ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Diagnóstico ocasional de leucemia mielóide aguda em vigência de infecção por SARS-CoV-2

Occasional Diagnosis of Acute Myeloid Leukemia Due To SARS-COV 2 Infection

RESUMO

OBJETIVOS: Descrever paciente com infecção por SARS-CoV-2, que apresentou diagnóstico de leucemia mielóide aguda M3.
RELATO DE CASO: Paciente, 12 anos, sexo feminino, iniciou quadro de hematomas em membros inferiores e dor em perna esquerda; entretanto, frente à atual pandemia a paciente tardou em buscar auxílio médico devido ao receio de contaminação por SARS-CoV-2. Após 1 mês apresentou quadro de fe-bre, coriza e cacosmia. Buscou auxílio médico por apreensão de estar infectada com o novo coronavírus devido ao fato de a mãe ser profissional de saúde e ter suspeita de infecção por SARS-CoV-2. A criança foi admitida em pronto socorro, onde foi evidenciado leucopenia, plaquetopenia e PCR positivo para a COVID-19. Permaneceu internada por 8 dias no hospital de entrada. Inicialmente suspeitou-se que o quadro pudera tratar-se de púrpura trombocitopênica idiopática, entretanto, com a evolução do caso e comprometimento de distintas linhagens hematológicas, sugeriu a possibilidade diagnóstica de doença oncológica. Foi transferi-da para hospital de especialidades, onde recebeu diagnóstico de leucemia mielóide aguda subtipo M3 (LMA M3). Após diagnostico, foi iniciado tretinoína associado à transfusão de plaquetas e crioprecipitado e posterior quimioterapia com idarubicina.
CONCLUSÕES: Pode-se analisar, que diante da pandemia de SARS-CoV-2, muitas doenças podem aflorar concomitante ao quadro infeccioso viral. Por outro lado, não podemos deixar de ponderar que frente às mudanças epidemiológicas e comportamentais atuais, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico de doenças previamente existentes que, oportunamente, coexistem com a infecção pelo SARS-CoV-2, podem ser postergados, pelo receio e pela dificuldade de acesso ao sistema de saúde.

Palavras-chave: Criança, Leucemia Mielóide Aguda, Infecções por Coronavírus.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To describe a patient with SARS-CoV-2, who was diagnosed with acute myeloid leukemia M3.
CASE REPORT: Patient, 12 years old, female, started with bruises in the lower limbs and pain in the left leg; however, in the face of the current pandemic, the patient was delayed in seeking medical help due to fear of contamination by SARS-CoV-2. After 1 month she presented fever, runny nose, and cacosmia. She sought medical assistance for apprehension of being infected with the new coronavirus due to the fact that the mother is a health professional. The child was admitted to the emergency room, with leukopenia, thrombocy-topenia, and positive COVID-19. She remained hospitalized for 8 days in the hospital of entry. Initially, it was suspected of idiopathic thrombocytopenic purpura; however, with the evolution of the case it suggested the diagnostic possibility of oncological disease. She was transferred to a specialty hospital, where she was diagnosed with acute myeloid leukemia subtype M3. After diagnosis, tretinoin associated with platelet transfusion and cryoprecipitate and subsequent chemotherapy with idarubicin was started.
CONCLUSIONS: It can be analyzed that, in the face of the SARS-CoV-2 pandemic, many diseases can arise together with the viral infectious condition. On the other hand, we cannot fail to consider that in view of the current epidemiological and behavioral changes, the diagnosis, treatment, and prognosis of previously existing diseases that, in due course, coexist with SARS-CoV-2 infection, can be postponed, due to the fear and due to the difficulty of accessing the health system.

Keywords: Child, Leukemia, Myeloid Acute, Coronavirus Infections.


INTRODUÇÃO

O SARS-CoV-2, uma doença até então desconhecida, causada pelo coronavírus e que deflagra insuficiência respiratória aguda e outros comprometimentos sistêmicos foi primariamente descrita em dezembro de 2019, na China1. Em poucos meses, no entanto, devido ao alto nível de transmissibilidade e disseminação, seria a causa de uma nova pandemia2.

