ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Relato de caso: paciente nascida no Brasil portadora de intolerância à proteína lisinúrica

Case report: patient born in Brazil carrier of intolerance to lisinuric protein

RESUMO

Alterações enzimáticas de origem genética promovem erros inatos do metabolismo, levando, assim, a manifestações metabólicas em que há falha de síntese, degradação, armazenamento ou transporte de moléculas no organismo. A intolerância à proteína lisinúrica (IPL) é uma doença metabólica heredi-tária autossômica recessiva rara que promove uma desordem multissistêmica na absorção de amino-ácidos cursando com alteração secundária do ciclo da ureia. Apresenta-se com variedade de sintomas que se manifestam usualmente após o desmame, sendo os mais comuns náuseas e vômitos agudos após rica ingestão proteica, aversão a alimentos ricos em proteínas, diarreia, dificuldade de ganho de peso, atraso de crescimento e desenvolvimento, alterações hematológicas e imunológicas e, em casos mais graves, podendo levar ao coma por hiperamonemia. Embora seja pan-étnica, ocorre em maior prevalência na Finlândia, devido à presença de mutação fundadora, acometendo 1/60.000 nascidos vivos naquele país.

Palavras-chave: Doenças Genéticas Inatas, Distúrbios Congênitos do Ciclo da Ureia, Hiperamonemia.

ABSTRACT

Enzymatic changes of genetic origin promote inborn errors of metabolism, leading to metabolic mani-festations in which there is failure of synthesis, degradation, storage or transport of molecules in the body. Lysinuric protein intolerance (IPL) is a rare autosomal recessive hereditary metabolic disorder that promotes a multisystemic disorder in the uptake of amino acids by secondary alteration of the urea cycle. It presents with a variety of symptoms that usually manifest after weaning, being more common acute nausea and vomiting after protein rich intake, aversion to protein-rich foods, diarrhea, difficulty in gaining weight, delayed growth and development hematological alterations and immuno-logical, and in more severe cases, leading to coma by hyperammonemia. Although it is pan-ethnic, it occurs in greater prevalence in Finland, due to the presence of a founding mutation, affecting 1/60,000 live births in that country.

Keywords: Genetic Diseases, Inborn, Urea Cycle Disorders, Inborn, Hyperammonemia.


INTRODUÇÃO

A intolerância à proteína lisinúrica consiste em um distúrbio do metabolismo de aminoácidos dibásicos causado por mutação no gene SLC7A7, localizado no cromossomo 14q11.2. Esse gene codifica uma proteína cuja função é transportar aminoácidos através das membranas epiteliais do rim e do intestino; sua disfunção leva a uma baixa absorção intestinal de aminoácidos dibásicos (lisina, ornitina e arginina) e, em paralelo, causa elevada excreção renal desses mesmos aminoácidos1. A excreção exagerada de lisina (lisinúria) leva não só a um defeito de síntese proteica, mas também à alteração do metabolismo do colágeno, causando déficit pondero-estatural no paciente. A má absorção de ornitina e arginina, por sua vez, contribui para interferência no ciclo da ureia, com consequente hiperamonemia e suas manifestações clínicas (como vômitos, letargia e convulsões)2.

O diagnóstico de IPL pode ser perdido durante a infância a menos que a presença de envolvimento neurológico desencadeie uma avaliação laboratorial. Os sinais e sintomas da doença aparecem após o desmame e introdução de alimentos ricos em proteína, entre eles letargia, vômitos, diarreia, déficit de crescimento, hepatoesplenomegalia, osteoporose, retardo desenvolvimento neuropsicomotor, proteinose alveolar, hipotonia muscular, doença renal crônica, alterações imunológicas e anormalidades hematológicas (anemia, leucopenia, trombrocitopenia e eritroblastofagocitose em aspirado de medula óssea)3,4.

A falta de crescimento e a baixa estatura são comumente observadas em crianças com IPL e foram associadas à desnutrição proteica. Uma correlação entre IPL e Hormônio de crescimento - GH, também foi postulada devido à interação conhecida entre a secreção de aminoácidos (AA) arginina, ornitina e lisina5.

O tratamento atual a longo prazo da IPL consiste em dieta com restrição proteica e suplementação com l-citrulina, l-lisina ou l-arginina oral, para reabastecer o ciclo da ureia e prevenir a hiperamonemia e a acidúria orótica6.

