ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2022 - Volume 12 - Número 1

Extrusão anal de cateter de derivação ventriculoperitoneal: relato de caso

Anal extrusion of the ventriculoperitoneal derivation catheter: case report

RESUMO

OBJETIVO: Relatar o caso de extrusão de cateter de derivação ventriculoperitoneal (DVP) em pré-escolar e demonstrar a raridade desse acontecimento.
MÉTODO: Revisão de prontuário eletrônico institucional.
RESULTADO: Paciente de 3 anos e 7 meses que foi submetida à DVP ao nascimento devido à hidrocefalia, foi admitida em serviço de saúde com extrusão assintomática do cateter pelo ânus. Durante avaliação, apresentava palpação dolorosa do abdome, porém sem sinais de peritonite, sendo iniciado antibioticoterapia e posteriormente realizada abordagem cirúrgica em conjunto (cirurgia pediátrica e neurocirurgia) para retirada da DVP. Paciente apresentou boa evolução com o tratamento proposto.
CONCLUSÃO: O tratamento mais utilizado em hidrocefalia é DVP do líquido cefalorraquidiano. Apesar de eficaz, seu uso apresenta complicações como má inserção, obstrução, infecção ou migração do cateter terminal. Casos com perfuração do intestino e extrusão anal da derivação distal são complicações raras e incomuns. A avaliação e retirada da derivação devem ser realizadas com rapidez para evitar meningites e ventriculites por patógenos do trato gastrointestinal.

Palavras-chave: cateteres, derivação ventriculoperitoneal, hidrocefalia.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To report the case of extrusion of ventriculoperitoneal shunt (VPS) catheter in preschool children and demonstrate the rarity of this event.
METHODS: Review of institutional electronic medical records.
RESULTS: A 3-year and 7-month-old patient, who underwent VPS at birth due to hydrocephalus, was admitted to a health service with asymptomatic extrusion of the catheter through the anus. During evaluation, she presented painful palpation of the abdomen, but without signs of peritonitis, antibiotic therapy was started and later a joint surgical approach (pediatric surgery and neurosurgery) was performed to remove the VPS. The patient presented a good evolution with the proposed treatment.
CONCLUSION: The most used treatment in hydrocephalus is VPS of cerebrospinal fluid. Although effective, its use presents complications such as poor insertion, obstruction, infection or migration of the terminal catheter. Cases with bowel perforation and anal extrusion of the distal shunt are rare and uncommon complications. The assessment and removal of the shunt should be performed quickly to avoid meningitis and ventriculitis due to pathogens in the gastrointestinal tract.

Keywords: Catheters, Ventriculoperitoneal Shunt, Hydrocephalus.


INTRODUÇÃO

A hidrocefalia congênita é uma condição neurológica de etiologia heterogênea que acomete 3 a 4 neonatos a cada mil nascidos vivos¹. Acredita-se que sua fisiopatologia é baseada no desequilíbrio entre produção e drenagem do líquor, ou por fatores obstrutivos envolvendo o sistema ventricular. Estudos recentes afirmam que cerca de 80% dos pacientes com hidrocefalia congênita ou neonatal sofrem algum grau de déficit neurológico residual². Na tentativa de melhorar as taxas de sobrevida e a qualidade de vida dessas crianças, é necessário diagnóstico e tratamento precoces.

O principal tratamento definitivo dos casos de hidrocefalia congênita é feito por meio de shunts, como: DVP, derivação ventrículo atrial (DVA), e em raros casos, derivação ventrículo pleural ou ventrículo vesical e até derivação ventricular externa (DVE). Dentre essas, a mais comum e mais usada pela equipe de neurocirurgia é a DVP. Nesse procedimento é inserido um cateter unidirecional com sistema de válvula de regulação de pressão intracraniana que promove a drenagem do líquor dos ventrículos laterais em direção ao peritônio abdominal, onde será absorvido.

