ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 2

Protoporfiria eritropoética: apresentação clínica em criança com diagnóstico prévio de lúpus eritematoso cutâneo

Erythropoeitic protoporphyria: clinical presentation in a child misdiagnosed as cutaneous lupus erythematosus

RESUMO

A protoporfiria eritropoiética é um erro metabólico na biossíntese do grupo heme. A deficiência da enzima ferroquelatase (FEHC) culmina no acúmulo excessivo de protoporfirina livre nas células eritróides, plasma, pele e fígado. O excesso desse metabólito gera sintomas como dor na pele, ardor, prurido durante a exposição solar, que surgem desde a infância. Esse artigo relata o caso de um paciente de 4 anos e 6 meses que após exposição solar prolongada abriu quadro de fotossensibilidade típico da protoporfiria eritropoiética. O eritema malar fez com que a diagnostico de lúpus eritematoso cutâneo fosse levantado antes do diagnóstico correto de EPP. O diagnóstico de EPP é feito pela dosagem do protoporfiria sérica e corroborado pelo teste genético que mostra defeito no gene que transcreve a enzima FEHC. O tratamento se baseia em medidas de fotoproteção, recentemente medicações como alfamelanotide e hematina se mostraram efetivas para o controle da doença. Com objetivo de elucidar a diferença entre o diagnóstico de lúpus e EPP este artigo traz a diferença clínica entre essas patologias, além do diagnóstico laboratorial.

Palavras-chave: Protoporfiria eritropoética, Lúpus eritematoso cutâneo, Ferroquelatase, Porfirinas.

ABSTRACT

Erythropoietic protoporphyria (EPP) is a metabolic error in the biosynthesis of the heme group, the enzyme ferrochelatase (FEHC) deficiency culminates in the excessive accumulation of free protoporphyrin in erythroid cells, plasma, skin, and liver. The excess of this metabolite generates symptoms like skin pain, burning, pruritus during the sun exposure, that arise from this the childhood. This article reports the case of a 4-year and 6-month patient who, after prolonged sun exposure, opened a typical photosensitivity picture of erythropoietic protoporphyria. Erythema malar led to a misdiagnosis of cutaneous erythematosus lupus. EPP diagnosis was confirmed by the measurement of serum protoporphyria and corroborated by the genetic test that shows defect in the gene that transcribes the FEHC enzyme. The treatment is based on measures of photoprotection, recently medications such as afamelanotide and hematin have been shown to be effective for the control of the disease. In order to elucidate the difference between the diagnosis of cutaneous lupus and PPE, this article brings the clinical difference between these pathologies, in addition to the EPP laboratory diagnosis.

Keywords: Porphyria, Hepatoerythropoietic, Lupus erythematosus, Cutaneous, Ferrochelatase, Porphyrins.


INTRODUÇÃO

As porfirias são um grupo de distúrbios metabólicos raros - hereditários ou adquiridos, causados por falha da via biossintética do grupo heme1. Cada tipo de porfiria é resultado de uma deficiência específica em uma das enzimas envolvidas na via de produção do heme. Tradicionalmente, são classificados em dois grandes grupos: porfirias agudas e as porfirias exclusivamente cutâneas.

As porfirias cutâneas possuem como marcador bioquímico mais sensível, embora não específico, o aumento das porfirinas plasmáticas2.

Entre as porfirias cutâneas mais comuns, destacamos protoporfiria eritropoiética (EPP). Trata-se de uma porfiria eritropoiética crônica, associada ao acúmulo excessivo de protoporfirina livre nas células eritróides, plasma, pele e fígado. Os pacientes afetados por essa enfermidade caracteristicamente referem dor na pele, ardor e prurido durante a exposição ao sol, frequentemente, acompanhados de eritema e edema3. Uma pequena porcentagem (aproximadamente 2%) de pacientes com EPP, além dos sintomas cutâneos, pode desenvolver complicações hepatobiliares, que, em alguns casos, culminam em insuficiência hepática1-3. O diagnóstico laboratorial de protoporfiria eritropoética é feito através da dosagem sérica de protoporfirina3 e, posteriormente, confirmado pela análise genético-molecular.