Diante desse grave problema de saúde pública de cunho internacional, todos os países devem tomar medidas que contenham a propagação do vírus. Entre elas, a disponibilidade de testes, esforços hospitalares, isolamento de casos suspeitos, além de medidas mais abrangentes de distanciamento social3.

Crianças de todas as idades são suscetíveis à COVID-19 e não houve diferença significativa entre os sexos4. As crianças não costumam ser a população alvo dessa pandemia, mas apresentam o risco de estar entre as principais vítimas. Embora tenham sido amplamente poupados dos efeitos diretos à saúde da COVID-19 - pelo menos até o momento - a crise está afetando profundamente o bem-estar deles5.

É nesse contexto de controle da mobilidade de pessoas e da escassez de recursos hospitalares, realocados para atender as necessidades dos infectados com a COVID-19 em condições críticas; que pacientes com comorbidades tiveram um grande impacto na avaliação e no tratamento das suas doenças de base. Além disso, a ansiedade e o medo dos pacientes em relação ao novo vírus são fatores contribuintes para o atraso no diagnóstico6.

Desse modo, o presente trabalho tem o intuito e objetivo em contribuir para o entendimento das novas consequências que uma pandemia pode promover no diagnóstico, condução e tratamento de doenças, que em situações habituais são identificadas conduzidas e tratadas de modo distinto. Busca ainda inferir que a apreensão e aflição causada pela possibilidade de infecção pelo SARS-CoV-2 pode tanto auxiliar ou retardar no diagnóstico de doenças graves.


RELATO DE CASO

Trata-se de paciente de 12 anos, do sexo feminino, previamente hígida, que iniciou em abril deste ano com a presença de discretos hematomas difusos sem outros sintomas associados. Por volta de 10 dias após a presença dos hematomas a paciente evoluiu com dor em região coxofemoral distal à esquerda, com piora à compressão e dificuldade ao deambular. No dia 20 de maio, por volta de 30 dias do início do quadro inicial, apresentou coriza e obstrução nasal associada à cacosmia.

A paciente tardou aproximadamente 1 mês em buscar auxílio médico devido ao receio de contaminação pelo SARS-CoV-2 frente à atual pandemia vivenciada. Curiosamente, quando buscou o serviço de saúde, a motivação se deu devido à apreensão em estar infectada com o novo coronavírus, já que sua mãe, profissional de saúde, tinha suspeita de infecção por SARS-CoV-2.

Desse modo, no dia 20 de maio deu entrada em Hospital Secundário situado no Município de São Paulo, onde foram realizados exames laboratoriais, os quais evidenciaram leucopenia e plaquetopenia e então optou-se por internação com coleta de PCR para COVID-19, o qual resultou em positivo.

A paciente permaneceu internada no hospital de entrada do dia 21/05 até o dia 28/05. No dia 23 de maio iniciou com febre persistente. Durante a internação evoluiu com leucocitose progressiva com atipia linfocitária e persistência da plaquetopenia. Clinicamente a paciente persistiu com hematomas, febre diária e dor em membro inferior esquerdo. Inicialmente, suspeitou-se que o quadro poderia tratar-se de púrpura trombocitopênica idiopática, entretanto, com a evolução do caso e comprometimento de distintas linhagens hematológicas suspeitou-se de doença oncológica.

Diante da evolução apresentada, no dia 28/05 foi transferida para O hospital de especialidades para avaliação hemato-oncológica. Nesta ocasião, recebeu o diagnóstico de leucemia mielóide aguda pela análise de sangue periférico. Após diagnóstico, foram iniciados os tratamentos quimioterápicos e de suporte para estabilização clínica da paciente. Foi iniciado tretinoína (ATRA) 25mg/m2/dia e realizou-se transfusão de plaquetas e crioprecipitado. No dia 30/05 recebeu resultado de imunofenotipagem com confirmação diagnóstica de LMA subtipo M3 e posterior transferência para leito de UTI pediátrica devido ao risco de sangramento pela patologia de base. No mesmo dia foi iniciada a quimioterapia com idarubicina. A paciente obteve estabilização clínica, controle da doença e mantém-se em acompanhamento com equipe da hematologia e oncologia do hospital de especialidades em questão.

