Relato de Caso
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Ano 2020 -
Volume 10 -
Número
3
Acidemia metilmalônica em Pediatria: relato de caso
Methylmalonic acidemia in Pediatrics: case report
Catherine Klein Colombiano1; Rafael Silva Sampaio1; Antonio José de Albuquerque Pereira de Oliveira Filho2; Rachel Almeida dos Santos1; Gustavo Carreiro Pinasco1; Katia Valéria Manhabusque1; Vinicius Araújo Santos3;
RESUMO
Acidemia metilmalônica foi descrita pela primeira vez em 1967 e provém de uma doença autossômica recessiva originária de distúrbio do metabolismo do propionato. Apesar de rara, é um dos mais frequentes erros inatos do metabolismo dos ácidos orgânicos. A doença pode se manifestar nos primeiros dias de vida ou ter início tardio na infância. A terapia se baseia em restrição proteica e complementação com carnitina. O presente estudo relata um caso de lactente que foi atendido no pronto-socorro do hospital com quadro de vômitos, desidratação, febre, adinamia, hiporexia, hipotonia, hiporresponsividade e atraso do desenvolvimento. Foi iniciada investigação para acidemia metilmalônica e confirmou-se o diagnóstico através de exames laboratoriais. Logo, demonstra-se a importância da existência de estudos e investigação de doenças genéticas raras para que profissionais médicos se atualizem, façam o diagnóstico e busquem o tratamento precoce de tais pacientes.
Palavras-chave:
Erros Inatos do Metabolismo dos Aminoácidos, Ácido Metilmalônico, Pediatria.
ABSTRACT
Methylmalonic acidemia was first described in 1967 and represents an autosomal recessive disease originating from a disorder of propionate metabolism. Although rare, it is one of the most frequent inborn errors of organic acid metabolism. The disease can manifest itself in the first days of life or have late onset in childhood. The therapy is based on protein restriction and carnitine supplementation. The present study reports a case of an infant who was seen at the hospitals emergency room with vomiting, dehydration, fever, adynamia, hyporexia, hypotonia and hyporesponsiveness, and developmental delay. Started research for methylmalonic acidemia and confirmed diagnosis through laboratory tests. Therefore, it is important to have studies and research on rare genetic diseases so that medical professionals can update, diagnose and seek early treatment for such patients.
Keywords:
Amino Acid Metabolism, Inborn Errors, Methylmalonic Acid, Pediatrics.
INTRODUÇÃO
A acidemia metilmalônica (AM) foi descrita pela primeira vez em 1967 e provém de uma doença autossômica recessiva. Representa um distúrbio do metabolismo do propionato, na conversão de ácido metilmalônico a ácido succínico1,2,3,4. A incidência da doença é estimada em 1:48.000 até 1:61.000 na população do ocidente. No Brasil, os poucos dados epidemiológicos disponíveis dificultam a busca diagnóstica na população pediátrica1,5.
A AM, apesar de rara, corresponde a um dos mais frequentes erros inatos do metabolismo dos ácidos orgânicos6. A doença pode se manifestar nos primeiros dias de vida ou ter início tardio na infância, podendo apresentar como complicação tardia a doença renal crônica1.
O objetivo deste relato é descrever um caso pediátrico de AM, destacando os principais marcos de sua evolução clínica até o diagnóstico.
RELATO DE CASO
Criança de 3 anos e 10 meses, sexo feminino, nascida de parto cesárea (41 semanas e 1 dia), Apgar 6/9, peso 2550g, 47cm de comprimento – pequena para idade gestacional (PIG). Não apresentou alterações aos testes de triagem neonatal.
Sem acompanhamento regular de puericultura, apresentou-se pela primeira vez ao serviço de saúde aos sete meses de idade, com sintomas de infecção de vias aéreas, associado a episódios de vômitos, desidratação, febre, dispneia, hipotonia e irritabilidade excessiva.
Durante os sete dias de internação em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) recebeu antibioticoterapia para a infecção de via aérea e apresentou hiperglicemia (glicemia capilar = 224-248mg/dL) e acidose metabólica (pH=7,14; HCO3=3,8mmol/L; pCO2=11,2mmHg).
Aos nove meses, foi internada para tratamento de linfonodomegalia cervical. Nessa internação, percebeu-se atraso do neurodesenvolvimento psicomotor, criança não sentava sem apoio, sendo encaminhada para acompanhamento com neurologista e fisioterapia motora ambulatorialmente.
Aos 12 meses, lactente foi internada novamente em UTIP com novo quadro de vômitos, desidratação, febre, adinamia, hiporexia, hipotonia e hiporresponsividade. Ao exame físico: Escala de Coma de Glasgow de 6, saturação de oxigênio 93% em ar ambiente, hipotérmica e com perfusão capilar periférica lentificada. Recebeu expansão volêmica aquecida com melhora da perfusão capilar periférica, e houve necessidade de ventilação mecânica por um período de cinco dias.
Iniciada investigação para erro inato do metabolismo através da análise de ácidos orgânicos urinários e cromatografia de aminoácidos em plasma. Os resultados encontrados estão demonstrados na Tabela 1.
Além disso, foi realizada ressonância magnética com espectroscopia de crânio, que demonstrou concentração adequada de N-acetil aspartato, de colina e de creatinina, sem picos de mioinositol, de lipídio ou de lactato; ultrassonografia abdominal, eletrocardiograma e ecodopplercardiograma transtorácico com mapeamento de fluxo compatíveis com a normalidade.