Frequentemente, a EPP pode ser diagnosticada erroneamente como outras patologias, o que contribui para o relativo atraso diagnóstico dessa enfermidade e, por conseguinte, o correto manejo terapêutico do paciente3. A principal estratégia no manejo de EPP é evitar a exposição à luz4-5, embora novas perspectivas terapêuticas estejam em estudo.


RELATO DE CASO

Paciente, sexo feminino, 14 anos, filha de pais jovens e não-consanguíneos foi encaminhada para investigação de quadro de fotossensibilidade.

No período gestacional durante a realização de uma ultrassonografia transabdominal constatou-se uma anormalidade na medida da translucência nucal, sem anormalidade de outros parâmetros ultrassonográfico. Genitora referiu gestação sem intercorrências. Não houve complicações durante o parto e a paciente nasceu a termo, pesando 3,295kg, medindo 49cm e com perímetro cefálico de 33,5cm. Evoluiu com condições satisfatórias, apresentando boa sucção, não desenvolveu icterícia precoce, recebendo alta no primeiro dia.

Antecedentes de neurodesenvolvimento mostram que o paciente apresentou marcos neuropsicotomotores dentro da normalidade. Cursa ensino regular com bom rendimento.

Com cerca de 4 anos e 6 meses, paciente, previamente hígida, após ida à praia por primeira vez, submeteu-se a maior exposição solar que o habitual, apresentando, horas depois, importante edema em face com eritema, em região malar bilateral, região nasal e em mãos e pés (Figuras 1 e 2).


Figura 1. Edema em face com eritema, em região malar bilateral e região nasal. Fonte: Os autores (2018).


Figura 2. Observa-se eritema e edema em membro inferior direito. Fonte: Os autores (2018).



Após dias do início do quadro, evoluiu com descamação no local das lesões, sendo que essas evoluíram com formação de crosta secundária, demorando até um mês para desaparecerem. Em outras ocasiões, após exposição a luz solar ainda que brevemente, paciente apresentava apenas eritema com leve edema local e desaparecimento em alguns dias. 
A investigação inicial realizada após o episódio não foi capaz de elucidar a etiologia do quadro. Suspeitou-se de uma possível dermatite solar que foi descartada após investigação em setor de imunologia. Devido ao padrão de alteração em região malar, fez-se a suspeita de possível quadro de lúpus eritematoso sistêmico infantil, o qual também, posteriormente, foi descartado em avaliação com reumatologista e a realização de exames complementares.

Diante da não definição diagnóstica, paciente realizou exame de biópsia de pele cujo resultado evidenciou, na epiderme, presença de paraceratose e acantose irregular, derme papilar com deposição de material amorfo eosinofílico, predominante vascular e em glândulas écrinas; PAS-positivo resistente à diastase, visualizou-se ainda extravasamento de hemácias.

Resultados da biópsia de pele apontaram para a suspeita de porfiria cutânea, mas sem a identificação do subtipo. Paciente foi encaminhada para um médico geneticista que suspeitou da possibilidade de protoporfiria eritropoética, devido à apresentação clínica de fotossensibilidade sem formação de bolhas e foram solicitados exames bioquímicos baseados nessa suspeita (Tabelas 1 e 2).






Exames bioquímicos confirmaram o diagnóstico de protoporfiria eritropoiética (EPP), que, em seguida, foi corroborado pelo estudo genético do gene da ferroquelatase, no qual se evidenciou que paciente possuía uma mutação patogênica (c.215dupT) e um polimorfismo (IVS3-48T>C) que diminui a atividade da atividade dessa enzima, sendo cada uma delas herdada de genitores diferentes.

