ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

Hiperplasia adrenal congênita em irmãos - relato de caso

Congenital adrenal hyperplasia in siblings - case report

RESUMO

A seguir, relataremos dois casos, irmãos, diagnosticados com hiperplasia adrenal congênita por deficiência da 21-hidroxilase na forma clássica virilizante simples. A paciente do sexo feminino teve sua investigação iniciada precocemente, após o nascimento, por apresentar genitália ambígua, enquanto o irmão mais velho teve seu diagnóstico retardado, uma vez que suas manifestações clínicas foram percebidas por volta dos 4 anos de idade. Os pacientes foram diagnosticados com dosagens hormonais e foi realizada análise molecular, seguida do tratamento. Este, um desafio, uma vez que os pacientes necessitaram de ajustes da dose de glicocorticoide e associação de mineralocorticoide. Além da descrição dos casos, apresentamos o que se é discutido na literatura a respeito da doença, suas classificações, apresentações clínicas, opções terapêuticas e acompanhamento.

Palavras-chave: hiperplasia suprarrenal congênita, glândulas suprarrenais, diferenciação sexual, puberdade precoce, triagem neonatal.

ABSTRACT

We report two cases, siblings, diagnosed with congenital adrenal hyperplasia due to 21-hydroxylase deficiency in the simple classic virilizing form. The female patient had her research started early after birth because of ambiguous genitalia, while the older sibling had her diagnosis delayed, since her clinical manifestations were noticed at around the age of 4. Patients were diagnosed with hormonal dosages and molecular analysis was performed, followed by treatment. This, a challenge, since patients required adjustment of glucocorticoid dose and mineralocorticoid association. In addition to the description of the cases, we present what is discussed in the literature about the disease, its classifications, clinical presentations, therapeutic options and follow-up.

Keywords: adrenal hyperplasia, congenital, adrenal glands, sex differentiation, puberty, precocious; neonatal screening.


INTRODUÇÃO

O sistema endócrino possui diversos componentes, dentre eles as glândulas adrenais, também chamadas de glândulas suprarrenais, que possuem esta nomenclatura devido a sua localização anatômica, acima do polo superior do rim. Cada glândula possui peso aproximado de 4g e é composta por duas partes, uma medular, responsável pela produção de epinefrina e norepinefrina, e uma cortical, responsável pela produção de esteroides derivados do colesterol que dependem do adequado funcionamento de vias enzimáticas para garantir a biossíntese hormonal1.

Defeitos nestas vias enzimáticas que bloqueiem a síntese de cortisol acabam por suspender o feedback negativo responsável pelo controle da produção do hormônio adrenocorticotrófico hipofisário (ACTH), resultando em aumento dos níveis do mesmo. Este aumento de ACTH gera estímulo crônico às suprarrenais, provocando sua hiperplasia2.

A hiperplasia adrenal congênita (HAC) é uma doença autossômica recessiva em que 95% dos casos são decorrência da mutação no gene CYP21A2, que codifica a enzima 21-hidroxilase, afetando de 1:7.500 a 1:10.000 nascidos vivos3.

Pode haver diversos graus de atividade enzimática afetada, e a apresentação dos sinais e sintomas torna-se muito variável, podendo a HAC ser dividida em forma clássica, esta com os subtipos perdedor de sal (HACPS) e virilizante simples (HACVS), e forma não clássica3,4.

A HACPS é a forma mais grave, ocorrendo deficiência de aldosterona e cortisol, além de produção desordenada e excessiva de andrógenos, resultando em virilização de fetos do sexo feminino. O quadro de crise de perda de sal é caracterizado por desidratação, perda de peso, hiponatremia, hipercalemia e acidose na segunda semana de vida5.

A virilização do feto feminino ocorre por ação androgênica durante o período de 7 a 12 semanas de gestação, causando genitália ambígua. Os recém-natos do sexo masculino apresentam genitália normal, o que usualmente acaba por retardar o diagnóstico e aumentar a taxa de mortalidade por crise de perda de sal. Estes meninos apresentam virilização ainda nos primeiros anos de vida.

Indivíduos com diagnóstico de HAC forma não clássica não apresentam virilização ao nascimento e se mantêm sem manifestações clínicas aparentes até o final do período pré-escolar, na adolescência ou mesmo na idade adulta. Entre as manifestações possíveis estão pubarca precoce, hirsutismo, acne, irregularidade menstrual e infertilidade5.

A ambiguidade genital do neonato do sexo feminino pode variar de clitoromegalia até genitália totalmente virilizada, indistinguível do sexo masculino, exceto pela não palpação das gônadas. Pode-se classificar este grau de virilização através da escala de Prader (Figura 1)2,6.


Figura 1. Escala de Prader, genitália feminina vista de cima (fileira superior) e corte transversal (fileira inferior, segundo Turcu & Auchus6).



Uma importante forma de diagnóstico precoce da HAC é por meio do teste de triagem neonatal. A inclusão da triagem da HAC no chamado teste do pezinho se deu na fase IV de sua implantação no Brasil, em 2014, estendendo-se a todo o território nacional e visando a detecção precoce dos indivíduos afetados, o que é fundamental para a prevenção da crise perdedora de sal, uma vez que esta é uma causa de óbito e até mesmo para a correta designação do sexo em crianças nascidas com genitália ambígua3.


