ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Histiocitose de células Langerhans com acometimento de coluna vertebral em criança portadora de HIV: um relato de caso

Langerhans cell histiocytosis with spinal cord involvement in HIV-positive children: a case report

RESUMO

A histiocitose de células de Langerhans (HCL) é uma doença principalmente pediátrica, cuja gravidade é altamente variável e apresentação clínica depende do sítio afetado. Excluindo lesões craniofaciais, a coluna vertebral é o sítio ósseo mais frequentemente envolvido. Criança de sexo masculino, 5 anos de idade, admitida em hospital terciário com história de três semanas de evolução de lombalgia, com irradiação da dor para membros inferiores, que dificultava a deambulação, com melhora parcial após uso de anti-inflamatórios. Negava traumas, febre ou outros sintomas durante o período. Ao exame físico, apresentava dor à palpação de região lombar, ausência de lesões de pele ou outras alterações. Diagnóstico prévio de HIV por transmissão vertical, em uso irregular de terapia antirretroviral (zidovudina, lamivudina, lopinavir e ritonavir), com contagem de células CD4+ de 314/mm3 (12%) e carga viral de 28.937 cópias (log 4,46). À admissão, apresentou hemograma normal e provas de atividade inflamatória elevadas. Tomografia computadorizada de coluna toracolombar evidenciou lesões destrutivas de corpos vertebrais de T4, T8 e L1. Paciente foi então submetido à biópsia vertebral, com exame anatomopatológico do tecido, recebendo o diagnóstico de HCL. Na amostra isolada de tecido ósseo, a cultura para bactérias e fungos e PCR para tuberculose resultaram negativos. A HCL é uma doença de difícil suspeita e diagnóstico, visto sua baixa incidência e sintomas inespecíficos, comuns a muitas patologias. Para o paciente descrito, a infecção pelo HIV com elevada carga viral e baixa concentração de linfócitos CD4+ tornou o diagnóstico ainda mais desafiador.

Palavras-chave: Histiocitose de Células de Langerhans, Infeções por HIV, Pediatria.

ABSTRACT

Langerhans cell histiocytosis (HCL) is a mainly pediatric disease whose severity is highly variable and clinical presentation depends on the site affected. Excluding craniofacial lesions, the spine is the most frequently involved bone site. A 5-year-old male, admitted to a tertiary hospital with a history of three weeks of low back pain, with irradiation of lower limb pain, which made walking difficult, with partial improvement after the use of anti-inflammatories. He denied traumas, fever or other symptoms during the period. On physical examination, he presented pain on palpation of the lumbar region, absence of skin lesions or other alterations. Previous HIV diag-nosis by vertical transmission, in irregular use of antiretroviral therapy (zidovudine, lamivudine, lopinavir, and ritonavir), with CD4+ cell count of 314/mm3 (12%) and viral load of 28,937 copies (log 4.46). Upon admission, he had normal blood count and high inflammatory activity tests. Computed tomography of the thoracolumbar spine showed destructive lesions of vertebral bodies of T4, T8, and L1. Patient was then submitted to vertebral biopsy, with anatomopatho-logical examination of the tissue, receiving the diagnosis of HCL. In the isolated sample of bone tissue, culture for bacteria and fungi and PCR for tuberculosis were negative. HCL is a disease of difficult suspicion and diagnosis, since its low incidence and nonspecific symptoms, common to many pathologies. For the described patient, HIV infection with high viral load and low concen-tration of CD4+ lymphocytes made the diagnosis even more challenging.

Keywords: Histiocytosis, Langerhans-Cell, HIV Infections, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

À medida que o estado imunológico das pessoas infectadas pelo HIV (vírus da imunodeficiência humana) melhorou, as malignidades não definidoras da AIDS (síndrome de imunodeficiência adquirida) se tornaram proporcionalmente muito mais importantes como causa de morbidade e mortalidade nesta população1. Crianças com HIV tem um risco aumentado de neoplasias2,3 e as razões associadas a essa relação são diversas. Lesões infiltrativas devem ser sempre consideradas no diagnóstico diferencial de dor óssea e edema nessas crianças2. Existe controvérsia se o HIV exerceria um efeito direto no risco de câncer ou se a relação é indireta1.

Os primeiros casos pediátricos foram relatados em pacientes hemofílicos, em que o câncer foi a primeira manifestação de infecção pelo HIV. Embora a prevalência de câncer seja menor em crianças do que em adultos infectados2,3, pacientes pediátricos têm um aumento de pelo menos 100 vezes no risco de desenvolver câncer quando comparados às crianças não infectadas. A incidência de tumores malignos em crianças com HIV é de 1 a 2,5% e as crianças com câncer infectadas pelo HIV têm menor sobrevida que as não infectadas2,3. Ainda não há dados suficientes para determinar se a terapia precoce reduziria o risco de câncer1, mas crianças com menos de 2 anos de terapia ou com imunossupressão grave estão em maior risco de desenvolver doenças proliferativas2. Estimativas norte-americanas indicam incidência que varia de 9,4 por 1.000 a 20 por 1.000, antes do início de terapia antirretroviral (TARV)3.