Diagnosticada acidemia metilmalônica, foi prescrito carnitina, complemento de vitamina B12 e orientou-se quanto a dieta proteico-restritiva. Diante de compensação clínico-laboratorial, paciente permaneceu internada por 20 dias e obteve alta hospitalar com orientações. Após diagnóstico, criança necessitou de reinternações por mais cinco vezes, em UTIP, por descompensação do quadro associado a descontrole dietético e falta do uso da medicação.
Em relação ao desenvolvimento neurológico apresentou atraso nos seguintes marcos: “andar com apoio”, com 1 ano e 11 meses; “duplicar sílabas” e “imitar gestos” com 2 anos. Aos 3 anos apresentou dificuldade na marcha e na fala. Ainda aguarda exame genético para elucidar a mutação envolvida na doença.
DISCUSSÃO
Existem duas formas de apresentação da AM, a clássica, de início agudo, com sintomas no período neonatal, e uma forma mais tardia pós-neonatal. No período neonatal, a clínica engloba sintomas como vômitos, perda de peso, desidratação, instabilidade de temperatura, hipo ou hipertonia, irritabilidade, letargia, convulsões e coma1. O diagnóstico diferencial faz-se com quadro de sepse, intoxicação medicamentosa e encefalopatia hipóxica isquêmica7.
As crises do período pós-neonatal são, geralmente, desencadeadas por sobrecarga proteica, eventos catabólicos ou uso de determinadas medicações, mesmos fatores observados na história da paciente no período pós-diagnóstico culminando em novas internações hospitalares1,6. Os sintomas podem simular outras doenças, como cetoacidose diabética1, bem ilustrado na primeira descompensação da paciente, quando apresentou hiperglicemia e acidose metabólica, associada a sinais e sintomas sistêmicos de desidratação, vômitos e dispneia. Os quadros clínicos mais comuns incluem encefalopatia ou coma inexplicado, hipotonia, convulsões, taquipneia, cardiomiopatia ou intervalo QT prolongado e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor1,6.
Alguns fatores são capazes de iniciar um quadro de descompensação aguda da doença, apesar do tratamento adequado, como infecções virais, febre ou procedimentos cirúrgicos7,8. Neste caso, a primodescompensação da paciente ocorreu após um quadro de infecção de vias aéreas, evoluindo com necessidade de cuidados intensivos. As complicações crônicas observáveis na doença incluem atraso de crescimento, epilepsia, doença renal progressiva, disfunção cardíaca, perda de visão, osteoporose ou osteopenia, distúrbios do movimento e imunodeficiência7,8.
Em relação aos achados laboratoriais, a suspeita da doença ocorre na presença de sinais, sem outras explicações, de acidose metabólica, aumento de lactato, concentrações elevadas de amônia plasmática, leucopenia, trombocitopenia, anemia e presença de corpos cetônicos urinários. Na presença de hiperamonemia, solicitam-se exames complementares como cromatografia de aminoácidos em plasma, ácidos orgânicos urinários e acilcarnitina sérica ou plasmática. Para confirmação diagnóstica, são necessários exames genéticos moleculares e estudos enzimáticos1. O encontro de propionilcarnitina, alanina e glicina elevados no plasma, juntamente com aumento do ácido metilmalônico, metilcítrico e 3-hidroxi-propiônico urinários dão o diagnóstico7. Do mesmo modo, o diagnóstico da paciente em análise somente foi possível após verificarem aumento da propionilcarnitina sérica junto aos ácidos urinários (metilmalônico e 3-hidroxi-propiônico) elevados que corroboravam o diagnóstico de AM, direcionando a melhor condução do quadro clínico. Exames genéticos também foram solicitados, contudo, estão em andamento.
Inicia-se o tratamento antes mesmo do resultado dos exames1. O uso rigoroso de uma dieta específica é imprescindível para melhorar o prognóstico dos pacientes enquanto não surgem novas opções terapêuticas8.
O tratamento inicial da crise de descompensação incluiu a estabilização do paciente com medidas de suporte, suspensão da ingestão de proteínas (para manutenção, aceitou-se a ingestão proteica até 0,8g/kg de proteína diária) e prevenção de jejum prolongado. A infusão de glicose endovenosa e a terapia de nutrição parenteral devem ser consideradas. Deve-se tratar rapidamente as infecções associadas, buscar avaliação de uma equipe metabólica especializada e multidisciplinar, e iniciar o tratamento medicamentoso específico. Este deve ser guiado a partir do nível de ureia plasmática, com suplementação de L-carnitina, benzoato de sódio e de vitamina B12, quando houver deficiência da enzima mitocondrial dependente de cobalamina e N-carbamilglutamato1,7,9. Em pacientes mais graves pode ser necessário o uso de desintoxicação extracorpórea, como naqueles com níveis de amônia maior que 400-500µmol/L1,6. Neste caso, a paciente foi estabilizada e tratada das condições associadas que conduziram a descompensação, e uma vez diagnosticada como AM, foi iniciado o tratamento medicamentoso com vitamina B12 e L-carnitina, sendo orientada quanto à necessidade de dieta hipoproteica.
REFERÊNCIAS
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9. Schwartz IV, Souza CFM, Giugliani R. Treatment of inborn errors of metabolism. J Pediatr (Rio J). 2008;84(4 Supl):S8-19.
1. Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Programa de Residência Médica em Pediatria - Vitória - Espírito Santo - Brasil
2. Universidade Vila Velha, Medicina - Vila Velha - Espírito Santo - Brasil
3. Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Scientific Writing Office - Vitória - Espírito Santo - Brasil
Endereço para correspondência:
Catherine Klein Colombiano
Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória
Rua Dr. João dos Santos Neves, 143 - Vila Rubim
Vitória - ES,Brasil - CEP: 29025-023
E-mail: cathecolombiano@gmail.com
Data de Submissão: 19/02/2019
Data de Aprovação: 01/06/2019