ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2022 - Volume 12 - Número 3

Artrogripose renal colestática diagnosticada a partir de colestase neonatal: relato de caso

Arthrogryposis-renal dysfunction-cholestasis syndrome diagnosed from a case of neonatal cholestasis - a case report

RESUMO

A artrogripose renal colestática (ARC) é uma síndrome autossômica recessiva muito rara, com manifestações multissistêmicas caracterizadas principalmente por artrogripose, disfunção renal e colestase. Trata-se de uma doença grave com prognóstico limitado e evolução para óbito em geral no primeiro ano de vida. Este é um relato de caso de uma lactente do sexo feminino, 37 dias de vida, encaminhada para serviço terciário devido a quadro de colestase neonatal. Na avaliação identificou-se síndrome de Fanconi, artrogripose, desnutrição, ictiose e plaquetas agranulares e foi diagnosticada ARC. A biópsia hepática evidenciou padrão de hepatite neonatal. Apresentou intercorrências como desidratação, piora da acidose metabólica e insuficiência respiratória aguda. A lactente recebeu alta com 3 meses de idade em cuidados paliativos, evoluindo para óbito posteriormente. Por ser uma doença rara, o conhecimento de suas características é importante para o diagnóstico diferencial com outras causas de colestase neonatal e o direcionamento terapêutico adequado.

Palavras-chave: Artrogripose, Colestase, Síndrome de Fanconi.

ABSTRACT

Arthrogryposis, renal dysfunction and cholestasis (ARC) syndrome is a rare autosomal recessive syndrome, with multisystemic manifestations and mainly characterized by arthrogriposis, renal dysfunction and cholestasis. The prognosis is poor and most patients die within the first year of life. This is a case report of a female infant, 37 days old, referred to a tertiary hospital due to neonatal cholestasis. Upon evaluation, she also presented with Fanconi syndrome, arthrogryposis, malnutrition, ichthyosis and agranular platelets, thus receiving the clinical diagnosis of ARC syndrome. The liver biopsy showed signs of neonatal hepatitis. Her admission was complicated by dehydration, worsening of metabolic acidosis and acute respiratory failure. The infant was discharged at the age of 3 months, in palliative care, and later died. As it is a very rare disease, knowledge of its characteristics is crucial for appropriated diagnostic evaluation and differential diagnosis with other causes of cholestasis, as well as adequate management.

Keywords: Arthrogryposis, Cholestasis, Fanconi Syndrome.


INTRODUÇÃO

A artrogripose renal colestática (ARC) é uma doença multissistêmica rara e fatal, caracterizada principalmente por artrogripose, disfunção tubular renal e colestase. Esta síndrome possui caráter autossômico recessivo e dezenas mutações já foram relatadas desde sua primeira descrição em 19731,2. Seu prognóstico é reservado e a maioria dos pacientes evolui a óbito no primeiro ano de vida, devido a complicações do quadro3. O diagnóstico precoce é essencial para suporte adequado do paciente e orientação dos familiares e aconselhamento genético. Apesar de rara, a ARC tem como uma de suas principais manifestações a colestase neonatal, quadro de grande importância na pediatria. Os autores descrevem o caso de uma lactente de 37 dias de vida, encaminhada para um hospital terciário para investigação de colestase neonatal. A paciente apresentava também síndrome de Fanconi e artrogripose. O diagnóstico de ARC foi estabelecido após avaliação multidisciplinar e a paciente recebeu alta em cuidados paliativos, falecendo posteriormente.


RELATO DE CASO

Lactente do sexo feminino, 37 dias de vida, encaminhada devido à colestase neonatal. Nasceu por parto cesárea com 42 semanas de gestação, pequena para a idade gestacional, com peso de nascimento de 2.755g, pais não consanguíneos. Apresentava antecedente de icterícia com início no primeiro dia de vida, tratada inicialmente com fototerapia por 8 dias, porém, com exames já demonstrando colestase (bilirrubina total: 11,1mg/dl; bilirrubina direta: 6,94mg/dl) e aumento de transaminases (aspartato aminotransferase: 257U/L; alanina aminotransferase: 202U/L). Ainda no período neonatal apresentou desidratação e baixo ganho ponderal, recebendo leite materno e complementação com fórmula láctea. Aos 35 dias de vida evoluiu novamente com desidratação e piora da icterícia, sendo encaminhada ao serviço de referência para avaliação. Não havia sido notada deformidade em membros/artrogripose.