Comentários

Diante do conhecimento científico que temos ao nosso alcance, podemos inferir que a presença da infecção pelo SARS-CoV-2 pode ser um fator de imunossupressão, principalmente nas LLA e linfomas. Por outro lado, o tratamento com quimioterapia interfere na capacidade de resposta imunológica dos pacientes, e a infecção é a complicação mais frequentemente associada ao câncer e ao seu tratamento, sendo a principal causa de óbito que não a própria neoplasia7.

Segundo Lu et al. (2020)8, das 1.391 crianças avaliadas e testadas de 28 de janeiro a 26 de fevereiro de 2020, em um total de 171 (12,3%) foi confirmado como tendo infecção por SARS-CoV-2. Dentre essas, 1 delas apresentava leucemia, a qual já se encontrava em tratamento quimioterápico. Afirma-se ainda que, em contraste com os adultos infectados, a maioria das crianças infectadas parece ter um curso clínico mais leve8.

Frente ao relato de caso exposto pôde-se analisar, que diante da pandemia atual por SARS-CoV-2, muitas doenças podem surgir concomitante ao quadro infeccioso viral. Por outro lado, não podemos deixar de ponderar que frente às mudanças epidemiológicas e comportamentais atuais, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico de doenças previamente existentes, como os cânceres, que oportunamente coexistem com a infecção pelo SARS-CoV-2, podem ser postergados, pelo receio de exposição ao vírus e pela dificuldade de acesso ao sistema de saúde.


REFERÊNCIAS

1. World Health Organization (WHO). Report of the WHO-China joint mission on coronavirus disease 2019 (COVID-19). Geneva: WHO; 2020.

2. World Health Organization (WHO). WHO Director-General’s opening remarks at the mission briefing on COVID-19. Geneva: WHO; 2020.

3. Walker P, Whittaker C, Watson O, Baguelin M, Ainslie KEC, Bhatia S, et al. The global impact of COVID-19 and strategies for mitigation and suppression. Science. 2020 Mar;369(6502):413-22. DOI: https://doi.org/10.1126/science.abc0035

4. Dong Y, Mo X, Hu Y, Qi X, Jiang F, Jiang Z, et al. Epidemiological characteristics of 2143 pediatric patients with 2019 coronavirus disease in China. Pediatrics. 2020 Mar 22; [Epub preprint]. DOI: https://doi.org/10.1542/peds.2020-0702

5. United Nations Children’s Fundation (UNICEF). Policy brief: the impact of COVID-19 on children. New York: UNICEF; 2020.

6. Schmidt B, Crepaldi MA, Bolze SDA, Neiva-Silva L, Demenech LM. Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Estud Psicol (Campinas). 2020;37:e200063.

7. Benites EC, Cabrini DP, Silva ACB, Silva JC, Catalan DT, Berezin EN, et al. Infecções respiratórias virais agudas em pacientes pediátricos com câncer em tratamento quimioterápico. J Pediatr (Rio J). 2014 Jul/Ago;90(4):370-6.

8. Lu X, Zhang L, Du H, Zhang J, Li YY, Qu J, et al. SARS-CoV-2 infection in children. N Engl J Med. 2020 Mar;382(17):1663-5.










1. Hospital Sírio Libanês, Pediatria - São Paulo - SP - Brasil
2. Hospital Geral do Grajaú, Pediatria - São Paulo - SP - Brasil

Endereço para correspondência:
Leonardo Marques Moura Ribeiro
Hospital Sírio-Libanês
Rua Dona Adma Jafet, nº 91, Bela Vista
São Paulo - SP. Brasil. CEP: 01308-050
E-mail: leonardomouraribeiro@gmail.com

Data de Submissão: 13/08/2020
Data de Aprovação: 27/12/2020