ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2018 - Volume 8 - Número 3

Má-rotação intestinal: um diagnóstico a ser considerado no abdome agudo em recém-nascidos

Intestinal malrotation: a diagnosis to consider in acute abdomen in newborns

RESUMO

A má-rotação intestinal é uma anomalia do intestino médio decorrente de um defeito embriológico em suas fases de herniação, rotação e fixação. Objetiva-se relatar um caso de diagnóstico e abordagem complexos. O diagnóstico se deu por meio de abordagem cirúrgica de paciente com instabilidade hemodinâmica e distensão abdominal, e sinais de obstrução intestinal e pneumoperitônio em radiografia abdominal, com suspeita de enterocolite necrosante grau III. O intraoperatório revelou volvo de intestino médio por má-rotação intestinal a 12 cm da válvula ileocecal. Houve recidiva de instabilidade hemodinâmica e distensão abdominal e nova laparotomia foi necessária para corrigir novas perfurações intestinais. Salienta-se a importância do diagnóstico precoce com correção cirúrgica antes da ocorrência do volvo. A ultrassonografia abdominal com Doppler tem demonstrado ser promissora para o diagnóstico precoce.

Palavras-chave: Obstrução Intestinal, Abdome Agudo, Trato Gastrointestinal.

ABSTRACT

Intestinal malrotation is an anomaly of the midgut, resulting from an embryonic defect during the phases of herniation, rotation, and fixation. The objective is to report a case of complex diagnostics and approach. The diagnosis was made surgically in a patient presenting with hemodynamic instability, abdominal distension, signs of intestinal obstruction, and pneumoperitoneum on abdominal X-ray, with suspected grade III necrotizing enterocolitis. During surgery, a volvulus resulting from poor intestinal rotation was found at a distance of 12 cm from the ileocecal valve. Hemodynamic instability and abdominal distension recurred, and another exploratory laparotomy was required to correct new intestinal perforations. Therefore, early diagnosis with surgical correction before a volvulus appears is essential. Abdominal Doppler ultrasonography has been promising for early diagnosis.

Keywords: Intestinal obstruction, Acute abdomen, Gastrointestinal tract.


INTRODUÇÃO

A má-rotação intestinal (MRI) é uma anomalia do intestino médio decorrente de defeitos nas suas etapas embriológicas de herniação, rotação e fixação. Ela pode se apresentar como não rotação, rotação incompleta, rotação reversa e hérnia mesocólica1.

Incide em 0,2-1% da população e é sintomática em 1/2.500-6.000 dos casos2. Em 30-60% dos casos, associa-se a outras malformações e enfermidades como atresia intestinal, divertículo de Meckel, intussuscepção, doença de Hirschsprung, cisto mesentérico, anomalias das vias biliares extra-hepáticas, doença cardíaca congênita, hérnia diafragmática congênita e defeitos de parede abdominal (onfalocele e gastrosquise).

O desenvolvimento embriológico intestinal é complexo. Inicialmente, há herniação intestinal para fora da cavidade abdominal, na qual uma rotação (270°) no sentido anti-horário se faz em relação ao eixo da artéria mesentérica superior. Aproximadamente, na 12a semana de gestação o intestino médio retorna para a cavidade abdominal e a junção duodeno-jejunal (JDJ) se fixa à parede posterior do abdome, na sua porção lateral esquerda da coluna vertebral e ao ligamento de Treitz, enquanto o ceco se fixa no quadrante inferior direito3.

A MRI decorre de falha na rotação intestinal extracelômica, comumente com a JDJ localizada no quadrante superior direito e o ceco no abdome superior. Essa fixação anômala se faz por bandas adesivas na vesícula biliar, duodeno e parede abdominal direita. Como resultado, tem-se uma base mesentérica estreita, o que predispõe ao volvo intestinal. Menos frequentemente, o intestino faz uma rotação (90°) no sentido horário, posicionando o duodeno anteriormente e o cólon posteriormente, com a formação de um túnel que pode obstruir parcialmente os vasos mesentéricos4.

