referência < 0,10 KU/L) para os três ácaros domésticos (Dermatophagoides pteronyssinus, Dermatophagoides farinae e Blomia tropicalis), além de história familiar positiva para atopia, IgE total alta, eosinofilia no sangue periférico, com níveis séricos de IgA < 7 mg/dL, IgG e IgM normais e EPF negativo. Nenhum paciente apresentava doenças autoimunes, neoplasias, história de imunodeficiência familiar nem consanguinidade entre os pais. Dois pacientes relataram história de doenças autoimunes (diabetes mellitus e tireoidite de Hashimoto), um de neoplasia na família. Infecções recorrentes foram encontradas em dois pacientes (um paciente apresentou quatro quadros de sinusite e quatro pneumonias com necessidade de internação em um episódio e uma otite média aguda; outro paciente apresentou três quadros de sinusite e duas pneumonias no mesmo ano). Não havia relato de infecção do trato gastrointestinal. Dois pacientes apresentavam quadro de asma grave. No momento, todos estão em uso de corticosteroide nasal (budesonida 50 mcg, 1 jato 12/12h), um paciente em uso de corticosteroide inalatório oral (budesonida 200 mcg, 12/12h) e um paciente usando broncodilatador associado com corticosteroide inalatório oral (formoterol 6 mcg/budesonida 200 mcg, 12/12h), com controle dos sintomas respiratórios e infecciosos.

DISCUSSÃO

A frequência neste estudo foi igual em ambos os gêneros, mas o autor Weber-Mzell descreveu uma frequência maior no sexo masculino (1:359 × 1:2.264)3.

Existe uma tabela com valores de normalidade das imunoglobulinas (A, G e M) e subclasses de IgG (mg/dL) de população brasileira de acordo com a faixa etária (autoras: Maria Fujimura e Aparecida Nagao Dias), que pode ser consultada no site www.imunopediatria.org.br. É importante lembrar que, muitas vezes, os laboratórios fornecem resultados em valores não correspondentes à tabela, podendo levar a diagnósticos incorretos.

De acordo com a literatura, a maioria dos pacientes com deficiência de IgA é assintomática (60%). Em pacientes sintomáticos, as manifestações mais comuns são: infecções sinopulmonares leves (12%), alergia (15-20%), autoimunidade (11%) e associação com diferentes complicações graves (2%) como evolução para imunodeficiência comum variável4.

As doenças alérgicas mais comumente associadas com a deficiência de IgA são rinoconjuntivite alérgica, urticária, dermatite atópica e asma2. Neste estudo, todos os pacientes apresentavam quadro de alergia respiratória (rinite/asma), sem outras manifestações alérgicas, sendo dois pacientes com asma grave. Os exames laboratoriais dos quatro pacientes evidenciaram: IgE total sérica elevada, eosinofilia periférica e sensibilização aos ácaros domésticos, provavelmente por ser um centro especializado. No estudo de Ayteki e cols., 37,3% dos pacientes apresentaram elevação da IgE total sérica e 70,5% manifestaram doenças alérgicas2.

Na literatura, a manifestação clínica mais comum é a infecção, seguida da alergia e autoimunidade2,4. Infecções sinopulmonares foram evidenciadas em dois pacientes (50%), sendo a apresentação mais comum de infecções, conforme relatada na literatura1. Autoimunidade, neoplasias e complicações graves não foram encontradas na amostra estudada. Dois pacientes apresentavam dois sinais de alerta de imunodeficiências (duas ou mais pneumonias no último ano e asma grave). É importante que o pediatra conheça os dez sinais de alerta de imunodeficiências para suspeita diagnóstica.

A Fundação Jeffrey Modell (EUA), em 1996, elaborou sinais de alerta que auxiliam o reconhecimento de provável imunodeficiência primária. Estes sinais foram adaptados a nossa realidade, sendo a presença de mais de um sinal indicativo de se investigar IDP.

Os 10 sinais de alerta para imunodeficiência primária na criança:


1. Duas ou mais pneumonias no último ano;

2. Quatro ou mais novas otites no último ano;

3. Estomatites de repetição ou monilíase por mais de dois meses;

4. Abcessos de repetição ou ectima;

5. Um episódio de infecção sistêmica grave (meningite, osteoartrite, septicemia);

6. Infecções intestinais de repetição/diarreia crônica/giardíase;

7. Asma grave, doença do colágeno ou doença autoimune;

8. Efeito adverso ao BCG e/ou infecção por micobactéria;

9. Fenótipo clínico sugestivo de síndrome associada a imunodeficiência;

10. História familiar de imunodeficiência.


Todos apresentaram EPF negativo e não havia relato de história de infecções do trato gastrointestinal. Os pacientes com deficiência de IgA têm um aumento de infecções gastrointestinais. A associação mais conhecida é a infecção por Giardia lamblia3,5. Isso ocorre porque a deficiência de IgA diminui a barreira de proteção gastrointestinal, logo protozoários, como a Giardia lamblia, que aderem ao epitélio, proliferam e causam infecção. Esses pacientes também apresentam maior frequência de doenças gastrointestinais por má absorção, intolerância à lactose, hiperplasia nodular linfoide, doença celíaca e doença intestinal inflamatória2,3, não tendo sido observadas nos pacientes avaliados.