Diante do diagnóstico corretamente estabelecido, orientou-se para a paciente a adoção de medidas de fotoproteção, como utilização de filtro solar com elevado fator de proteção e uso de betacaroteno via oral.


DISCUSSÃO

A protoporfiria eritropoética (EPP) constitui uma das formas mais comuns de porfiria geneticamente determinada e a segunda forma de porfiria cutânea mais comum, sendo apenas superada em frequência pela porfiria cutânea tarda3.

Vale ressaltar que existem duas formas da EPP, sendo uma ligada ao cromossomo X e a outra de herança pseudodominante, como a representada pela paciente deste relato. Sabe-se que, bioquimicamente, existe uma diferença entre os dois tipos da doença. Na forma ligada ao X, assim como em casos de anemia hemolítica, há um aumento preferencial da protoporfirina ligada ao zinco. Já na forma pseudodominante, há uma elevação das protoporfirinas livres. Essa segunda recebe este nome devido à necessidade de a doença ter a presença da mutação em um alelo e do polimorfismo no outro alelo para que ela se manifeste, sendo assim, a doença é dominante, mas se comporta, do ponto de vista molecular, como uma doença recessiva3.

Além das manifestações cutâneas, a doença hepatobiliar ocorre em até 20% dos pacientes com EPP; no entanto, apenas 5% desenvolvem doença hepática avançada com colestase e até mesmo falência hepática. Tal apresentação pode ser explicado pela presença de cálculos biliares com alto teor de protoporfirina que são gerados devido ao acúmulo de protoporfirina insolúvel e aumento da concentração de protoporfirina biliar. As manifestações clínicas da doença hepática na EPP incluem: colelitíase com possíveis episódios obstrutivos e doença hepática crônica evoluindo para insuficiência hepática aguda. A paciente do relato evoluiu com sinais de leve disfunção hepática, definida pelos níveis alterados de enzimas hepáticas e ultrassonografia abdominal. O transplante de fígado é o tratamento para doença hepática terminal em pacientes com EPP. É evidente que o transplante de fígado não altera as consequências da deficiência de ferroquelatase, portanto, os pacientes com EPP continuam a apresentar os sintomas cutâneos típicos e os mesmos riscos de acúmulo de protoporfirinas no fígado transplantado. Em casos de pacientes que já tenham feito transplante hepático, deve-se considerar também a possibilidade de transplante de medula óssea (TMO) e, de fato, o tratamento ideal deve ser o transplante sequencial de fígado e medula óssea, que já foi realizado com sucesso3,6.

Pacientes com EEP apenas com manifestações cutâneas, a priori, não possuem indicação para realização de TMO como terapia específica. Ainda não é possível prever a evolução clínica da parte hepática da paciente do relato, por isso a monitorização da função hepática e seguimento com serviço de hepatopediatria são fundamentais.

Ao ficarem fotoexpostos, os pacientes com EPP podem apresentar eritema em região malar, o que pode ser confundido em muitos casos com lúpus eritematoso sistêmico (LES). A semelhança entre casos de LES e protoporfiria eritropoiética (EPP) representam um grande desafio diagnóstico para os médicos, devido às suas apresentações clínicas semelhantes. LES é uma doença crônica inflamatória de tecidos e órgãos, cuja evolução resulta em surtos de atividades variadas, ocasionando muitas vezes lesões maculosas eritematosas na derme, com escamas firmes e aderentes à superfície7. Dessa forma, as lesões encontradas no LES se assemelham com as da EPP, porém, nota-se que, nas lesões da protoporfiria, encontra-se edema nos locais acometidos pela exposição solar, diferentemente do que é visto no LES. Além disso, outro fator que as distingue são as lesões do LES que são generalizadas, afetando qualquer tecido e parte do corpo e na EPP afetam somente áreas fotoexpostas. Para realizar o diagnóstico diferencial, deve-se realizar acompanhamento com especialistas, sendo esses: reumatologista e geneticista; os quais pediram exames de bioquímicos e reumatológicos para estabelecimento do diagnóstico diferencial da paciente aqui relada3,7.

