ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 1

Cor triatriatum: um caso raro e assintomático

Cor triatriatum: a rare and asymptomatic case

RESUMO

Cor triatriatum é uma malformação congênita rara, que pode se apresentar isolada ou associada a outras anomalias, de forma assintomática ou gerar complicações e óbito. Esse artigo relata o caso clínico de um recém-nascido a termo, admitido na unidade de terapia intensiva neonatal, devido a desconforto respiratório precoce, com achado ao ecocardiograma de Cor triatriatum. Nesse paciente, a cardiopatia não gerou repercussão hemodinâmica e a conduta foi conversadora. Essa malformação ocorre devido a uma falha na reabsorção da veia pulmonar comum, durante a formação embrionária do coração, gerando um átrio dividido por uma membrana. Quando presentes, as manifestações clínicas decorrem de obstrução venosa pulmonar e sobrecarga de pressão no coração, e indicam necessidade de correção cirúrgica. Ter conhecimento sobre essa doença é importante para possibilitar diagnóstico e conduta adequados.

Palavras-chave: Cardiopatias, Cardiopatias Congênitas, Pediatria, Coração Triatriado.

ABSTRACT

Cor triatriatum is a rare congenital malformation, which can present isolated or associated with other anomalies, asymptomatic or cause complications and death. This article reports a case of a term newborn admitted in the neonatal intensive care unit because of early respiratory distress, with the finding Cor triatriatum on echocardiogram. This patient did not have hemodynamic repercussion, so the management was conservative. This defect occurs because of a failure in the common pulmonary vein resorption during embryonic heart formation, generating an atrium divided by a membrane. When present, the clinical manifestations result from pulmonary venous obstruction and pressure overload in the heart and indicate the need for surgical correction. Having knowledge of this disease is important to enable appropriate diagnosis and management.

Keywords: Heart Diseases, Heart Defects, Congenital, Pediatrics, Cor Triatriatum.


INTRODUÇÃO

Cor triatriatum é uma malformação congênita rara, caracterizada pela presença de uma membrana que divide de forma anômala o átrio. Geralmente, é diagnosticada na infância. Poucos casos são assintomáticos e identificados apenas na idade adulta.

Na maioria dos casos, essa malformação está associada a outras alterações cardíacas congênitas. Em recém-nascidos e crianças, as manifestações clínicas geralmente estão relacionadas à presença de complicações, como a hipertensão na artéria pulmonar, sendo o diagnóstico feito pelo ecocardiograma. Nos casos sintomáticos, o tratamento consiste na correção cirúrgica.

Este artigo tem como objetivo relatar um caso clínico de Cor triatriatum no período neonatal. Por tratar-se de uma doença incomum na prática clínica, a abordagem do tema pode contribuir com conhecimento científico para a comunidade médica.


RELATO DE CASO

Recém-nascido (RN) a termo, sexo feminino, nascido de parto cesáreo, devido falha de indução, com idade gestacional de 38 semanas e 4 dias. Difícil extração, pois houve mudança de posição de cefálico para pélvico durante o trabalho de parto. Nasceu deprimido, necessitando de manobras de reanimação, com boa resposta após dois ciclos de ventilação com pressão positiva (VPP). Boletim de APGAR 2 e 9 no 1º e 5º minuto, respectivamente. Peso ao nascimento de 3015 gramas. A história materna é de mãe hígida, com pré-natal de risco habitual.

Nos primeiros minutos de vida, o RN evoluiu com desconforto respiratório precoce, exigindo intubação orotraqueal e foi transferido aos cuidados de equipe multidisciplinar em unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal. Devido à sepse precoce presumida, foram solicitados exames complementares e iniciada antibioticoterapia com ampicilina e gentamicina.

Os exames laboratoriais evidenciaram sinais de infecção vigente, sem disfunção de órgãos. A radiografia de tórax não mostrava alterações significativas. O ecocardiograma foi realizado com três dias de vida (Figura 1). Evidenciou presença de Cor triatriatum à esquerda, membrana com orifícioamplo, sem obstrução aofluxo das artérias pulmonares, discreto refluxo tricúspide e mitral com pressão sistólica no ventrículo direito de 46mmHg, sinais indiretos de elevação da pressão em artéria pulmonar, que não foi mensurada, e fração de ejeção de 73%. Drenagem venosa pulmonar normal, sem outras alterações na ecografia. Outras malformações foram investigadas com ultrassom transfontanela e de abdome, e não foram detectadas.


Figura 1. Imagem do exame de ecocardiograma realizado. Cor triatriatum à esquerda, com amplo orifício, sem obstrução ao fluxo da artéria pulmonar. Setas: tênue membrana no teto do átrio esquerdo.



O paciente apresentou instabilidade hemodinâmica, sendo necessário o uso de aminas vasoativas por seis dias. Permaneceu com suporte ventilatório invasivo por cinco dias, tolerando redução gradual e suspensão de oxigênio suplementar. Completou o esquema de antibióticos por 10 dias. Recebeu alta da UTI neonatal com 12 dias de vida.

Na enfermaria de pediatria, permaneceu por oito dias, para progressão para dieta oral. Manteve-se com bom estado geral, eupneico em ar ambiente, em aleitamento materno exclusivo, com boa sucção. Foi encaminhado para acompanhamento ambulatorial com pediatra e cardiologista pediátrico, o qual solicitou novo ecocardiograma com seis meses de vida e manteve conduta conservadora, sem necessidade de uso contínuo de medicamentos.