Este trabalho propõe a descrição e discussão de uma paciente com diagnóstico de IPL nascida no estado de São Paulo, Brasil, em 2016.


RELATO DE CASO

Paciente H.D.V, filha de pais não consanguíneos nascida em 14/09/2016 de parto cesariano, em Ibitinga, estado de São Paulo, Brasil. Mãe com 4 gestações prévias, sendo 1 aborto e demais nascidos vivos e hígidos, com pré-natal regular. Nasceu de 39 semanas e 4 dias, pesando 3280 gramas, 51 centímetros, teste de triagem neonatal sem alterações.

Recebeu aleitamento materno exclusivo por 1 mês quando foi iniciada complementação com fórmula infantil de primeiro semestre por ganho inadequado de peso, quando passou a apresentar regurgitações frequentes, recebendo tratamento para doença de refluxo sem sucesso. Aos 4 meses de vida, foi internada no centro de terapia intensiva pediátrica (CTI) com insuficiência respiratória e necessidade de suporte ventilatório, antibioticoterapia e oxigenoterapia. Durante internação, apresentou vômitos e diarreia, o que motivou a troca da sua dieta para fórmula infantil com aminoácidos livres (Neocate®) que, porém, resultou em piora dos vômitos e necessidade de retorno para dieta antirrefluxo de uso prévio.

Evoluiu com lesões pulmonares (pneumatoceles e infiltrados pulmonares bilateralmente), sendo encaminhada para hospital de serviço terciário, onde apresentou ruptura de pneumatocele com necessidade de drenagem torácica à direita por 15 dias, além do uso de múltiplos antibióticos de amplo espectro.

Recebeu alta hospitalar com 9 meses em uso de sonda nasogástrica e dependente de oxigênio por cateter nasal, quando foi encaminhada para equipe de imunologia pediátrica para investigação de possível imunodeficiência primária. Aos onze meses de idade, apresentava-se hipotônica, com atraso de desenvolvimento neuropsicomotor, baixo peso e estatura (abaixo de percentil 3 para sexo e idade) e manteve-se dependente de oxigênio.

Em virtude da hipótese diagnóstica de imunodeficiência combinada grave (severe combined immuno deficiency - SCID), foi solicitado painel genético cujo resultado indicou variantes patogênicas no gene SLC7A7 (Anexo I), compatíveis com diagnóstico de IPL. Logo após o diagnóstico, foi iniciada dieta hipoproteica e complementação com UrCMed B plus® (mistura concentrada de aminoácidos essenciais enriquecida de vitaminas e minerais). No entanto, a paciente apresentou vômitos com esta fórmula e a mesma foi suspensa após dois dias de uso.

Realizou perfil quantitativo de aminoácidos sanguíneos para pesquisa de aminoacidopatias e distúrbios do ciclo da ureia, no qual observou-se aumento discreto dos níveis de citrulina, ácido aspártico (34 com valor de referência (VR) de 0-23 ) eácido glutâmico (255,3 com VR=10-133 e níveis normais de ornitina, arginina e alanina; na análise de ácidos orgânicos urinários, encontrou-se aumento da excreção de ácido orótico (129creatinina, VR=14 tais alterações laboratoriais são compatíveis com IPL.

No período de 06 meses a 1 ano e 1 mês, foram realizados exames de imagem como tomografia computadorizada (TC) de tórax (Figura 1A) e raio-X de tórax AP (Figura 1B) e perfil (Figura 1C), na busca de infiltrado de proteinose alveolar, situação clínica característica da IPL.


Figura 1. A. TC de tórax da paciente com 6 meses de vida: extensas áreas de consolidação alveolar localizadas em segmentos posteriores dos campos pulmonares, com aerobroncogramas. Outras consolidações e opacidades com atenuação em vidro fosco esparsas em campos pulmonares predominando em lobo superior direito; B. Raio-X de tórax AP; C. Perfil da paciente com 1 ano e 1 mês de vida, evidenciando consolidações do espaço aéreo difusamente associadas a opacidades intersticiais. Fonte: Autores (2018).



A partir de um ano de vida, paciente realizou dieta com restrição proteica e reposição de citrulina 200mg três vezes ao dia e lisina 100mg duas vezes ao dia, apresentando melhora clínica progressiva. As dosagens séricas de amônia estão em queda, assim como a dosagem do ácido orótico urinário.