RELATO DE CASOS

Paciente n° 1, ainda sem registro civil, 27 dias, natural do Rio de Janeiro, nascido de parto vaginal, à termo, adequado para a idade gestacional, encaminhado à endocrinologia por diagnóstico de genitália ambígua. Mãe compareceu à consulta sem os exames colhidos na maternidade e, durante acompanhamento, a criança foi reconvocada para coleta de nova amostra de teste de triagem neonatal por alteração em resultado de 17-hidroxiprogesterona (17OHP).


Ao exame físico, apresentava genitália ambígua grau IV pela escala de Prader, sem gônadas palpáveis e sem outras alterações. Foi relatado, em coleta de história familiar, irmão de 4 anos com “pênis muito grande para a idade”. Resultado de cariótipo colhido em 12/07/17 46 XX, possibilitando registro civil no sexo feminino aos dois meses de idade. Cirurgia feminilizante da genitália a ser programada e a paciente segue em acompanhamento pela endocrinologia pediátrica.

Paciente n° 2, G.S.O., masculino, 4 anos, natural do Rio de Janeiro. Atendido em ambulatório de endocrinologia pediátrica por queixa de “pênis grande”, segundo seus responsáveis. Nasceu de parto vaginal, à termo, com peso adequado para a idade gestacional, sem intercorrências.

Teste de triagem neonatal sem alterações, mas sempre foi notado que o pênis do paciente era maior do que o esperado para a idade e, com a suspeição diagnóstica da irmã mais nova, foi encaminhado para especialista. Sem histórico de outras doenças. Ao exame físico, apresentava classificação de Tanner G3P2, testículos com volume de 1mL e comprimento peniano de 9cm, valor acima do percentil 90 para a idade7. Durante acompanhamento, foi identificada idade óssea de 8 anos.

Foram coletadas amostras de sangue para dosagens hormonais de ambos os pacientes, conforme mostra o Quadro 1. Além destes, foram coletadas amostras para análise molecular que diagnosticou, em ambos os pacientes, HAC por deficiência de 21-hidroxilase na forma virilizante simples, devido à mutação em p.I172N e IVS-13 A/G, constatando heterozigose composta. Exames de imagem como ultrassonografia pélvica e abdominal tiveram resultados normais nos pacientes.

Os pacientes foram medicados com prednisolona na dose de 2,5mg/m2/dia, via oral, ajustada conforme necessidade. Foi associada fludrocortisona 0,1mg/dia por aumento de atividade de renina plasmática. As fotografias atuais das genitálias dos irmãos podem ser vistas na Figura 2.


Figura 2. A e B - Paciente n° 1, com 1 ano e 10 meses de idade; C - Paciente n° 2, com 5 anos e 11 meses de idade.



DISCUSSÃO

Os pacientes relatados retratam um exemplo constante na literatura, em que o diagnóstico de meninas com HAC é precoce quando comparado ao de meninos, uma vez que a virilização já detectada em sala de parto inicia investigação diagnóstica, enquanto que, com indivíduos do sexo masculino, a manifestação mais precoce será a crise de perda de sal, naqueles que possuírem HACPS.

No caso do paciente nº 2, o diagnóstico tardio, apesar da realização de teste de triagem neonatal, deu-se provavelmente por este tipo de rastreio ter sido desenvolvido para detecção de casos graves, como a HACPS, levando em conta níveis de corte mais elevados para dosagem de 17-OHP como referência diagnóstica.

Ao ser confirmado o diagnóstico, o tratamento deve ser iniciado imediatamente, consistindo na reposição de glicocorticoide em todos os pacientes com a forma clássica, com hidrocortisona em dose de 10 a 15mg/m2/dia, fracionada em três doses por via oral. Pacientes com diagnóstico de HACPS com manifestações clínicas ou atividade de renina plasmática elevada, como foi o caso dos pacientes relatados, devem iniciar também reposição de mineralocorticoide, na forma de acetado de fludrocortisona, na dose de 0,05 a 0,2mg/dia.

Na indisponibilidade de hidrocortisona, pode-se usar prednisolona, na dose de 2 a 4mg/m2/dia. O uso de fludrocortisona está indicado também em pacientes com a forma não clássica com atividade de renina plasmática elevada, explicada por uma possível deficiência subclínica de aldosterona. A reposição de glicocorticoide com dexametasona deve ser evitada durante a infância e adolescência, por possuir meia vida muito prolongada, com consequente síndrome de Cushing8.

É recomendado fornecer ao paciente uma identificação de sua condição, como cartão ou pulseira, contendo dose de estresse no caso de realização de cirurgias ou em condições febris, em que a dose de glicocorticoide deve ser aumentada em duas a três vezes, até a resolução do quadro.