Classicamente, a MRI se manifesta com vômitos biliosos em recém-nascidos. O volvo ocorre na base mesentérica, causando torção dos vasos mesentéricos superiores. A continuidade da isquemia provoca sintomas como hematoquezia, irritabilidade, dor e distensão abdominais. O quadro pode evoluir com necrose intestinal, que se manifesta por eritema abdominal, sinais de peritonite, choque séptico e óbito. Crianças mais velhas podem apresentar volvo crônico, apresentando dor abdominal em cólica, distensão abdominal com vômitos intermitentes, diarreia, sangramento gastrointestinal e desnutrição5.

O diagnóstico pré-natal de MRI isolada é difícil e, geralmente, é feito por observação ultrassonográfica de complicações do volvo (distensão intestinal, peritonite meconial e ascite). Após o nascimento, o sintoma-chave é o vômito bilioso. Em geral, o primeiro exame que se faz é a radiografia simples de abdome, em que se observa sinais de obstrução intestinal e, em casos graves, acompanhada de pneumatose intestinal, o que sugere a hipótese de enterocolite necrosante. Atualmente, o padrão-ouro para o diagnóstico de MRI é a radiografia contrastada gastrointestinal para avaliar a posição da JDJ. Em casos duvidosos, pode-se solicitar radiografias seriadas contrastadas do intestino delgado e enema contrastado para visualização do ceco, cuja posição próxima à JDJ sugere MRI. A ultrassonografia abdominal tem sensibilidade e especificidade inferiores aos exames previamente citados. Nos casos de neonatos com história de vômitos biliosos e quadro de peritonite, após as medidas iniciais, uma laparotomia exploradora pode ser realizada para diagnóstico e tratamento, mesmo sem diagnóstico radiológico4,5.

Ao diagnóstico, em geral, os pacientes necessitam de tratamento cirúrgico com urgência devido ao alto risco da doença. Entretanto, a indicação de tratamento em pacientes assintomáticos permanece controversa5. A correção cirúrgica foi descrita por Ladd, em 1936. O procedimento se baseia na correção anti-horária da rotação do volvo, divisão das faixas de Ladd, alargamento do feixe mesentérico e posicionamento do intestino delgado no quadrante inferior direito e do intestino grosso no superior esquerdo6. A correção laparoscópica foi descrita por Zee e Bax, em 1995, e é semelhante à cirurgia aberta7. A laparoscopia tem sido utilizada em pacientes estáveis, enquanto a técnica aberta é preferida quando há volvo e suas complicações8-10. A apendicectomia cecal, preconizada por muitos autores no tratamento da MRI, é controversa, pois outros a contraindicam9.


RELATO DE CASO

Mãe de 22 anos, com duas gestações e um parto vaginal prévio. Primogênita feminina, saudável e com 5 anos à época da segunda gestação. Realizou pré-natal sem relatos de intercorrências e ultrassonografia obstétrica normal, realizada 5 dias antes do parto. Avô relata que a mãe compareceu ao pronto-socorro em 24/06/2016 devido à perda de líquido transvaginal, com idade gestacional de 26 semanas. Foi feito diagnóstico de amniorrexe prematura, iniciada tocólise e solicitada vaga em unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal. Na evolução, constatou-se ausência de batimentos cardíacos fetais e foi diagnosticada morte fetal intrauterina. Assim, foi iniciada indução do parto e a expulsão registrou-se às 11 horas (26/06/2016).

Segundo a mãe, o recém-nascido tinha idade gestacional de 26 semanas, peso de 915 g, sem batimentos cardíacos ou movimentos fetais. Confirmado o óbito, o recém-nascido foi colocado em uma caixa, onde permaneceu por 2 horas. No entanto, a equipe de enfermagem percebeu movimentos respiratórios e acionou a equipe médica, que iniciou manobras de reanimação e de cuidados intensivos. Após reanimação, o recém-nascido foi transferido para o pronto-socorro infantil de um hospital universitário terciário, onde deu entrada às 19 horas (26/06/2016).