Quanto às doenças autoimunes, as mais comuns são: tireoidite autoimune, púrpura trombocitopênica idiopática, anemia hemolítica, artrite idiopática juvenil, lúpus eritematoso sistêmico, doença celíaca e diabetes mellitus. Vários pacientes com deficiência seletiva de IgA apresentam autoanticorpos mesmo na ausência de doença2,6.

Não havia relato de consanguinidade entre os pais e história familiar de imunodeficiências primárias, que podem sugerir anormalidades geneticamente determinadas.

Apenas um tinha história familiar positiva para neoplasia e dois para autoimunidade. De acordo com a literatura, há maior frequência de autoimunidade e neoplasia em indivíduos com deficiência de IgA e seus familiares4,6,7.

No momento, os sintomas respiratórios e infecciosos dos pacientes estão controlados com tratamento medicamentoso.

O tratamento específico com reposição de IgA não está disponível. O uso de antibiótico profilático pode ser necessário em alguns pacientes com persistência de infecções do trato respiratório. A administração de gamaglobulina endovenosa com baixas concentrações de IgA pode ser recomendada em pacientes com deficiências de subclasses de IgG ou resposta humoral deficiente comprovada3.

Apesar de raras, é importante salientar que, após transfusão de hemoderivados (com altos títulos de anticorpo IgA), podem ocorrer reações graves e até fatais pois uma proporção significativa de pacientes com deficiência de IgA apresentam anticorpos anti-IgA no soro3.


CONCLUSÃO

Apesar da evolução da deficiência de IgA ser geralmente benigna e apresentar-se de forma assintomática, os pacientes devem ser acompanhados regularmente pois podem apresentar infecções de repetição e quadros alérgicos graves, conforme observamos nos nossos pacientes. O pediatra deve ficar atendo aos dez sinais de alerta de imunodeficiência primária a fim de suspeitar do diagnóstico e encaminhar para o especialista em alergia e imunologia, em centros de referência.


REFERÊNCIAS

1. Abolhassani H, et al. Autoimmunity in patients with seletive IgA deficiency. JACI. 2015; 25(2):112-119.

2. Ayakin C. Selective IgA deficiency: clinical and laboratory features of 118 children in turkey. J Clin Immunol. 2012; 32:961-966.

3. Grumach A. Alergia e imunologia na infância e na adolescência. 2 ed. Editora Atheneu; 2009.

4. Dominguez O. Fenotipos clínicos asociados a la deficiencia selectiva de IgA: revisión de 330 casos y propuesta de um protocolo de seguimento. Barcelona: An Pediatr. 2012; 76(5):261-267.

5. Yazdani R, et al. Clinical phenotype classification for selective immunoglobulin A deficiency. Expert Rev Immunol. 2015; 11(11):1245-1254.

6. Singh Karmtej, et al. IgA deficiency and autoimmunity. Autoimmunity Reviews. 2014; 13:163-177.

7. Jorgensen GH, et al. Health-related quality of life (HRQL) in immunodeficient adults with selective IgA deficiency compared with age- gender-matched controls and identification of risk factores for poor HRQL. Qual Life Res. 2014; 23(2):645-658.

8. European Society for Immunodeficiency (ESID)/International Union of Immunological Societies (IUIS).










1. Médica-Residente em Pediatria no Hospital Central do Exército. Médica-Residente do Segundo Ano em Pediatria no Hospital Central do Exército
2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Título de Especialista em Pediatria pela AMB e Sociedade Brasileira de Pediatria. Título de Especialista em Alergia e Imunologia pela AMB e ASBAI. Médica Alergista e Imunologista do Hospital Municipal Jesus
3. Especialista em Alergia e Imunologia pela AMB e ASBAI. Médico Alergista e Imunologista do Hospital Municipal Jesus

Endereço para correspondência:
Priscilla Filippo Alvim de Minas Santos
Hospital Municipal Jesus
Rio de Janeiro, RJ. Brasil. CEP: 20011-901
E-mail: pri.80@globo.com

Data de Submissão: 27/02/2017
Data de Aprovação: 24/07/2017