Durante o seguimento, devem ser acompanhados atentamente diversos aspectos, como o crescimento e o desenvolvimento, a possibilidade do surgimento de síndrome de Cushing iatrogênica, níveis de pressão arterial, idade óssea, atividade de renina plasmática, dehidroepiandrosterona, sulfato de dehidroepiandrosterona, testosterona, além de avaliação periódica de densidade mineral óssea8.

No caso dos pacientes em questão, o diagnóstico precoce do paciente n° 2 teria possibilitado o início de seu tratamento em momento mais precoce e oportuno, prevenindo o avanço do amadurecimento físico, refletido no avanço da idade óssea. Este amadurecimento físico precoce pode trazer como consequência baixa estatura na idade adulta. Também teria possibilitado o tratamento pré-natal de sua irmã, minimizando sua virilização.

Este tratamento consiste na administração de dexametasona na dose de 20μg/kg/dia via oral em gestantes cujo primeiro filho de mesmo parceiro tenha sido diagnosticado com HAC e deve ser iniciado assim que a gestação for diagnosticada. Esta abordagem pré-natal, no entanto, é controversa. Alguns autores alegam risco para a gestação, e estão descritos comprometimento da memória e dificuldade escolar nas crianças submetidas ao tratamento1,9,10.

Durante o seguimento de pacientes do sexo feminino, a cirurgia feminilizante da genitália está indicada, visando a correção estética e funcional. Esta consiste em clitoroplastia e vaginoplastia em pacientes com estágio de Prader maior ou igual a 3, como no paciente 1, entretanto, cada vez mais tem se discutido a idade mais adequada para a realização destes procedimentos, uma vez que não há unanimidade quanto ao benefício da intervenção precoce. Cada caso deve ser individualizado e estudado de acordo com sua manifestação clínica e a família deve ter participação ativa na decisão quanto ao momento mais oportuno para a intervenção cirúrgica, levando sempre em consideração aspectos psicossociais2,6.


REFERÊNCIAS

1. Miller WL, Flück CE. Adrenal córtex and its disorders. Em: Sperling, MA. Pediatric Endocrinology. Fourth edition, Philadelphia, Elsevier; 2014. p 471-532.

2. Santos CTM, Lemos-Marini SHV, Soardi FC, Mello MP. Hiperplasia adrenal congênita. Em: Maciel-Guerra AT, Guerra-Júnior G. Menino ou Menina? Distúrbios da Diferenciação do Sexo, Rio de Janeiro, Editora Rubio; 2010. p 155-79.

3. Pass KA, Neto EC. Update: Newborn screening for endocrinophaties. Endocrinol Metab ClinNorth Am 2009;38:827-37.

4. Nimkarn S, Lin-Su K, New MI. Steroid 21 Hydroxylase Deficiency Congenital Adrenal Hyperplasia. Endocrinol Metab ClinNorth Am 2009;38:699-718.

5. Turcu AF, Auchus RJ. Adrenal Steroidogenesis and Congenital Adrenal Hyperplasia. Endocrinol Metab ClinNorth Am 2015;44:275-89.

6. Gabrich PN, Vasconcelos JSP, Damião R, Silva EA. Avaliação das medidas do comprimento peniano de crianças e adolescentes. JPediatr, 2007;83(5):441-6.

7. Speiser PW, Azziz R, Baskin LS, Ghizzoni L, Hensle TW, Merke DP, et al. Congenital Adrenal Hyperplasia Due to Steroid 21-hydroxylase Deficiency: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab 2010;95(9):4-30.

8. Miller WL, Witchel SF. Prenatal treatment of congenital adrenal hyperplasia: risks outweigh benefits. Am J Obstet Gynecol 2013;208(5):354-9.

9. Miller WL. Fetal endocrine therapy for congenital adrenal hyperplasia should not be done. Em: Best Pract Res Endocrinol Metab 2015;24:469-78.










1. Médico Pediatra - Médico Residente em Endocrinologia Pediátrica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2. Professora adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, coordenadora do Setor de Endocrinologia Pediátrica da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia do HUPE-UERJ. Supervisora do Programa de Residência Médica em Endocrinologia Pediátrica do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3. Médico do setor de Endocrinologia Pediátrica da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia do HUPE-UERJ. Preceptor do Programa de Residência Médica em Endocrinologia Pediátrica do Hospital Universitário Pedro Ernesto, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
4. Professor Adjunto da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia e Metabologia do Departamento de Medicina Interna da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Médico do Setor de Endocrinologia Pediátrica da Unidade Docente Assistencial de Endocrinologia do HUPE-UERJ. Preceptor do Programa de Residência Médica em Endocrinologia Pediátrica do Hospital Universitário Pedro Ernesto, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
5. Endocrinologista Pediátrica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
6. Médico Pediatra - Médico Residente em Endocrinologia Pediátrica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência:
Wallace Sales Gaspar
Hospital Universitário Pedro Ernesto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Boulevard 28 de setembro, nº 77, Vila Isabel
Rio de Janeiro - RJ. Brasil. CEP: 20.551-030
E-mail: gasparws@hotmail.com

Data de Submissão: 26/02/2018
Data de Aprovação: 18/04/2018