À admissão no pronto-socorro, estava em mau estado geral, hipotônico, com as extremidades frias e cianóticas, saturação de oxigênio com 85% em ar ambiente, roncos e crepitações à ausculta pulmonar, frequência cardíaca de 130 bpm, sopro cardíaco, tendo sido feito uso de oxigênio por hood. Foi realizada intubação orotraqueal (IOT) seguida de aspiração e administração de surfactante 200 mg/kg; verificada glicemia capilar (low), prescritos 2 mL de glicose 10%; iniciada antibioticoterapia com ampicilina, sulbactam e gentamicina devido a sepse neonatal precoce e iniciada dobutamina devido a choque distributivo. Foi encaminhado à UTI neonatal.

Exames séricos à admissão: AST = 488,5 U/L, ALT = 89,2 U/L, bilirrubina total = 2,768 mg/dL, indireta = 2,201 mg/dL e direta = 0,567 mg/dL, CK = 443 U/L, CKMB = 426 U/L, hemoglobina = 12,00 g/dL, leucócitos = 28.250/mm³ (2% mielócitos, 6% metamielócitos, 17% bastonetes, 66% segmentados, 1% eosinófilos, 0% basófilos, 23% linfócitos e 10% monócitos), sorologias não reagentes (toxoplasmose, rubéola, sífilis, CMV, HIV, HTLV); hemocultura sem crescimento bacteriano e radiografia de tórax e abdome com discreto infiltrado reticulogranular bilateral e abdome normal Figura 1. Exames posteriores: ecocardiograma (28/06/2016) = PCA de 1,8 mm; ultrassonografia transfontanela (30/06/2016) = dilatação ventricular e ausência de hemorragias.


Figura 1. Radiografia simples de tórax e abdome à internação.



Em 04/07/2016, evoluiu com instabilidade hemodinâmica e distensão abdominal. Radiografia simples de abdome evidenciou obstrução intestinal, pneumoperitônio e sinais de enterocolite necrosante grau III Figura 2. Foi indicada, então, laparotomia exploradora.


Figura 2. Radiografia simples de abdome no 8º dia de vida: pneumoperitônio (sinal da bola de rugby).



O intraoperatório revelou peritonite meconial com perfuração intestinal associada a volvo de intestino médio por MRI a 12 cm da válvula ileocecal e sinais de isquemia, porém, sem necrose. Foi realizada sutura da perfuração, limpeza da cavidade abdominal, exérese de bridas de Ladd entre duodeno e cólon transverso e do ângulo hepático, apendicectomia e reposicionamento das alças intestinais, fechamento dos planos e da incisão transversa supraumbilical à direita Figuras 3 a 6.


Figura 3. A - Estado do paciente na indução anestésica. Observa-se a discrepância entre as mãos do anestesista e o recém-nascido; B - Estado do paciente no pós-operatório imediato.



Figura 4. Perfuração intestinal a 12 cm da válvula ileocecal com peritonite meconial.



Figura 5. Desenho esquemático do tipo da má-rotação intestinal encontrada seguindo a classificação de Grosfeld (1992).



Figura 6. Foto cirúrgica das alças intestinais após sutura da perfuração em íleo terminal e reversão do volvo devido à síndrome da má-rotação intestinal.



Após recuperação, evoluiu com instabilidade hemodinâmica e distensão abdominal. Outra radiografia simples de abdome evidenciou pneumoperitônio e foi submetido a nova laparotomia (13/07/2016) Figura 7. O intraoperatório revelou duas perfurações, uma a 20 cm do duodeno, próxima ao local de lise de aderências da primeira cirurgia, e outra no local da sutura anterior, que se encontrava bloqueada por alças intestinais. Além disso, havia semioclusão duodenal por resíduo bilioso. Foi realizada sutura da perfuração superior e ressecados 5 cm de alça no local da segunda perfuração, com anastomose terminoterminal. Não havia sinais de peritonite.