Como as lesões da EPP são ocasionadas devido à exposição solar, a base do tratamento desses pacientes é a fotoproteção, o que pode acarretar em comorbidades relacionadas à falta de exposição solar. Deficiência da vitamina D está descrita em muitos pacientes com EPP, visto que, sem exposição solar, não há a conversão da 25 hidroxicolecalciferol em 1,25 dihidrocolecalciferol no fígado e dessa forma a vitamina D não se apresenta em sua forma ativa, trazendo prejuízos ao ciclo do cálcio no organismo, podendo evoluir, por exemplo, com osteopenia e osteoporose. No entanto, nossa paciente não apresentou níveis anormais de vitamina D8.

Visando minimizar os efeitos da fototoxicidade em pacientes com EPP, novas perspectivas terapêuticas foram desenvolvidas. Mais recentemente, medicamento conhecido como afamelanotide, análogo do hormônio estimulante do α-melanócito humano vem sendo utilizado para tratamento das manifestações cutâneas em pacientes com EPP. Ele se liga ao receptor dos melanócitos e aumenta a produção de eumelanina na derme sem o dano causado pela luz ultravioleta dos raios solares. Essa melanina na forma de eumelanina é fotoprotetora, pois ela absorve, dispersa e extingue os raios ultravioletas, e também elimina os radicais livres agindo como um filtro de densidade neutra, visando a redução dos comprimentos de onda de luz. Foi demonstrado, a partir de estudos clínicos de fase III, que a ação do afamelanotide permitiu que os pacientes com EPP tolerassem mais a exposição direta a luz solar, sem dor9.

Na ausência de terapia específica para evitar o efeito da exposição à luz solar, pacientes com EPP ainda devem seguir como terapia o cuidado com a fotoexposição; uso de betacaroteno pode trazer leves benefícios à sintomatologia do paciente, mas não impede o desenvolvimento dos sintomas clínicos na maioria dos pacientes, como o verificado em nossa paciente.


REFERÊNCIAS

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2. Bloomer JR, Wang Y, Singhal A, Risheg H. Biochemical abnormality in protoporphyria: cause and consequences. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2006 Jul;43(Supl 1):S36-S40.

3. Lecha M, Puy H, Deybach JC. Erythropoietic protoporphyria. Orphanet J Rare Dis. 2009 Set;4:19.

4. Lane AM, McKay JT, Herbert LB. Advances in the management of erytropoietic protoporphyria – role of afamelanotide. Appl Clin Genet. 2016 Dez;9:179-89.

5. Reitmeier SD, Shacter B, Wiseman MC. Case report of patient with erytrpoietic protoporphiria and basal cell carcinoma diagnoses. J Cutan Med Surg. 2017 Mai/Jun;21(3):258-60.

6. Windon AL, Tondon R, Singh N, Porter DL, Russell JE, Cook C, et al. Erythropoietic protoporphyria in an adult with sequential liver and hematopoietic stem cell transplantation: a case report. Am J Transplant. 2018 Mar;18(3):745-9.

7. Millard TP, Hawk JLM, McGregor JM. Photosensitivity in lupus. Lupus. 2000;9(1):3-10.

8. Biewenga M, Matawlie R, Friesema H, Koole-Lesuis M, Langeveld M, Wilson JHP. Osteoporosis in patients with erythropoietic protoporphyria. Br J Dermatol. 2017 Dez;177(6):1693-8.

9. Langendonk JG, Balwani M, Anderson KE, Bonkovsky HL, Anstey AV, Bissell DM, et al. Afamelanotide for erythropoietic protoporphyria. N Engl JMed. 2015 Jul;373(1):48-59.










Faculdade de Medicina Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto, Genética Clínica - Ribeirão Preto - São Paulo - Brasil

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Data de Submissão: 19/06/2019
Data de Aprovação: 21/09/2019