Após início de tratamento específico, não apresentou infecções graves com necessidade de antibióticos ou internação hospitalar, além de ter cursado com melhora dos episódios eméticos recorrentes, inclusive sem necessidade dos medicamentos para suposta doença de refluxo. Atualmente com 1 ano e cinco meses, paciente vem apresentando melhora progressiva do ganho ponderal e do desenvolvimento neuropsicomotor, porém, ainda assim, é dependente de oxigênio e mantém acompanhamento e tratamento de proteinose alveolar pulmonar por meio de broncoscopias com lavado alveolar.


DISCUSSÃO

A IPL é um distúrbio autossômico recessivo raro caracterizado pela alteração funcional no transporte de aminoácidos catiônicos causado pela mutação no gene SLC7A72.

O diagnóstico da IPL é difícil devido à apresentação clínica comum a muitas outras doenças e pelo alto custo de testes laboratoriais específicos, além do desconhecimento de grande parte da comunidade médica acerca das doenças hereditárias do metabolismo, que acarreta também no atraso do diagnóstico. Nessa enfermidade, o diagnóstico precoce tem impacto fundamental no tratamento e prevenção de sequelas2,7,8.

No caso relatado, a paciente demorou a conseguir realizar o diagnóstico e o início de tratamento dietético específico, levando a sequelas neurológicas, pulmonares e déficit de crescimento. Usualmente, pacientes afetados por essa doença apresentam sinais laboratoriais de síndrome hemofagocítica, como aumento de LDH, hiperferritinemia, hipertrigliceridemia3,4. A dosagem de amônia plasmática pode-se encontrar elevada nos pacientes, particularmente após a refeição. Contudo, são os exames de dosagem plasmática de aminoácidos que confirmam o diagnóstico da enfermidade, pois há uma discrepância entre os valores diminuídos da lisina, arginina, ornitina no plasma com o aumento desses aminoácidos na urina. Aumento na excreção urinária de ácido orótico também pode ser observado em vários pacientes6.

O diagnóstico, se possível, também deve ser confirmado pelo teste genético molecular, comprovando a presença de variantes patogênicas no gene SLC7A7.

O tratamento consiste em manter a amônia em valor próximo ao da normalidade e manter fornecimento energético e de aminoácidos de modo que satisfaça as necessidades nutricionais da criança para o crescimento e desenvolvimento físico e neurológico adequado2-8.


REFERÊNCIAS

1. Baulny HO, Schiff M, Dionisi-Vici C. Lysinuric protein intolerance (LPI): a multi organ disease by far more complex than a classic urea cycle disorder. Mol Genet Metab. 2012 Mai;106(1):12-7.

2. Sebastio G, Sperandeo MP, Andria G. Lysinuric protein intolerance: reviewing concepts on a multisystem disease. Am J Med Genet C Semin Med Genet. 2011 Fev;157C(1):54-62.

3. Barilli A, Rotoli BM, Visigalli R, Bussolati O, Gazzola GC, Gatti R, et al. Impaired phagocytosis in macrophages from patients affected by lysinuric protein intolerance. Mol Genet Metab. 2012 Abr;105(4):585-9.

4. Duval M, Fenneteau O, Doireau V, Faye A, Emilie D, Yotnda P, et al. Intermittent hemophagocytic lymphohistiocytosis is a regular feature of lysinuric protein intolerance. J Pediatr. 1999 Fev;134(2):236-9.

5. Evelina M, Grazia M, Francesca O, Marta C, Paolo C, Rossella G, et al. Growth hormone deficiency and lysinuric protein intolerance: case report and review of the literature. JIMD Rep. 2015;19:35-41.

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7. Palacín M, Bertran J, Chillarón J, Estévez R, Zorzano A. Lysinuric protein intolerance: mechanisms of pathophysiology. Mol Genet Metab. 2004 Abr;81(Supl 1):S27-37.

8. Yoshida Y, Machigashira K, Suehara M, Arimura H, Moritoyo T, Nagamatsu K, et al. Immunological abnormality in patients with lysinuric protein intolerance. J Neurol Sci. 1995 Dez;134(1-2):178-82.










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Data de Submissão: 06/06/2019
Data de Aprovação: 14/08/2019