A histiocitose de células de Langerhans (HCL) é caracterizada por uma proliferação anormal e policlonal de células dendríticas4,5 que tem as características fenotípicas das células de Langerhans, células derivadas da medula óssea de origem de monocítica que normalmente residem na pele e nos linfonodos e funcionam na apresentação de antígenos4,6, mas que acabam ficando restritas em estágio inicial de maturação, tornando-se funcionalmente deficientes7. As células patogênicas podem se espalhar para quase todos os órgãos2,4 e são frequentemente acompanhadas por infiltrados de linfócitos, eosinófilos, macrófagos e células gigantes multinucleadas6.

A HCL é uma doença principalmente pediátrica, porém pode afetar qualquer faixa etária4-6. Há predominância no sexo masculino (1,7:1)4. A incidência é de 4,1 a 5,4 por milhão por ano na população4,10. Nas crianças a incidência anual é de 3 a 9 casos por milhão, sendo, portanto, uma doença rara6.

Nós relatamos um caso de histiocitose de células de Langerhans em paciente pediátrico com diagnóstico prévio de HIV.


RELATO DE CASO

Criança de sexo masculino, 5 anos de idade, foi admitida em hospital terciário com história de três semanas de evolução de lombalgia, com irradiação da dor para membros inferiores, o que dificultava a deambulação, com melhora parcial após o uso de anti-inflamatórios comuns. Negava traumas, febre ou outros sintomas durante o período. Ao exame físico, apresentava dor à palpação de região lombar, ausência de lesões de pele ou outras alterações. Tinha diagnóstico prévio de HIV por transmissão vertical, em uso irregular de terapia antirretroviral (zidovudina, lamivudina, lopinavir e ritonavir), com contagem de células CD4+ de 314/mm3 (12%) e carga viral de 28.937 cópias (log 4,46). À admissão, apresentou hemograma normal e provas de atividade inflamatória elevadas. Foi realizada radiografia de coluna, que demonstrou lesão inespecífica de vértebras T4 e T8, e tomografia computadorizada de coluna toracolombar que evidenciou lesões destrutivas de corpos vertebrais de T4, T8 e L1.

O paciente foi então submetido à biópsia vertebral de T8, com exame anatomopatológico do tecido, recebendo o diagnóstico de HCL. Na amostra isolada de tecido ósseo, as culturas para bactérias e fungos e PCR para tuberculose resultaram negativos. Foi então submetido a tratamento quimioterápico com vimblastina e teve seu esquema antirretroviral alterado para zidovudina, lamivudina, darunavir, ritonavir, raltegravir e enfuvirtida. Apresentou boa resposta aos antirretrovirais com queda da carga viral para 52 cópias (log 1,71) em 4 semanas de uso, o que representou uma redução de 2,75 log. Evoluiu com bom controle da HCL, recebendo alta após infusão de vinblastina, em uso de corticoide oral, para seguimento ambulatorial. Cinco dias após alta hospitalar apresentou subitamente náuseas, vômitos, cianose de extremidades e foi levado a uma unidade de pronto-atendimento onde evoluiu com parada cardiorrespiratória e óbito.


COMENTÁRIOS

O caso relatado trata de um paciente pediátrico, 5 anos, sexo masculino, portador de HIV, diagnosticado com HCL unifocal em coluna vertebral lombar. Portanto, enquadra-se na faixa etária predominante para a doença não disseminada e também é do sexo mais acometido, embora a localização da lesão não seja a mais comum neste tipo de paciente4,5,9.

A HCL é uma doença de difícil suspeita e diagnóstico, visto sua baixa incidência e sintomas inespecíficos, comuns a muitas patologias6. Para o paciente descrito, a infecção pelo HIV com elevada carga viral e baixa concentração de linfócitos T CD4+ tornou o diagnóstico ainda mais desafiador, visto que nesses pacientes a associação da patologia com HIV é rara2 e há um aumento da incidência de diversas doenças, benignas ou malignas, que também precisam ser levadas em consideração, como tuberculose vertebral, espondilodiscite e linfomas.

As manifestações clínicas são amplamente variadas10 e estão relacionadas ao sítio de localização, porém as lesões ósseas são mais características8. As mais comuns são lesões unifocais ósseas em cabeça e pescoço4, e quando o comprometimento é esquelético a dor e o edema são os mais encontrados8,9. Excluindo as lesões craniofaciais, a coluna vertebral é a região óssea mais acometida na população infantil, como no caso descrito, em que lesões líticas foram encontradas nos corpos vertebrais T4, T8 e L1, levando ao achatamento vertebral e clínica de dor lombar com irradiação para membros inferiores.