A DVP por vezes necessita de reoperações devido a complicações, sendo, uma das complicações mais raras e de maior morbimortalidade, a perfuração intestinal com extrusão do cateter, relatada pela primeira vez em 1966³.


RELATO DE CASO

Paciente MJA, sexo feminino, nascida em 19/11/2014, 37 semanas e 5 dias, peso 3,555 gramas, Apgar 8/9, meningomielocele rota e hidrocefalia corrigidas ao nascimento, com implantação de DVP, tendo descrição de procedimento sem intercorrências. Após três dias da abordagem, evoluiu com sinais de infecção na ferida operatória e fístula liquórica dorsal, requerendo reabordagem com 7 dias de vida para reposicionamento do cateter ventricular e revisão da meningocele. Apresentou também deiscência e infecção de sutura no dorso, sendo tratada com antibioticoterapia e câmara hiperbárica. Evoluiu durante os sessenta dias de internação em hospital universitário com melhora do quadro com as medidas instituídas. Recebeu alta por melhora clínica, porém, após período em domicílio, desenvolveu edema em região occipitotemporal esquerda, onde estava alocada a porção proximal da derivação, ficando como hipótese diagnóstica obstrução da válvula. Foi realizada segunda internação, no mês seguinte, onde foi trocada a válvula, sem intercorrências. Paciente recebeu alta para domicílio com válvula funcionante e sem outras queixas clínicas.

Aos três anos e cinco meses, paciente retornou ao pronto-socorro infantil do mesmo serviço de saúde devido à hiperemia na região cervical lateral, sendo observado descontinuidade do cateter de derivação nesse seguimento. Foi realizado tomografia de crânio que evidenciou ausência de hidrocefalia e a equipe da neurocirurgia optou em realizar ressecção cirúrgica eletiva do cateter de derivação.

Aos três anos e seis meses, ocorreu novo retorno da paciente ao serviço de saúde devido à exteriorização anal do cateter distal da DVP. Encontrava-se assintomática e o cateter foi visualizado por sua mãe durante o banho e higienização do ânus. Ao ser avaliada, notou-se palpação dolorosa de abdome, porém sem sinais consistentes de peritonite, sendo iniciado antibióticos com cobertura para gram-negativos e anaeróbios, após solicitação de culturas do cateter e hemocultura, as quais vieram todas negativas. No dia seguinte à internação, com a hipótese de peritonite já descartada, foi realizada abordagem conjunta entre neurocirurgia e cirurgia pediátrica para a retirada dos dispositivos que compunham a derivação através de 3 vias: uma incisão na região mastoidea, uma no hipocôndrio esquerdo e tração pelo ânus (Figuras 1 e 2). Devido à ausência de hidrocefalia, optou-se por retirada da válvula, sem indicação de reinserção. Recebeu alta, no oitavo dia pós-operatório, com orientações de calor local e prescrição de antibióticos e analgésicos por mais dois dias, além de retorno no ambulatório de neurocirurgia para seguimento. No retorno, paciente encontrava-se assintomática, quando se optou por manter seguimento clínico regular e realização de exames de imagem de controle, quando necessário.


Figura 1. Radiografia simples de abdome realizada em decúbito dorsal, evidenciando extrusão anal do cateter de DVP, com distribuição normal de gases e fezes nas alças intestinais e ausência de gás fora do lúmen intestinal.


Figura 2. Imagem pré-operatória da paciente com setas indicando a incisão da região mastoidea esquerda para retirada do cateter de DVP proximal, incisão em cicatriz antiga em hipocôndrio esquerdo para ressecção de cateter desde a região cervical até abdome e cateter de DVP extrudido através do ânus.



DISCUSSÃO

A DVP por vezes necessita de reoperações devido a complicações, em média 2,5 procedimentos por paciente4, sendo elas: infecção, obstrução dos cateteres, cisto intraventricular, fluxo inadequado de líquor e infecção/obstrução conjuntamente. Além disso, a literatura traz outras complicações menos comuns como fistulas liquóricas, desconexões de cateteres, mau posicionamento ou extrusão anal de cateter distal5, além de protrusão uretral6, vaginal ou através da parede abdominal anterior7.