À admissão encontrava-se com sinais de desnutrição grave, descorada, ictérica e com ictiose cutânea. Não apresentava hepatomegalia ou esplenomegalia. Mãe referiu hipocolia fecal, adinamia, baixa ingesta e baixo ganho de peso. A paciente apresentava peso de 2.770g, com escore Z abaixo de -2 para sexo e idade. Os exames laboratoriais evidenciaram colestase com elevação de transaminases e fosfatase alcalina (FALC), porém, com gama glutamil transferase (GGT) normal. Outros achados incluíam anemia grave, hemólise, plaquetas agranulares, lesão renal aguda, acidose metabólica e hipotireoidismo. Os principais resultados de exames laboratoriais estão expostos no Quadro 1. A biópsia hepática percutânea revelou hepatopatia crônica associada à colestase intra-hepatocítica e Kupfferiana com extensa transformação gigantocelular dos hepatócitos. Durante sedação para o procedimento, foi observada ausência completa de extensão do joelho direito, caracterizando artrogripose.




Durante a internação foi diagnosticada síndrome de Fanconi. A paciente necessitou de sonda nasogástrica para suporte nutricional e reposição hidroeletrolítica. Apresentou desidratação, piora da anemia e da acidose metabólica e insuficiência respiratória aguda. Recebeu transfusão de concentrados de hemácias, antibioticoterapia (ampicilina e sulbactam) e terapia antiviral com oseltamivir. Foi internada em unidade de terapia intensiva pediátrica, com necessidade de intubação orotraqueal e ventilação mecânica, com boa evolução clínica após medidas de suporte adotadas.

A lactente foi avaliada pelas equipes de gastroenterologia e hepatologia pediátrica, nefrologia pediátrica, dermatologia e genética, recebendo o diagnóstico sindrômico de ARC. O teste genético não foi realizado, pois não está rotineiramente disponível pelo Sistema Único de Saúde e, no caso em questão, o diagnóstico pôde ser realizado clinicamente. Recebeu alta aos 3 meses de vida, em cuidados paliativos, em uso de sonda nasogástrica e programação de assistência domiciliar e seguimento ambulatorial. A paciente compareceu em consulta pela última vez aos 5 meses de vida, sem uso de sonda nasogástrica, com piora significativa da desnutrição proteico-calórica, com peso de 2.520g, muito abaixo do escore Z -3 para sexo e idade, tornando a artrogripose de joelhos mais evidente (Figura 1) e evoluiu a óbito.


Figura 1. Lactente apresentava redução do tecido adiposo e massa muscular em membros inferiores e “sobra” de pele, compatível com desnutrição, artrogripose em joelhos. A pele se apresentava seca e descamativa, compatível com ictiose. Também foi possível observar a icterícia.



DISCUSSÃO

A ARC é um distúrbio multissistêmico fatal que afeta os sistemas musculoesqueléticos, rins, fígado e sistema nervo central desde o nascimento. A maioria dos casos descritos ocorreram no Paquistão e na Arábia Saudita, devido à alta prevalência de casamentos consanguíneos nestas regiões, porém, há relatos de casos em diversos países4-6. Apesar dos pais não serem consanguíneos, a paciente apresentava características clássicas relatadas em outros estudos: artrogripose, acidose tubular renal e icterícia colestática neonatal. Outros achados podem incluir: ictiose (50%), anomalias plaquetárias (25%), agenesia do corpo caloso (20%), anomalias cardiovasculares congênitas (10%), surdez, infecções recorrentes, dificuldade de ganho ponderal, hipotireoidismo e sangramento devido à disfunção de coagulação3. A plaquetopenia não é um achado característico da síndrome, porém a presença de plaquetas agranulares favorece o diagnóstico de ARC e explica a disfunção plaquetária e o maior risco de sangramento apresentado pelos pacientes7. A síndrome de Fanconi, está entre as afecções renais mais comumente descritas e se apresenta com aminoacidúria, glicosúria, fosfatúria e, principalmente, perda de bicarbonato levando à acidose tubular8,9.

O acometimento hepático parece estar relacionado a alterações em proteínas canaliculares envolvidas na secreção biliar e cursa com aumento de transaminases e fosfatase alcalina, porém com gama glutamil tranferase normal ou reduzida, o que pode ser útil no diagnóstico diferencial com outras causas de colestase neonatal, entre elas a atresia biliar10. Diversas alterações histológicas já foram descritas. Eastham et al. (2001)9 encontraram entre os principais achados colestase e transformação gigantocelular de hepatócitos, que também foram observados no presente caso.

Dentre as etiologias da colestase neonatal, a ARC está entre as mais raras, tendo sido reportada por Jang et al. (2009)11 na proporção de 1:7 em relação à atresia biliar. As alterações laboratoriais da ARC podem ser semelhantes às da colestase intra-hepática familiar progressiva (PFIC) e o teste genético pode ser necessário para elucidação diagnóstica12. A avaliação da morfologia plaquetária também pode ser útil no diagnóstico diferencial com outras causas de colestase neonatal, uma vez que as plaquetas agranulares são um achado comum na ARC e podem ser um marcador diagnóstico não invasivo para a síndrome7.