DISCUSSÃO

Cor triatriatum é uma anomalia rara, corresponde a 0,1% das cardiopatias congênitas. Os átrios são divididos por uma membrana, que mais comumente apresenta-se à esquerda do que à direita1.

Essa malformação congênita, descrita inicialmente em 1863, é resultante de uma falha na reabsorção da veia pulmonar comum durante a formação embrionária do coração2. Muitas vezes, está associada a outras anormalidades cardíacas congênitas, tais como: comunicação interatrial, persistência da veia cava superior esquerda, anomalias do retorno venoso pulmonar, tetralogia de fallot e comunicação interventricular3,9. Além de outras anormalidades congênitas, como: alterações cromossômicas e doenças respiratórias4.

Na dependência do grau da obstrução e das associações a outras anomalias, o diagnóstico pode ser mais precoce ou mais tardio5. Casos com fenestrações com diâmetro maior que 1 centímetro não cursam com alterações hemodinâmicas e repercussão clínica importante até a idade adulta, assim como no caso relatado acima. Contudo, na presença de anomalia venosa e/ou fenestrações pequenas, o paciente pode evoluir com sintomatologia referente à obstrução venosa pulmonar e sobrecarga de pressão no coração6. O início e a gravidade dos sintomas dependem essencialmente do número e tamanho das fenestrações3.

Nos casos de Cor triatriatum associados ao retorno venoso pulmonar anômalo total, o prognóstico é ruim. Cerca de 75% dos pacientes evoluem para edema pulmonar, hipertensão pulmonar, insuficiência cardíaca e óbito nos primeiros meses de vida7.

O Cor triatriatum é classificado em três tipos. O tipo I consiste em todas as quatro veias drenando para a câmara acessória, que por sua vez comunica com a camâra verdadeira. A subtipagem é baseada na presença ou ausência de outras conexões com a câmara acessória. O tipo II indica que a câmara acessória recebe todas as quatro veias, mas não se comunica com o átrio esquerdo. O tipo III inclui vários subtipos de acordo com as conexões das veias que não se conectam à câmara acessória6.

Cor triatriatum à esquerda clássico consiste em uma membrana fibromuscular dividindo o átrio esquerdo em duas câmaras, sendo uma proximal, dita acessória, que recebe as veias pulmonares; e outra distal, correspondendo ao verdadeiro átrio esquerdo, onde se encontra o orifício do apêndice atrial e a valva mitral8. Predomina no sexo masculino e a principal manifestação clínica é consequente de hipertensão pulmonar, ou seja, aumento do ventrículo direito, dispneia, doenças pulmonares de repetição, atraso no desenvolvimento, dor retroesternal, incapacidade física e hemoptise5. Alterações na ausculta cardíaca geralmente não são detectadas. Quando perceptível, há hiperfonese da 2º bulha no foco pulmonar, sopro diastólico paraesternal esquerdo e arritmias7,9. Podem ser detectados nos exames aumento das câmaras cardíacas e síndrome do QT longo9.

O diagnóstico é raro, principalmente em recém-nascidos. A discussão sobre o assunto na literatura é limitada4,10. Há relatos de casos sintomáticos e assintomáticos, em adultos e pacientes pediátricos2,3,5,11. Na maioria das vezes, o diagnóstico é tardio e um achado ecocardiográfico inesperado. No caso relatado, por tratar-se de um prematuro com sintomas a esclarecer, o ecocardiograma foi realizado e o Cor triatriatum foi um achado no exame. O ecocardiograma é considerado o padrão ouro para o diagnóstico. Outros exames de imagem, como a angiotomografia e a ressonância cardíaca podem sem úteis para detecção de alterações na anatomia cardíaca3,5.

O tratamento nos pacientes sintomáticos é cirúrgico. A primeira cirurgia corretiva dessa anomalia foi realizada em 1956, por Lewis8. Quando gera repercussão hemodinâmica, com falência cardíaca e congestão pulmonar, seu diagnóstico precoce permite a correção, que na maioria das vezes é realizada de urgência, podendo evitar complicações e evolução para óbito10. O procedimento cirúrgico mais utilizado consiste na retirada da membrana que divide os átrios, além da correção das outras malformações congênitas, caso existam5. Quando não produz sintomas, o tratamento é expectante1. No caso descrito, pelas características da malformação, a cardiopatia não gerava sintomas, permitindo conduta conservadora.


CONCLUSÃO

O Cor triatriatum é uma malformação cardíaca congênita, muitas vezes identificada tardiamente e assintomática. Porém, pode se apresentar como defeito significativo ou associado a outras anomalias, evoluindo com complicações e óbito. O caso descrito foi um achado no ecocardiograma, principal exame para diagnóstico. Não gerou sintomas e, por esse motivo, o tratamento foi conservador. Casos graves podem exigir cirurgia. O relato de caso apresentado é relevante, por tratar-se de patologia rara, pouco abordada na literatura médica. O conhecimento a seu respeito permite diagnóstico precoce e condução adequada.


REFERÊNCIAS

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Universidade Federal do Triangulo Mineiro, Faculdade de Medicina - Pediatria - Uberaba - MG - Brasil

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Maina Tavares Zanon
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Data de Submissão: 25/10/2018
Data de Aprovação: 04/02/2019