Na literatura mundial, várias são as possíveis causas para extrusão de uma derivação como má nutrição, imunossupressão secundária à radioterapia ou uso crônico de esteroides, técnica cirúrgica incorreta, reação do organismo aos componentes da DVP, deiscência de ferida operatória e isquemia de pele8. A perfuração intestinal apesar de normalmente apresentar curso insidioso e assintomático, em cerca de 25% dos casos, pode cursar com peritonite9. Devido à fraqueza da musculatura intestinal, as crianças são mais suscetíveis à perfuração intestinal10. Em outras situações, o paciente pode sentir a projeção do cateter através do ânus, apresentar sintomas de rotura intestinal, ventriculite ou meningite. Esse quadro pode ocorrer em qualquer segmento intestinal, sendo mais comum nos cólons.

Caso o diagnóstico de peritonite seja confirmado, o quadro requer uma abordagem cirúrgica urgente, com laparotomia exploradora. A remoção da extremidade extrudida abdominal pode não exigir uma laparotomia formal. A mobilização do cateter de derivação, a partir de aderências da ferida abdominal, com retirada suave e observação de quaisquer sinais de peritonite nas 48 horas próximas ao procedimento, pode evitar uma grande cirurgia abdominal7, como o ocorrido nesse caso. Se após o procedimento com antibioticoterapia11, ficar excluída infecção ou ar na cavidade abdominal, deve-se manter observação minuciosa. Para tratamento definitivo do quadro apresentado, controle da hidrocefalia e/ou manejo da hipertensão intracraniana, pode-se optar pelas seguintes alternativas: troca de DVP em 24% dos casos, substituição da DVP por DVE em até 10% e revisão simples da válvula em 9%, além das vezes em que não há mais necessidade do uso da derivação e ela é retirada4.


CONCLUSÃO

Diante do exposto, conclui-se que diagnóstico e intervenção precoces das complicações relacionadas aos shunts realizados no tratamento de hidrocefalia, previnem complicações e reduzem a morbimortalidade. Além disso, se a própria natureza promove a extrusão do cateter, é imprescindível tratamento adequado e oportuno, além de revisão de sua real necessidade no momento do procedimento.

Com esse relato, foi demonstrada a raridade do caso e a importância deste conhecimento no meio científico pediátrico.


REFERÊNCIAS

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8. Borkar SA, Satyarthee GD, Khan RN, Sharma BS, Mahapatra AK. Spontaneous extrusion of migrated ventriculoperitoneal shunt catheter through chest wall: a case report. Turk Neurosurg. 2008 Jan;18(1):95-8.

9. Birbilis T, Zezos P, Liratzopoulos N, Oikonomou A, Karanikas M, Kontogianidis K, et al. Spontaneous bowel perforation complicating ventriculoperitoneal shunt: a case report. Cases J. 2009;2:8251.

10. Sarkari A, Borkar AS, Mahapatra AK. Anal extrusion of migrated ventriculo-peritoneal shunt catheter: an unusual complication and review of literature. Asian J Neurosurg. 2016 Out/Dec;11(4):459.

11. Sharifian A, Abdollahi A, Maddah G, Anaraki F, Alvandipour M, Sahebi MA, et al. Spontaneous transanal protrusion of ventriculoperitoneal catheter: a case report. Acta Med Iran. 2013 Mar;51(2):135-8.










1. Hospital das Clínicas - Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Departamento de Pediatria - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
2. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde (ICS) - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
3. Hospital das Clínicas - Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Departamento de Clínica Cirúrgica - Uberaba - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência:

Larissa Cerqueira Pereira
Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Av. Getúlio Guaritá, 130 - Nossa Sra. da Abadia, Uberaba - MG. Brasil
CEP: 38025-440
E-mail: larissacerqueira1992@gmail.com

Data de Submissão: 19/02/2020
Data de Aprovação: 20/05/2020