Exames de imagem desempenham um papel crucial no diagnóstico especialmente no caso de lesões ósseas5. Tipicamente, o envolvimento ósseo é representado por lesões líticas difusamente destrutivas com as margens dos tecidos moles bem definidas sem esclerose4,5. Na tomografia convencional, mostra-se como lesão óssea destrutiva4. O comprometimento da coluna vertebral geralmente aparece como um achatamento do corpo vertebral (vértebra plana), mas o pedículo, a lâmina e o processo transversal podem estar envolvidos.

Os achados radiológicos podem ser bem definidos também com tomografia computadorizada (TC), ressonância magnética (RM) e TC-99 Bone Scan. O diagnóstico deve incluir hemograma completo, coagulograma, provas de função hepática e osmolaridade urinária4, e deve ser confirmado por biópsia para descartar outras lesões ósseas com aparência radiológica semelhante e estabelecer um diagnóstico definitivo5,8.

Ao exame do tecido fixado em formalina através de microscopia óptica, observa-se uma infiltração reativa de granulócitos, eosinófilos e células de Langerhans imaturas. Estas células de Langerhans têm citoplasma vacuolado abundante, com núcleos ovais vesiculares4,5.

O diagnóstico é confirmado pela detecção imunohistoquímica da proteína S-100 de antígenos de superfície, moléculas de adesão dos leucócitos (antígenos CD1) e antilangerina (CD207)5,10,11. A aspiração de medula óssea, exames de imagem do fígado, baço e tórax, biópsia hepática e pulmonar, e estudos imunológicos são reservados para pacientes específicos a fim de descartar envolvimento multissistêmico4.

A evolução clínica é imprevisível, podendo ser rapidamente progressiva e fatal ou evoluir com resolução espontânea. A idade de apresentação, o envolvimento multissistêmico e a disfunção de órgãos vitais são os principais fatores prognósticos associados. O prognóstico é pior nas crianças com menos de dois anos de idade4,9. Consequências neuropsiquiátricas são as mais debilitantes e as ortopédicas são as mais comuns10.

A variabilidade em termos de gravidade, etiologia e patogênese, associada à raridade da doença leva a uma falta de consenso na gestão e tratamento5. Existem várias modalidades de tratamento para a HCL óssea, incluindo cirurgia, radioterapia, quimioterapia e corticoterapia. As terapias podem ser utilizadas sozinhas ou em combinação dependendo da extensão e gravidade da doença4. A quimioterapia é a preferida pela maioria dos autores quando há doença multifocal e diferentes protocolos já foram descritos. As recomendações atuais para o tratamento da LCH multissistêmica indicam o uso de prednisona e vinblastina como primeira linha, em um regime de tratamento semanal intenso durante 6 semanas seguido de terapia de manutenção por um total de 12 meses. Existem várias opções para a LCH multissistêmica refratária, incluindo citarabina e cladribina ou transplante de células tronco hematopoiéticas6.

O tratamento da HCL da coluna vertebral deve ser o mais conservador possível, sintomático e de suporte, exceto para lesões agressivas que comprometam a estabilidade ou se estendam às estruturas neurais8. Além da dificuldade diagnóstica que esta entidade traz, principalmente quando associada ao HIV, a necessidade de tratamento quimioterápico enquanto em uso de terapia antirretroviral implica em muita atenção e cuidado, tanto pela possibilidade de interação medicamentosa, quanto pelos efeitos sobre o sistema imune do paciente, alvo de ambas as terapias2.

Por fim, a HCL é uma doença de manifestações heterogêneas, inespecíficas, de difícil diagnóstico e tratamento não padronizado. O aumento da sua incidência em pacientes infectados pelo vírus HIV não é descrito, porém, quando esta associação está presente, o diagnóstico e o tratamento tornam-se ainda mais desafiadores, devido aos inúmeros diagnósticos diferenciais e à dificuldade em se associar o tratamento para ambas as condições, sem que haja malefícios ao paciente.


REFERÊNCIAS

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1. Universidade Federal do Paraná, Serviço de Infectologia Pediátrica - Curitiba - PR - Brasil
2. Universidade Federal do Paraná, Departamento de Pediatria - Curitiba - PR - Brasil
3. Universidade Federal do Paraná, Serviço de Infectologia - Curitiba - PR - Brasil

Endereço para correspondência:
Tyane de Almeida Pinto
Universidade Federal do Paraná
Rua XV de Novembro, nº 1299, Centro
Curitiba - PR. Brasil. CEP: 80060-000
E-mail: tyane_almeida@hotmail.com

Data de Submissão: 18/03/2019
Data de Aprovação: 21/10/2019