Figura 7. Radiografia simples de abdome para controle no 8º dia de pós-operatório.



Evoluiu com choque distributivo e distúrbio da coagulação no pós-operatório imediato. Foi diagnosticado com higroma cístico em região parietal em ultrassonografia transfontanela (21/07/2016). Um eletrocardiograma (26/07/2016) evidenciou sobrecarga de câmara direita. Exame de fundo de olho (29/07/2016) revelou retina periférica avascular. Evoluiu com pneumonia associada a broncodisplasia pulmonar (01/08/2016). Necessitou de hemotransfusão devido a anemia (04/08/2016). Foi tentada extubação eletiva (11/08/2016) e mantido em ventilação não invasiva (VNI); porém, evoluiu com apneia, hipotermia e bradicardia, sendo necessária IOT. Com diagnóstico de sepse tardia e hemocultura positiva para Serratia marcescens, recebeu tratamento para pneumonia (16/08/2016). Extubação eletiva (24/08/2016), mantido em VNI, porém com necessidade de reintubação em 25/08/2016, devido a desconforto respiratório e radiografia de tórax evidenciando atelectasia total de pulmão direito.

Apresentou instabilidade hemodinâmica com necessidade de uso de drogas vasoativas e tratamento para sepse com hemocultura positiva para Staphylococcus haemolyticus. Tratamentos para conjuntivite bacteriana (04/09/2016, 19/09/2016 e 15/10/2016). Exame de fundo de olho (09/09/2016) revelou retinopatia da prematuridade estágio 2, zona III, tratada com fotocoagulação a laser (09/09/2016 e 23/09/2016). Extubação eletiva (12/09/2016), com piora do padrão respiratório (21/09/2016) e reintubação. Submetido à herniorrafia bilateral com orquidopexia (22/09/2016). Extubado definitivamente (15/10/2016), manteve bom padrão respiratório em VNI, apesar de estridor respiratório alto e radiografia de tórax com atelectasia à direita. Foi transferido, em 19/10/2016, da UTI para a enfermaria em bom estado geral, respiração espontânea em ar ambiente, peso de 2.310 g e uso de cateter nasogástrico, com boa progressão para dieta via oral.

Novos exames: ecocardiograma (03/10/2016) = FOP de 2,5 mm, PCA de 2,5 mm e fração de ejeção normal; eletroencefalograma (08/11/2016) = atividade epileptiforme em região temporal média à direita e desorganização difusa do traçado. Evoluiu sem intercorrências na enfermaria, foi retirado cateter nasogástrico (10/11/2016) e recebeu alta hospitalar (11/11/2016). No momento do presente relato, encontra-se bem e em seguimento no ambulatório de egressos da UTI.


COMENTÁRIOS

A MRI necessita correção cirúrgica antes da ocorrência do volvo; entretanto, dificilmente o diagnóstico ocorre nesse período. A ultrassonografia abdominal com Doppler viabiliza a localização dos vasos mesentéricos superiores e a verificação da posição da veia em relação à artéria, o que tem demonstrado resultados promissores para o diagnóstico precoce.


REFERÊNCIAS

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1. Acadêmico de Medicina - Universidade Federal do Triângulo Mineiro - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
2. Residente em Medicina Intensiva Pediátrica - Universidade Federal do Triângulo Mineiro - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
3. Professora Associada - Universidade Federal do Triângulo Mineiro - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
4. Professor Adjunto - Universidade Federal do Triângulo Mineiro - Uberaba - Minas Gerais - Brasil
5. Acadêmica de Medicina - Universidade Federal do Triângulo Mineiro - Uberaba - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência:
Antônio Augusto de Andrade Cunha Filho
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Acadêmico de Medicina
Uberaba - Minas Gerais - Brasil. Rua: Frei Paulino, 30 - Nossa Sra. da Abadia
Uberaba - MG, CEP: 38025-180
E-mail: augustoacunha@gmail.com / augustoacunha@hotmail.com

Data de Submissão: 20/05/2018
Data de Aprovação: 07/082018