Apesar do teste genético não ter sido realizado no caso em questão, a investigação genética auxilia o diagnóstico, uma vez que a ARC está associada a mutações nos genes VPS33B, em cerca de 75% dos casos, e VIPAR, em cerca de 25%13. A maioria dos pacientes evolui, como no caso descrito, para óbito variando de 2 a 7 meses de idade6 e as principais causas são sepse, anemia grave, acidose e desidratação14. A correlação entre genótipo e fenótipo ainda está sendo estudada7. Há relatos de casos de pacientes com sobrevida prolongada e descrição de uma nova mutação no gene VPS33B, causando um fenótipo leve da síndrome, com acometimento renal moderado e doença hepática progressiva15.


REFERÊNCIAS

1. Lutz-Richner AR, Landolt RF. Familiare Gallengansmissbildungen mit tubularer Neireninsurfizienz. Helv Paediatr Acta. 1973;28:1-12.

2. Ibrahim S, Dahrouj M, Chouery E, Habib KE, Lana K, Merhi BA, et al. New gene mutation in Lebanese infant with arthrogryposis-renal dysfunction-cholestasis (ARC) syndrome. SAR J Pathol Microbiol. 2020;1(1):34-7.

3. Zhou Y, Zhang J. Arthrogryposis-renal dysfunction-cholestasis (ARC) syndrome: from molecular genetics to clinical features. Ital J Pediatr. 2014 Set;40:77.

4. Gissen P, Johnson CA, Morgan NV, Stapelbroek JM, Forshew T, Cooper WN, et al. Mutations in VPS33B, encoding a regulator of SNARE-dependent membrane fusion, cause arthrogryposis-renal dysfunction-cholestasis (ARC) syndrome. Nat Genet. 2004 Abr;36(4):400-4.

5. Saadah OI, Bokhari BE, Alshaeri TM, Jastaniah W. Haematological manifestations of arthrogryposis-renal dysfunction-cholestasis (ARC) syndrome: a case report. Arab J Gastroenterol. 2013 Mar;14(1):26-8.

6. Di Rocco M, Callea F, Pollice B, Faraci M, Campiani F, Borrone C. Arthrogryposis, renal dysfunction and cholestasis syndrome: report of five patients from three Italian families. Eur J Pediatr. 1995 Out;154(10):835-9.

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8. Gissen P, Tee L, Johnson CA, Genin E, Caliebe A, Chitayat D, et al. Clinical and molecular genetic features of ARC syndrome. Hum Genet. 2006 Out;120(3):396-409.

9. Eastham KM, McKiernan PJ, Milford DV, Ramani P, Wyllie J, Van’t Hoff W, et al. ARC syndrome: an expanding range of phenotypes. Arch Dis Child. 2001 Nov;85(5):415-20.

10. Squires JE, McKiernan P. Molecular mechanisms in pediatric cholestasis. Gastroenterol Clin. 2018 Dez;47(4):921-37.

11. Jang JY, Kim KM, Kim GH, Yu E, Lee JJ, Park YS, et al. Clinical characteristics and VPS33B mutations in patients with ARC syndrome. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2009 Mar;48(3):348-54.

12. Gissen P, Johnson CA, Stapelbroek J, et al. ARC syndrome is not allelic to PFIC I and II. Arch Dis Child. 2003;88(Suppl 1):A70-A71.

13. Duong MD, Rose CM, Reidy KJ, Del Rio M. An uncommon case of arthrogryposis, renal dysfunction, and cholestasis (ARC) syndrome and review of the renal involvement: answers. Pediatr Nephrol. 2020 Feb;35(2):249-51.

14. Coleman RA, Van Hove JL, Morris CR, Rhoads JM, Summar ML. Cerebral defects and nephrogenic diabetes insipidus with the ARC syndrome: additional findings or a new syndrome (ARCC-NDI)? Am J Med Genet. 1997 Out;72(3):335-8.

15. Castillo RD, Squires JE, McKiernan PJ. A novel mutation in VPS33B gene causing a milder ARC syndrome phenotype with prolonged survival. JIMD Rep. 2019 Mai;47(1):4-8.










1. Hospital de Clínicas - UNICAMP, Gastroenterologia Pediátrica - Campinas - São Paulo - Brasil
2. Hospital for Sick Children, Pediatric Gastroenterology - Toronto - Ontario - Canadá

Endereço para correspondência:

Maria Angela Bellomo Brandão
Hospital de Clínicas
Rua Vital Brasil, nº 251, Cidade Universitária
Campinas, SP, Brasil. CEP: 13083-888
E-mail: angbell@unicamp.br

Data de Submissão: 25/06/2020
Data de Aprovação: 30/03/2021